Ano 1 – nº 10 – Dezembro 2016

Novos arranjos globais

Já há alguns anos os arranjos internacionais criados e redesenhados no início da década de 1990 mostram sinais de retração. Ao longo dos anos 2000, particularmente a partir de sua segunda metade e com graus variados de sutileza, vimos a emergência de formas de contestação internacional da hegemonia neoliberal do pós-guerra fria, tais como a consolidação da China e suas estratégias de cooperação, comércio e investimentos; iniciativas mais autônomas de integração regional na América do Sul; e o fortalecimento de fóruns e articulações internacionais como o G20 e os Brics. Neste mesmo período, diante da crise do regime multilateral de liberalização comercial – agravada pela eclosão da crise econômica internacional em 2008 – e da impossibilidade de se avançar na harmonização normativa internacional em temas sensíveis (como propriedade intelectual, investimentos, serviços e compras governamentais, por exemplo), os Estados Unidos e a União Europeia focaram em negociações comerciais fora da Organização Mundial do Comércio (OMC), entre as quais destacam-se os chamados “mega-acordos” comerciais: a Parceria Transpacífica (TPP; negociações já concluídas, aguardando ratificação dos Parlamentos), a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos entre Estados Unidos (EUA) e União Europeia (TTIP; em negociação) e o Acordo sobre Comércio de Serviços (TiSA; em negociação). Contudo, dados os efeitos da crise econômica, não apenas a OMC, mas também esta agenda de liberalização comercial vêm enfrentando dificuldades, que ficaram mais evidentes em 2016, com o aumento da oposição dos europeus e, sobretudo, a promessa de Trump de se retirar do TPP e de outros acordos comerciais.

Dentro desta contextualização geral, o ano de 2016 trouxe incertezas. Por um lado, o golpe no Brasil – acompanhado do primeiro ano do governo Macri na Argentina e do aprofundamento da crise na Venezuela – apontam o avanço conservador na região e o desmantelamento das iniciativas de integração da última década, entre elas o desmonte do Mercosul, em curso desde julho. Por outro lado, nos próprios países do centro capitalista, o avanço do projeto de globalização neoliberal foi posto em xeque por segmentos da população que viram na eleição de Donald Trump e na saída do Reino Unido da União Europeia a possibilidade de expressar seu descontentamento com a precarização do emprego e dos níveis de vida.

Embora em ambos os casos seja pouco provável que os projetos vitoriosos pretendam e/ou possam de fato atender este descontentamento, Trump e o Brexit foram capazes de canalizar insatisfações diversas em torno de discursos extremamente conservadores anti-imigração. Ainda que os contextos específicos sejam muito diversos e que quaisquer tentativas de generalização tenham uma capacidade explicativa bastante limitada, 2016 trouxe sinais preocupantes de avanço conservador em diversos cenários: xenofobia e elementos de um nacionalismo étnico na Europa; aspectos religiosos contra políticas de gênero e, em geral, contra os direitos de segmentos mais vulneráveis da população (como no Brasil e na Colômbia); e uma mistura destes vários elementos no caso dos EUA.

O destaque e a discussão de alguns fatos que marcaram o ano de 2016 não têm a pretensão de serem exaustivos, mas tão somente lançar insumos para o debate. Nesta empreitada reconhecidamente incompleta, 2016 se destaca pelo avanço conservador na América Latina, mas também pelo progresso na normalização das relações entre Cuba e EUA e pela proximidade do fim definitivo do conflito na Colômbia, apesar da derrota dos acordos de paz no referendo; pela vitória de Trump nos EUA, mas também pelo desempenho inédito de um candidato de esquerda dentro do Partido Democrata; pela primeira manifestação concreta de desagregação do projeto de integração europeu com a vitória do Brexit e pelo desgaste de partidos tradicionais da social-democracia no continente, mas também pela articulação de novos protestos, do #nuitdebout – versão francesa dos indignados espanhóis, que surgiu em reação à reforma trabalhista de Hollande; e pelas mulheres polonesas, em protesto contra o governo conservador e um projeto de lei que retrocede nas políticas de aborto.

