Judicialização da política
Passado o processo de impeachment, os tribunais de primeira instância e do Supremo Tribunal Federal (STF) aprofundam o processo de judicialização da política, iniciado com o julgamento da AP 470 e intensificado na Operação Lava Jato.
Um dos novos destaques deu-se em torno da prisão do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que convocou Michel Temer e o ex-presidente Lula como testemunhas de sua defesa no processo da Lava Jato. O pedido foi deferido pelo juiz Moro. Temer informou que vai depor por escrito e Lula deverá ser ouvido por videoconferência em 30/11, na Justiça Federal, em São Bernardo do Campo. O pedido de Cunha também inclui outros políticos, como o ex-ministro Henrique Alves (PMDB), o ex-senador Delcídio do Amaral, o ex-ministro Guido Mantega (Fazenda) e o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), como suas testemunhas de defesa.
O ativismo judiciário não se demonstra apenas na primeira instância, mas também nas instâncias máximas. Um dos principais fatos diz respeito ao ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes. Ele, que até poucos meses atrás aplaudia a ofensiva da Lava Jato contra o PT, passou a criticar a atuação do juiz Sergio Moro e dos investigadores do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) desde que nomes do PSDB e PMDB passaram a ser destaque. Mendes os acusou de corporativismo, devido à utilização da operação para garantir privilégios aos membros do Judiciário e do MP, e criticou os excessos cometidos, destacando o alto número de prisões preventivas.
A preocupação de Mendes em relação a determinado lado do espectro político, no entanto, não diminui a ofensiva contra o PT e Dilma na ação sobre as contas da campanha presidencial de 2014, reaberta após a aprovação unânime com parecer favorável do Ministério Público. Em palestra no exterior, afirmou que a campanha teria custado quatro vezes o valor declarado, chegando a cerca de R$1,3 bilhão. Dilma rebateu, reafirmou que as contas haviam sido aprovadas por unanimidade, e lamentou mais uma vez a conduta partidarizada do ministro.
A ação envolve também Michel Temer, que compunha a chapa PT-PMDB. Há uma tentativa de separar a ação e julgar em separado as contas da campanha, o que Mendes e Luiz Fux defenderiam. Tal movimentação teria como objetivo livrar Temer de uma eventual cassação, visto que a condenação da chapa presidencial eleita em 2014 no TSE forçaria novas eleições indiretas a partir de 2017. No entanto, tal discurso parece ter sofrido um duro revés depois que a defesa de Dilma divulgou um cheque de um milhão de reais pago pela construtora Andrade Gutierrez a Michel Temer, referente à campanha de 2014.
Intensificando a crise dos três poderes, a Polícia Federal prendeu, em 21/10, quatro policiais legislativos do Senado suspeitos de atrapalhar investigações da Operação Lava Jato, na Operação Métis. Segundo as investigações, são suspeitos de localizar e destruir escutas telefônicas autorizadas pelo STF. A ação contou com o apoio do MPF e foi solicitada pela Procuradoria Geral da República.
O presidente do Senado e do Congresso Nacional, Renan Calheiros (PMDB-AL), criticou a ação: “As instituições, assim como o Senado, devem guardar os limites de suas atribuições legais”. Renan afirmou que a Polícia Legislativa age dentro da lei, que o Senado colabora com as apurações e argumentou que a ação feriu o princípio da separação de poderes, uma vez que a decisão de realizar a operação nas dependências daquela casa não seria da competência de um juiz de primeira instância, mas sim do Supremo. O peemedebista disse que vai acionar o STF para que a Corte fixe os limites de atuação de magistrados no país.
Renan fez também duras críticas ao ministro Alexandre Moraes, alegando que houve abuso de autoridade. Disse que o ministro atua como chefe de polícia. Acusou a PF de utilizar métodos fascistas, com o objetivo de intimidar o Senado. Com isso, Renan aprofundou uma crise institucional entre o Senado, a Justiça Federal e o Executivo.
As declarações de Renan foram rebatidas pela presidente do STF, Carmen Lúcia, que exigiu respeito ao Judiciário por parte do Legislativo e Executivo, afirmando que o juiz é essencial em uma democracia. Afirmou que “Poder Judiciário forte é uma garantia para o cidadão”.
Paralelamente, a presidenta do Supremo pediu julgamento de ação que impede réus em processo no órgão de ocupar cargos na linha sucessória da presidência da República, um dos motivos que afastaram Eduardo Cunha da presidência da Câmara. Na ausência do presidente da República e do presidente da Câmara, o cargo ficaria com Renan Calheiros. O processo ameaça a permanência de Renan na presidência do Senado, uma vez que ele responde por nove inquéritos no Supremo.
