Ano 1 – nº10 – Dezembro 2016

Diretrizes para o desenvolvimento: Ponte para o futuro e Travessia social

O documento “Ponte para o Futuro”, lançado em outubro de 2015 pelo PMDB, pautou as ações do governo golpista em especial para a área social. O documento foi extensamente debatido entre especialistas que apontam que este coloca como prioridade um “ajuste fiscal permanente”, que condiz com a proposta da PEC 55 (ex-PEC 241). Para isso, seria necessário cortar “excessos”, reformar a Previdência e rever a valorização do salário mínimo.

“Travessia social”, também lançado pelo PMDB, em abril de 2016, apresenta propostas “de mercado” para a questão social e trabalha com uma ideia inspirada na teoria do capital humano, segundo a qual os pobres seriam pobres por não se inserirem no mercado. Nesse documento, também fica marcada a ideia de “reduzir para ampliar”: apresenta-se uma proposta mais radical de focalização, com as modificações até mesmo no Programa Bolsa Família. O argumento do documento é de que a população contida entre os 5% e os 40% mais pobres do país está perfeitamente inserida no mercado e, portanto, teria condições de competir no mercado de trabalho e garantir sua renda. O documento trata também a educação como um instrumento para o aumento da produtividade pura e simplesmente, desconsiderando seu papel na formação crítica dos cidadãos.

Ambos os documentos deram, em linhas gerais, o tom das críticas da oposição de direita ao governo Dilma, dialogando com críticas do senso comum na imprensa e nas redes sociais. Também se traduziram em tentativas de reformas ou desconstrução de políticas sociais quando Temer assumiu o governo com o golpe.

Mercado de trabalho

O mercado de trabalho inicia 2016 com sinais de continuidade em relação a 2015. Assim como no ano anterior, neste o mercado de trabalho bate recordes negativos, que consolidam os efeitos da crise política e econômica na vida cotidiana do país. Assim, ambos os anos marcam a reversão de um ciclo de contínuos recordes positivos, desde 2003, na redução da informalidade, da desigualdade de rendimentos do trabalho e do desemprego, com a piora dos indicadores do mercado de trabalho, essas conquistas ficam em risco.

Dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), bem como avaliações do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam a deterioração do quadro no ano, tendo possíveis efeitos também na pobreza e desigualdade no país.

Consideramos que exista uma assimetria entre trabalhadores e empregadores, de forma que, de um lado, os empregadores demandam trabalho e formulam as condições em que um posto de trabalho é ofertado e, de outro, os trabalhadores precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Nesse cenário, o direito do trabalho existe para atenuar essa assimetria no mercado de trabalho. Assim, medidas que flexibilizem leis trabalhistas ou que retirem direitos são prejudiciais ao trabalhador em uma perspectiva individual (pela perda de direitos) e coletiva (pela desconstrução de uma repartição mais justa dos recursos da sociedade).

O cenário de piora dos índices do mercado de trabalho abre espaço para iniciativas de flexibilização das leis trabalhistas, em diálogo com a antiga ideia de que “os trabalhadores têm muitos direitos” ou que “as leis trabalhistas engessam e encarecem o trabalho”. Mas o elevado desemprego e a recessão econômica aumentam risco de regressão na regulação trabalhista ao propiciar crescimento da ofensiva patronal e governamental (já que a ofensiva patronal ganhou um aliado forte – o governo – com o golpe) para flexibilizar direitos, como tem ocorrido, com forte apoio da mídia tradicional. Alguns exemplos de propostas que voltaram a ser discutidas em 2016 são:

– Ampliação da jornada: foi anunciada pelo ministro do Trabalho de Temer, Ronaldo Nogueira, proposta de ampliação da jornada semanal para 48 horas e da jornada máxima diária para 12 horas. O ministro foi chamado pelo governo a se explicar à sociedade, mas ainda não está clara qual é a proposta do governo.
Vale lembrar que, no início do governo Lula, em 2003, discutia-se a redução da jornada de trabalho para quarenta horas semanais e que, com a elevação da produtividade ao longo dos anos, é socialmente justo que a jornada seja reduzida, a fim de repartir entre a sociedade esses ganhos.