América Latina

Na Argentina, o primeiro ano de governo Macri trouxe inflação de quase 40% ao ano, ocasionada pelo fim do controle cambial e da desvalorização do peso frente ao dólar, bem como pelo aumento no preço de serviços subsidiados, como transporte e energia. O país registrou crescimento da pobreza e queda real de salários devido aos ajustes abaixo da inflação, às demissões em massa e ao aumento de preços de produtos agrícolas no mercado interno por conta do fim das retenções às exportações. Ao longo do ano, este cenário levou centenas de milhares de pessoas às ruas e estimulou greves e mobilizações sindicais por todo o país.

Houve retrocessos também no tema da justiça e da reparação pelas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, com a diminuição de pessoal e recursos nas instituições responsáveis. Na política externa, Macri sinalizou a disposição de reorientar o alinhamento argentino, associando-se como observador à Aliança do Pacífico e estabelecendo uma agenda de cooperação com os EUA em diversos assuntos, dentre os quais o monitoramento da tríplice fronteira e a política de drogas, retomando uma perspectiva militarizada sobre o tema.

No começo de 2016, os bolivianos foram às urnas para votar sobre a reforma de um artigo da Constituição que permitiria a candidatura do presidente da República a uma segunda reeleição consecutiva. Por uma estreita margem (2,6% dos votos) o eleitorado rejeitou a reforma constitucional, o que impede uma nova candidatura de Morales nas eleições em 2019.

Os resultados regionais indicam a manutenção da tradicional base de apoio indígena e camponesa a Evo, mas uma perda de apoio entre eleitores das grandes cidades e das regiões opositoras da chamada meia lua, como o departamento de Santa Cruz. Embora não sejam fiéis ao MAS, o partido vinha conquistando votos nestes setores no último período. Após a polarização nos anos iniciais, a partir de 2010, os êxitos do governo, bem como uma estratégia pragmática com relação à oposição levaram a um crescimento na base política do partido, inclusive com a filiação ao MAS de políticos oriundos da oposição. Até o momento, a oposição não tem um projeto alternativo ou uma liderança que unifique os setores contrários ao governo. Apesar disso, o caráter plebiscitário de apoio ou não ao governo adquirido pela votação facilitou a aglutinação destas forças na campanha do Não. Alguns analistas comentam que, pela primeira vez, Morales não teve uma agenda clara para aprofundar as mudanças no país (a campanha pelo Sim centrou-se na manutenção da estabilidade e na defesa das conquistas).

Na Venezuela, a vitória da oposição nas eleições parlamentares de dezembro do ano passado abriu caminho para uma crise institucional e para a intensificação das tentativas de destituição do presidente Nicolas Maduro (que já se arrastavam desde sua eleição, inclusive por meios de desestabilização escancarada em torno do uso da violência num cenário de conflito social). Ao longo de 2016, as disputas em torno das etapas para a convocação de um referendo revogatório do mandato paralisaram o país e contribuíram para o agravamento da crise econômica e social, oriunda da dependência quase total do Estado venezuelano das exportações de petróleo e da queda brutal dos preços do barril nos últimos anos, corroendo a base de apoio do chavismo.

Desde sua fundação, a presidência pró-tempore do Mercosul é exercida rotativamente pelos membros do bloco, em ordem alfabética. A reunião de presidentes, que ocorreria inicialmente em julho, foi seguidamente cancelada: por iniciativa do Brasil, do Paraguai e da Argentina, a transmissão da presidência à Venezuela foi suspensa, deixando um vácuo na condução do Mercosul que se mantêm até o momento. A iniciativa cumpriu um duplo papel, ao contribuir com a oposição venezuelana na deslegitimação do governo e ao fragilizar o Mercosul, abrindo caminho para seu futuro desmantelamento, como prega o ministro José Serra. Em âmbito hemisférico, a ofensiva contra a Venezuela não é nova, sobretudo por parte dos EUA. Contudo, tiveram pouca ressonância ao longo dos anos 2000, no bojo do fortalecimento de uma série de iniciativas regionais autônomas por parte dos governos de esquerda da região – como a Unasul e a Celac. Com a vitória da oposição nas eleições parlamentares na Venezuela e o aprofundamento da crise econômica, política e social no país, a reorientação da política externa para a integração a partir da vitória de Macri na Argentina e do golpe no Brasil, o cenário atual é muito mais delicado. O impasse no Mercosul se soma às iniciativa no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e indica pressões crescentes para isolar o governo Maduro.

