Panelaços e apitaços foram ouvidos em algumas regiões do Brasil, na noite de terça-feira. Ao que parece, trata-se daquela parcela que bate panela a favor de amplos poderes para procuradores mas se cala diante da violência policial ou dos desmandos da PEC 55, por exemplo; os mesmos paneleiros que pediram a saída da presidenta Dilma Rousseff, democraticamente eleita, em nome de uma suposta luta contra a corrupção.

Elaboradas pelo Ministério Público, as dez medidas contra a corrupção foram assinadas por mais de dois milhões de pessoas, todas convencidas pela mídia e pelo próprio MP, que não poupou recursos para vender seu projeto, e apresentadas ao Congresso Nacional em 29 de março deste ano. Na Câmara, passaram a tramitar por meio do Projeto de Lei 4850/2016, apresentado por integrantes da Frente Parlamentar Mista de Combate à Corrupção.

No sentido contrário, Eugênio Aragão, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) desde 1997, que já foi cotado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou em texto recente (leia a íntegra aqui) que “nunca é demais reafirmar que as chamadas ’10 medidas’ são objeto de intensa publicidade feita com recursos públicos. Nada têm de iniciativa popular, mas, sim de iniciativa corporativa vendida como remédio necessário para o ‘combate à corrupção’ e, em verdade, não passa de um grande engodo para que a sociedade venha a aceitar restrições a garantias fundamentais. Assinaram-na 2 milhões de incautos ou desinformados, havendo, antes, a opinião pública, sido bombardeada com notícias e editoriais que vendiam a corrupção como o maior mal do país. Uma autêntica campanha de argumentos ad terrorem”.

Segundo ele, “por detrás de tudo está um projeto de poder corporativo, que torna os órgãos do complexo policial-judicial intangíveis pelos abusos que vêm cometendo em suas ruidosas investigações por forças-tarefa”.

Aragão também critica o MP, afirmando que o mesmo “não tem se revelado uma instituição merecedora de tamanha confiança que lhe permita agir sub-repticiamente contra a cidadania. Tem evoluído, isto sim, a um monstrengo indomável pelo estado democrático de direito, megalomaníaco, a querer sufocar todos outros formadores da vontade política da Nação. Quer-se ungido por indiscutível superioridade moral que, no fundo, não passa de arrogância e prepotência. Querer qualificar isso de “avanço democrático” é o cúmulo da falta de auto-crítica. Avanços democráticos se fazem, antes de mais nada, defendendo a constituição e não agindo contra ela”.

Lenio Luiz Streck, jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito, que integrou por anos o Ministério Público e hoje é sócio do escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados, mostrou em artigo publicado no site do Consultor Jurídico alguns dos perigos que a população corre ao dar amplos poderes ao MP.

“Alguns agentes do Ministério Público Federal estão apresentando uma solução facilitadora para o grave problema da corrupção. Ao proporem as 10 medidas anticorrupção os autores estão jogando a criança fora junto com a água suja. Querem fragilizar direitos que foram conquistados a duras penas neste país tristemente marcado por ditaduras ao longo de sua história. Demoramos tanto tempo para conquistar uma Constituição democrática e agora estamos tomando um rumo perigoso, capaz de colocar em risco os avanços. Tanto a corrupção como a impunidade são verdadeiras pragas que agridem a sociedade. A grande questão é a seguinte: o que estamos dispostos a sacrificar em nome do combate à corrupção? Vamos, por exemplo, relativizar as garantias constitucionais? Abrir mão do Habeas Corpus? Fazer valer prova ilícita?”, questiona Streck em seu longo artigo que pode ser lido na íntegra aqui.

“O que quero dizer é que estou muito preocupado com o rumo que o Direito está tendo no país. Estamos esticando demais a corda. O moralismo pode nos arrastar para o abismo, rompendo o pacto da modernidade”, lembrou Streck.

A votação
Após 15 horas de sessão, a comissão especial da Câmara encarregada de votar o pacote de medidas anticorrupção aprovou por unanimidade na noite de quarta-feira, dia 23 de novembro, o texto do relator, o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS). O Projeto de Lei (PL 4850/16) reúne 12 propostas para inibir crimes de desvio de dinheiro e práticas ilícitas no país.

O líder do PT na Câmara, Afonso Florence (BA), criticou a tentativa de chantagem de membros da força-tarefa da Lava Jato contra o Congresso, ao ameaçarem renunciar aos seus cargos caso seja sancionada o projeto que pune magistrados e procuradores por abuso de autoridade. “Não dá para querer chantagear a opinião pública. Nós somos os legisladores, eles (os procuradores) usam os instrumentos aprovados no Congresso e sancionados pelo presidente da República”, frisou o líder.

O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que integra a comissão que debateu as medidas em artigo publicado no portal PT na Câmara, explica que “a campanha pela aprovação das Dez Medidas reuniu amplo apoio popular e, em determinado momento, foi instrumentalizada por movimentos radicais de direita, que agrediram deputados e deputadas, e nos acusaram de defender posições que não são e nunca foram as nossas. Vamos continuar atuando com a premissa correta: o Brasil foi dotado nos últimos anos de legislações eficientes no enfrentamento da corrupção, como a Lei da Transparência e a Lei de Combate à Corrupção, e é nosso dever construir mecanismos que aperfeiçoem esse combate, sem provocar desequilíbrio na relação acusação versus defesa nem rasgar direitos e princípios constitucionais”.

Segundo o deputado Elvino Bohn Gass (PT-RS) não existe retaliação alguma e não é possível que alguém considere razoável aprovar um dispositivo que cria duas categorias de cidadãos: os que são iguais perante a lei e os que estão acima dela.

A quem serve jogar a Constituição no lixo? É, de fato, um pacote anticorrupção ou um espetáculo para alívio da ira de uma sociedade cotidianamente estimulada ao ódio, à intolerância e, principalmente, ao desprezo pela democracia? E, ao fim e ao cabo, a quem serve o lobby corporativo que se organiza não mais nas sombras, mas sob os holofotes e em cadeia nacional, para transformar um segmento do funcionalismo público em uma casta superior, despida de controle público e agravando as aberrantes regalias que goza (vem logo a lembrança da juíza que vendia sentenças ao tráfico e que obteve como punição a aposentadoria com salário integral)? E quais serão as consequências de um “efeito guarda da esquina na Ditadura”, ou seja, a ação sem regras do judiciário nas instâncias menores a baixar o tacão de ferro com força maior sobre os mais desprotegidos da sociedade?

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