– Terceirização irrestrita: Michel Temer anunciou que vai apoiar o PL 4330/2004, aprovado pela Câmara no início de 2015, que visa liberar a terceirização também em “atividades-fim” e não somente em “atividades-meio”. Se para as empresas o processo de terceirização significa ganhos e a possibilidade de concentrar seus investimentos nas atividades principais, os trabalhadores terceirizados estão sujeitos a redução de salários e precarização das condições de trabalho. Em 21/11, foi noticiado que a terceirização está sendo retomada na Câmara.

– Negociado sobre legislado (até sobre a CLT): o ministro do Trabalho de Temer afirmou, em entrevistas, que o governo é favorável à flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e vai “prestigiar” as convenções coletivas para decisões sobre jornada e de salário: “A CLT virou uma ‘colcha de retalhos’ que permite interpretações subjetivas”, segundo o ministro. Ainda, o Supremo Tribunal Federam (STF) tem dado subsídios para a mudança de interpretação de diversas leis trabalhistas, entre elas a prevalência do negociado sobre o legislado, o que retiraria a necessidade de alteração das leis em si.

Diversas das propostas discutidas justificam-se pelo argumento de “proteger o trabalhador” em um contexto de informalidade ou vulnerabilidade, mas, em vez de atacar o problema e permitir condições dignas, as medidas caminham no sentido de tornar legais relações de trabalho com menos direitos: reduzir a informalidade ao transformar o que é informal em formal não resolve o problema da precariedade, mas o mascara. Assim, não se altera para melhor a situação concreta do trabalhador: pelo contrário, na maioria dos casos, a perspectiva é de piora.

A tendência para a flexibilização abre espaço para a perda de direitos pura e simples ou para a possibilidade de negociação com o empregador, que também dá margem a pressão para aceitar piores condições e maior precarização. Assim, abrindo espaço para tais propostas, o governo joga a conta da crise para os trabalhadores, como já tem sido indicado pela redução do montante da massa salarial em 2016 (PNADC) e piora dos vínculos trabalhistas, com o aumento da informalidade e do desemprego.

É possível ainda, como comentado anteriormente, que não seja necessário modificar as leis trabalhistas para que seja aprovado um processo de flexibilização e/ou perda de direitos no mercado de trabalho: caso o judiciário modifique sua interpretação do regramento jurídico já existente, como tem ocorrido, é possível que uma reforma ocorra, o que poderia minimizar o efeito da oposição a tal medida nas ruas e no Congresso.

Reforma da Previdência

O ano foi marcado pela discussão sobre a reforma da Previdência. Ainda no início de 2016, o então ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, já discutia a necessidade de realizar uma reforma da Previdência1. Com o governo golpista, no entanto, a discussão foi encaminhada com mais decisão. Tal sinalização foi claramente dada pelo Ministério da Fazenda, ao qual se subordina a pasta da Previdência no governo golpista.

Uma das propostas discutidas seria a da equalização da idade mínima para aposentadoria entre homens e mulheres, mas a pretensa equalização das idades esconde uma realidade de desigualdade no mercado de trabalho, sobrecarregando mais as mulheres em sua dupla jornada (trabalho remunerado e trabalho doméstico). A discussão por parte do governo golpista e da grande mídia também não levou em consideração, em 2016, que a Previdência Social tem um papel importantíssimo no combate à desigualdade no Brasil.

Ainda, especialistas alertaram durante o ano que não existe déficit da Previdência, pois, ao se considerarem todas as receitas e despesas do Sistema de Seguridade Social (formado pela saúde, assistência e Previdência Social), no ano de 2014 o superávit atingiu mais de R$ 53 bilhões. Seria necessário, sim, reformar a Previdência, mas de forma a incluir os 37 milhões de trabalhadores que ainda não têm acesso ao sistema. No entanto, ao escolher reformar a Previdência sob o argumento de “justiça social” (mas que penalizará os trabalhadores e os mais pobres) e não propor alterar o sistema tributário ou reduzir os juros, o governo golpista mostra seu lado na luta distributiva.