Na Colômbia, o ano foi marcado pelas expectativas de conclusão do histórico acordo de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), frustradas pela rejeição do texto final no referendo popular após quatro anos de negociação em Havana. O resultado foi uma clara vitória para o ex-presidente Álvaro Uribe, principal opositor das negociações. O acordo histórico poria fim à mais longa guerra civil no continente que, em 52 anos, deixou cerca de 220 mil mortos e aproximadamente seis milhões de refugiados e deslocados internos. Além disso, o fim do conflito abriria caminho para mudanças políticas em médio e longo prazos no país, já que ao longo deste período a guerra foi o componente estruturante da vida política colombiana, alimentando as posições mais conservadoras e militarizadas da direita, sendo a principal porta de entrada para a presença militar dos EUA na América do Sul, servindo de base para a perseguição de sindicalistas e lideranças sociais e constrangendo as alternativas da esquerda democrática. Ao adotar uma perspectiva de transição, o acordo buscava conciliar justiça e a consolidação da paz, estabelecendo o direito das vítimas à reparação e à verdade e reconhecendo as Farc como um ator político que deve ser integrado ao sistema político colombiano. Para este fim, o acordo estabelecia a criação de uma jurisdição especial para a paz, que deveria julgar os delitos e crimes da guerrilha e de agentes do Estado durante o conflito. Seguindo os princípios do Direito Internacional Humanitário e do Direito Penal Internacional, crimes de guerra e de lesa-humanidade não poderiam ser anistiados, mas poderiam ter pena reduzida caso houvesse reconhecimento por parte do acusado e compromisso com a verdade. Outros delitos, como rebelião, sedição e mortes durante combate (compatíveis com as convenções de Genebra) poderiam ser anistiados. Recentemente, um novo acordo foi assinado pelo governo e as Farc, na tentativa de se incluir os pontos da oposição, dentre os quais redução do financiamento para o futuro partido que deve ser formado a partir da desmobilização da guerrilha e a reformulação de pontos relativos ao reconhecimento das mulheres como principais vítimas do conflito, de forma a minimizar o que foi chamado pelos setores religiosos de “ideologia de gênero”. Até o momento não há acordo com a oposição sobre o novo texto e tampouco há clareza sobre os mecanismos de aprovação.

Em março, o presidente dos EUA, Barack Obama viajou a Cuba. Ainda que temas difíceis, como o fim do bloqueio e a devolução da base de Guantánamo não fossem esperados para este encontro (pois dependem de aprovação do Congresso dos EUA), a viagem significou um marco importante nas relações bilaterais. Além da reunião com o presidente Raúl Castro, a agenda incluiu encontros com organizações da sociedade civil e com dissidentes cubanos, bem como uma cúpula empresarial, com a participação de diversos líderes empresariais das áreas do turismo, alimentos, mídia digital, vestuário, financeira, entre outras, que integraram a comitiva de Obama. A viagem em parte foi lida como uma tentativa de Obama de consolidar a aproximação obtida até o momento e dificultar eventuais retrocessos com a mudança de governo nos EUA a partir de 2017. Com a vitória de Trump e a maioria republicana nas duas casas legislativas, não há informações claras sobre o futuro desta aproximação. Embora os republicanos sejam bastante associados ao lobby dos exilados cubanos na Flórida, por exemplo, interesses de setores imobiliários e hoteleiros, dos quais o próprio Trump é um representante, podem contribuir para uma abordagem pragmática.

Europa

Há mais de uma década amplos setores da população de diversos países europeus emitem sinais de descontentamento frente à orientação neoliberal da União Europeia e suas instituições. O Tratado de Maastricht, de 1992, consolidou a integração europeia como um processo de criação de mercado (com eliminação de barreiras comerciais e aumento na competição), em detrimento de procedimentos reguladores. O modelo da União Europeia (UE) se baseia na competição entre os Estados por investimentos, locais de produção e empregos e na política fiscal nacionalmente determinada para gerar “vantagens comparativas” (baixos impostos, baixos salários, baixos custos de produção). A Alemanha tem perseguido uma política agressiva de compressão da inflação, dos salários e da demanda interna, por maior competitividade internacional. Tais políticas encontram expressão também nos países do Leste europeu, integrados em cadeias produtivas lideradas pela indústria alemã. Neste cenário de competição intrabloco, os déficits acumulados e as dívidas nos países do sul da Europa são o outro lado da moeda dos superávits produzidos em países como Alemanha, Holanda e Finlândia.