O clima seguiu tenso dentro do próprio STF. Em meio a uma sessão da Corte, os ministros Lewandowski e Mendes discutiram acaloradamente e trocaram acusações após este último pedir vistas em um processo, o que Lewandowski chamou de “pedido um pouco inusitado”. Mendes acusou Lewandowski de já ter feito coisas mais heterodoxas, citando a condução do ex-presidente do STF no processo de impeachment de Dilma, no Senado.
Criminalização dos movimentos sociais
Não obstante, perante a população, a situação do governo, que tem sido alvo de manifestações incessantes, também não é confortável. Com as medidas anunciadas, sobretudo a PEC 241 (atual 55, no Senado), que congela o teto de gastos públicos, os movimentos sociais ganham força e provocam a maior onda de protestos até então em todo o país.
Pela regra atual, a União tem a obrigação de investir 18% da receita líquida em educação. Nos últimos anos, a União repassou um montante maior que o obrigatório, uma média de R$ 14,4 bilhões a mais por ano, nos últimos três anos. Com a PEC 55, será difícil manter esse investimento em educação, a menos que o governo enxugue em outras áreas.
Paralelamente, a reforma do ensino médio prevista na MP 746 traz mudanças que afetam o currículo, ao eliminar a obrigatoriedade de disciplinas como Educação Física e Artes, reduzir o número de aulas de outras disciplinas, como História e Geografia, e tornar obrigatório somente o ensino de Português e Matemática. Os demais conteúdos seriam definidos pela Base Nacional Curricular Comum. A MP prevê autonomia aos sistemas de ensino para definir a organização das áreas de conhecimento, com disciplinas de acordo com a linha de formação tradicional ou técnica. Além disso, autoriza a contratação de professores sem licenciatura, mas que apresentem “notório saber” na área que ensinarão.
A edição da medida foi criticada por grupos e entidades ligadas à educação e estudantes, que repudiaram a iniciativa do governo federal de promover uma reforma por medida provisória, sem debate prévio com sociedade.
Desde o ano passado, quando em São Paulo os alunos das escolas públicas rejeitaram o projeto de “reorganização escolar” imposto pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP), que remanejaria mais de trezentos mil alunos e fecharia mais de noventa colégios, movimentos de “Ocupa Escola” começaram a ganhar uma dimensão muito maior do que se poderia prever. Com mais de 1.200 escolas e institutos federais e 194 universidades ocupadas há mais de um mês, o movimento representa a mais expressiva reação e o foco de resistência contra a proposta do governo.
O ministro da Educação, Mendonça Filho, e o próprio Michel Temer já declararam que o movimento dos estudantes é abusivo e inadequado, mas, diante da resistência, sinalizaram a possiblidade de trocar a MP, que exige votação mais rápida, por um Projeto de Lei (PL), cuja tramitação é mais demorada, o que permitiria mais discussão.
O processo de criminalização dos estudantes e do movimento de ocupação das escolas públicas intensificou-se com a posição de confronto adotada pelo governo, que entrou com pedido de reintegração de posse no Paraná, com a invasão das escolas pela polícia sem ordem judicial, além da autorização de aplicação de técnicas de tortura. A presença ostensiva da polícia armada deixou estudantes menores de idade em estado de choque. As medidas adotadas são inconstitucionais e uma forma de reprimir um movimento legítimo.
O clima de intolerância ao movimento dos estudantes, impulsionado pelo próprio governo e mídia, atingiu o ápice no final do dia 15/11, com o assassinato do estudante de Matemática da Universidade Federal de Goiás, Guilherme Silva Neto, de 20 anos, ativo militante da ocupação da UFG contra a PEC 55, por seu pai Alexandre José da Silva Neto, que também se matou, após discussão sobre as suas preferências políticas e militância no movimento de ocupação.
Dando sequência ao movimento de criminalização dos movimentos sociais, no início de novembro (4/11) a polícia, em ação truculenta, invadiu a sede da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, em Guararema (SP). A operação colocou em risco a integridade física e a vida de trabalhadores e estudantes de vários países em atividades de formação política no local.
Após invadir o local, sem mandado de busca e apreensão, pulando o muro e a janela da recepção da escola, a polícia fez disparos de armas de fogo letais, como forma de intimidação, gerando tumulto no local, onde também funciona uma creche. Duas pessoas foram feridas e dois integrantes do MST foram detidos sob alegação de terem cometido crime de desacato.
Está claro que ingressamos em um estado de exceção, e a forma como o governo lida com as ocupações nas escolas e ataca o MST reforça a percepção de que está em curso um esforço de criminalização dos movimentos sociais e não deixa dúvidas de que a escalada da repressão avança e que o Estado Democrático de Direito está ameaçado. |