Limite ao crescimento do gasto primário

Se no governo Dilma já se falava de uma proposta de novo regime fiscal, o governo ilegítimo de Temer apresenta uma proposta radical: a de um novo regime fiscal com os gastos primários sendo corrigidos somente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) durante vinte anos. Tal proposta, a PEC 55 (antes 241) tem sido aprovada em todas as instâncias, apesar de sua grande impopularidade e, inclusive, dos protestos de estudantes em todo o país, que se organizaram na ocupação de escolas e universidades.

Em 2016, também foi aprovada na Câmara a ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) de 20% para 30% e a desvinculação dos gastos constitucionais.

Educação: entre o setor privado e as ocupações

A reforma da educação no Brasil, com o governo ilegítimo, está passando pelo crivo de bilionários brasileiros2, representantes de fundações e de institutos de empresas privadas, o que é demonstrado tanto pelos convidados escolhidos para debates sobre o tema no Congresso quanto pela composição de quadros-chave do governo Temer na área da educação3. Tal fato tem o potencial de ampliar a privatização da educação e a reprodução da lógica da gestão privada dentro da educação pública (um risco, diga-se de passagem, não só para a educação, mas para a questão social como um todo no ano de 2016).

Assim, em 2016 aumentou o acesso de alguns desses grupos de interesses privados aos recursos públicos, em detrimento dos gastos sociais que fizeram grande diferença na vida de milhões de brasileiros nos últimos anos: enquanto diversos personagens do governo Temer defendem a privatização de diversos aspectos da política social e econômica brasileira, muitos mantém laços com grupos que se beneficiariam dessas privatizações.

Se, de um lado, o setor privado tem ganhado mais espaço no governo golpista, de outro a juventude marca presença ao lutar por direitos: em 2016, alunos secundaristas e universitários seguem firmes nos protestos em todo o Brasil contra a PEC 55 (antes PEC 241) e contra a Medida Provisória 746, que estabelece mudanças no ensino médio. Além de mais de mil escolas e institutos federais, há dezenas de universidades ocupadas.
Ambas as medidas (PEC 55 e MP 746) foram propostas sem discussão social condizente, dado o peso que ambas representam para o futuro do gasto social (no caso da PEC 55) e para o futuro da educação (PEC 55 e MP 746). Considerando a educação, ambas podem afetar os objetivos consolidados no Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014 como uma espécie de rumo para os avanços na área: na prática, especialistas apontam que a PEC inviabiliza o cumprimento de itens do PNE4. Além disso, o teto para o gasto federal proposto pelo governo Michel Temer afeta diretamente a educação: será a área a sofrer a freada mais brusca na expansão de gastos se for corrigida somente pela inflação, como diversos estudos mostraram5.

Especificamente quanto ao nível superior, de 2003 em diante, medidas como o Prouni e Reuni ampliaram o acesso ao ensino. A instituição das cotas também ajudou a democratizar o acesso às instituições e o perfil dos estudantes foi sendo modificado ao longo dos anos, tornando o ensino superior mais acessível a negros, estudantes provenientes de famílias de baixa renda etc6. No entanto, a ampliação do acesso tem desacelerado segundo dados do próprio Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). No contexto do governo golpista, tal fato coloca em risco a inclusão no ensino superior, já que instituições de ensino superior públicas se veem afetadas por cortes, bem como os programas Prouni e Fies. Assim, as medidas adotadas pelo governo golpista de cortes na educação pública e nas políticas públicas de financiamento em 2016 podem não só agravar a desaceleração do acesso, mas também promover uma elitização do ensino superior.

Saúde

Na saúde, o ano foi marcado pelo drama do Zika, que se espalhou pelo país junto ao Chikungunya e à Dengue, porém com o agravante de estar associado a má-formação em fetos. O Zika expôs as diversas desigualdades e precariedades que assolam as mulheres brasileiras no que diz respeito ao acesso a saúde, saneamento e direitos reprodutivos, ainda mais em um cenário de cortes de gastos sociais.

Também, com o início do governo golpista vieram declarações absurdas do ministro da Saúde Ricardo Barros, como a proposta de rever o Sistema Único de Saúde (SUS), a fala de que pesquisadores que defendem um sistema universal de saúde “não são técnicos, nem especialistas, são ideólogos que tratam o assunto como se não existisse o limite orçamentário, como se fosse só o sonho”, entre outras. Frequentemente, o ministro atacou, em 2016, a saúde como “direito de todos e dever do Estado”, de acordo com a Constituição.