Já no início dos anos 2000, esta insatisfação se manifestou na rejeição ao Tratado Constitucional da UE em referendos na França e na Holanda. Desde a explosão da crise econômica em 2008, a combinação entre o aumento das taxas de desemprego (sobretudo nos países do sul da Europa), a precarização do trabalho e os corte de gastos públicos com políticas mais duras de austeridade têm provocado o aumento da desigualdade em praticamente toda a região.

Neste cenário, o Brexit, em 2016, foi o episódio mais recente e dramático de uma tendência em curso. Votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia 52% dos eleitores. Como foi amplamente divulgado pela imprensa, o voto pela saída foi majoritário entre os segmentos de menor renda e escolaridade, fora dos centros urbanos, ao passo que a permanência obteve apoio principalmente entre os mais escolarizados e com maiores rendimentos. Os critérios socioeconômicos, no entanto, não esgotam o mapa da votação. O apoio à permanência transcendeu as divisões de classe em casos nos quais há questionamentos da identidade britânica – como na Escócia e na Irlanda do Norte – e entre os mais jovens.

Eleitoralmente, a principal vitória foi da direita, já que uma parcela do Partido Conservador e o Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP) foram os principais porta-vozes da campanha pela saída. Contudo, politicamente, a análise precisa ser qualificada. O projeto europeu de integração passou por modificações importantes entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, assumindo claramente um viés neoliberal. Ainda naquele momento, a disputa pelo futuro da integração foi vencida pelos setores econômicos do capital mais transnacionalizados, com interesse num projeto de integração inserido e aberto à globalização.

Paralelamente, teve início uma crescente convergência entre a democracia cristã e a social-democracia em torno deste modelo. Estas tendências se tornaram mais dramáticas após a crise de 2008, que intensificaram o desemprego, a precarização do trabalho, o empobrecimento relativo e o aumento nos níveis de desigualdade. No Reino Unido a convergência se refletiu na chamada terceira via, liderada por Tony Blair nos anos 1990 e seguida majoritariamente pelo partido até o ano passado, quando passou a ser disputada internamente com a eleição Jeremy Corbyn. Este quadro ajuda a explicar porque a parcela mais atingida pelas políticas neoliberais do Reino Unido e da UE tenha se inclinado a votar pela saída do bloco. Contudo, embora este voto possa ser qualificado como um “voto de esquerda”, são os setores mais conservadores e portadores de discursos anti-imigração que têm conseguido canalizar de forma mais imediata este descontentamento.

Até o momento as incertezas permeiam a saída efetiva do Reino Unido do bloco e os eventuais impactos na UE e em eleições nacionais no próximo ano (França e Alemanha). Com o desgaste da social democracia, em vários países há um crescimento expressivo da extrema direita, alimentado por discursos xenófobos contra refugiados e imigrantes. A Frente Nacional de Marine Le Pen é a expressão mais visível e comentada desta tendência, que também tem crescido na Alemanha, na Dinamarca, na Áustria, na Suécia, na Finlândia e em diversos países do Leste Europeu.

Por outro lado, sobretudo nos países do sul da Europa, este cenário também tem levado ao surgimento de novos movimentos de esquerda e de frentes antiausteridade. Na Grécia, após o auge da crise em 2015, o governo do Syriza manteve as tentativas de reestruturação da dívida ao longo de 2016, por enquanto sem perspectiva de que a Alemanha ceda antes das eleições de 2017. Em Portugal, este foi o primeiro ano do governo encabeçado pelo Partido Socialista que, com apoio inédito do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português, conseguiu implementar algumas medidas como a reversão da jornada de trabalho para 35 horas semanais e um imposto patrimonial para propriedades de luxo. Na Espanha, 2016 foi marcado por um longo impasse para a formação de um novo governo, após duas eleições nas quais nenhum partido foi capaz de conseguir maioria legislativa, sinalizando o fim do bipartidarismo e a emergência do Podemos como terceira força política do país. O novo governo do conservador Partido Popular foi aprovado somente no final de outubro, com a abstenção do PSOE e dez meses após a primeira eleição em dezembro do ano passado.

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