Por outro lado, o ministro vê com bons olhos a ampliação da privatização na saúde, ao propor que fossem adotados “planos populares” de saúde, a fim de desonerar o SUS.

É importante ainda lembrar que o ministro teve a campanha eleitoral para deputado federal financiada em parte por um dos principais operadores de planos de saúde do país.

Direitos individuais e questão racial

A Medida Provisória nº 726, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de maio de 2016 (já no governo golpista, com ministros homens, brancos e mais velhos), estabeleceu a reforma ministerial, extinguindo o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos criado pela MP 696/2015, em claro retrocesso para a pauta da igualdade.

Com o golpe, abre-se grande espaço para a regressão no campo dos direitos individuais (como direitos das mulheres e LGBT), com o avanço do poder de grupos fundamentalistas. Uma questão que esteve no debate público, diante do caso de adolescente que sofreu estupro coletivo em 2016, é o PL 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha, que exige exame de corpo de delito em mulheres para que comprovem um estupro, isto é, na prática dificulta o atendimento às vítimas e silencia ainda mais sua voz. Também, a secretária especial de Políticas para as Mulheres Fátima Pelaes apontou que não defenderia “bandeiras contrárias aos valores bíblicos”, como o aborto e a constituição livre de família. Tem-se, assim, uma dimensão do crescimento de setores fundamentalistas dentro do governo Temer.

Horizonte para o social

Ficou claro em 2016 que, por trás do golpe, há um projeto de retrocesso não apenas nas conquistas dos governos liderados pelo PT desde 2003 (e a continuidade de programas internacionalmente reconhecidos), mas nos direitos da Constituição de 1988 e até de conquistas da década de 1940 (como a CLT). Tal projeto conta com o apoio de grandes setores do empresariado e da mídia tradicional – que pressionavam o governo Dilma no início do ano pela adoção de sua agenda, como forma de sair da “paralisação” em que ainda se encontra o país -, que ganha um aliado com a ascensão de Temer.

Nesse ano em que organizações internacionais apontam a necessidade de reforço das políticas sociais de forma a reduzir os impactos da crise para a população, o governo mostrou ir na tendência contrária, de questionamento e redução de programas sociais supostamente por uma preocupação fiscal. O governo Temer abriu espaço em 2016 não só à precarização do acesso aos direitos sociais, mas também aos interesses de poderosos grupos privados em diversos setores ao colocar seus representantes em cargos chaves: a questão fiscal é um problema quando se trata de gastos sociais ou direitos, mas não quando se discutem incentivos dados a grandes grupos empresariais ou à alta classe social.

Assim, mesmo que a economia se recupere no curto prazo, isso ocorrerá em um patamar de mais desigualdade, menos direitos e menos instrumentos para o combate à pobreza.

1. Reforma Fiscal de Longo Prazo, Nelson Barbosa http://www.slideshare.net/MinisterioFazenda/reforma-fiscal-de-longo-prazo
2. Conheça os bilionários convidados para “reformar” a educação brasileira de acordo com sua ideologia https://theintercept.com/2016/11/04/conheca-os-bilionarios-convidados-para-reformar-a-educacao-brasileira-de-acordo-com-sua-ideologia/
3. Lobby de ensino privado volta a demonstrar força junto a Mendonça Filho http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/237014/Lobby-de-ensino-privado-volta-a-demonstrar-for%C3%A7a-junto-a-Mendon%C3%A7a-Filho.htm
4. Brasil tem de investir R$ 225 bi a mais para cumprir Plano Nacional de Educação http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-11/brasil-tem-de-investir-r-225-bi-mais-para-cumprir-plano-nacional-de
5. Educação em risco sob a política econômica de Temer-Meirelles http://www.ihu.unisinos.br/noticias/556453-educacao-em-risco-sob-a-politica-economica-de-temer-meirelles
6. 2 em 3 alunos de universidades federais são das classes D e E http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,2-em-3-alunos-de-universidades-federais-sao-das-classes-d-e-e,10000070529

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