Ano 1 – nº 09 – Novembro 2016

A vitória de Trump

Entre os fatores que contribuíram para a vitória de Trump, um dos mais comentados tem sido o crescimento do voto no Partido Republicano em estados tradicionalmente democratas do chamado cinturão da ferrugem. Situada no nordeste dos Estados Unidos (EUA), na região dos grandes lagos, esta é a área de industrialização mais antiga e tradicional do país, e concentra as indústrias automotivas e siderúrgicas, por exemplo. O local tem passado por um processo de decadência econômica desde os anos 1980, como é o caso de estados como Ohio, Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, redutos democratas conquistados por Trump nesta eleição.
No mapa abaixo, as regiões em verde escuro mostram os locais nos quais Trump ganhou mais votos em comparação com o candidato republicano em 2012:

Boletim de Análise de Conjuntura 9 - Internacional

Fonte: Associated Press, via NYTimes (http://www.nytimes.com/2016/11/15/upshot/how-did-trump-win-over-so-many-obama-voters.html)

Há décadas estes estados têm sido os mais impactos com a perda de empregos gerada pela desindustrialização, pelos tratados de livre comércio e por mudanças tecnológicas. De 1985 a 2015, o PIB per capita dos EUA cresceu 70%, mas em Michigan, por exemplo, a renda de uma família média é hoje cerca de 200 dólares inferior à de 1985.

Neste mesmo período, os partidos Democrata e Republicano, durante seus vários governos, convergiram e se sucederam na promoção de acordos comerciais: o Nafta, as negociações fracassadas da Alca, os diversos TLCs a partir dos anos 2000 e as megaparcerias regionais com a Ásia (TPP) e a Europa (TTIP). É neste cenário que as promessas de Trump de não ratificar a parceria transpacífico (TPP), de renegociar o Nafta e de fortalecer a indústria nacional ganharam ressonância na parcela do eleitorado mais impactada pela globalização corporativa.

Um fenômeno semelhante foi visto no Brexit, no qual redutos da classe trabalhadora tradicional inglesa não seguiu a posição do partido trabalhista e votou pela saída do Reino Unido da União Europeia.

Há anos a reorientação da centro-esquerda rumo ao desmantelamento das políticas de bem-estar social e à promoção de políticas favoráveis à globalização neoliberal tem sido interpretada como um dos motivos do declínio da social-democracia na Europa. Seria também um dos elementos que favoreceriam o fortalecimento de forças políticas de extrema direita, crescentemente capazes de articular o descontentamento com a queda no nível de vida com um discurso antiglobalização e anti-imigração, que tem crescido eleitoralmente em países como a França, a Alemanha e o Reino Unido, entre outros. Trump seria o caso mais recente e mais emblemático desta tendência. Por outro lado, também tem possibilitado o surgimento de novas lideranças à esquerda, dentro de partidos tradicionais, como Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista Britânico e a própria candidatura de Bernie Sanders entre os democratas.

Desde o final dos anos 1970, a reorganização do capitalismo a partir do modelo neoliberal tem se pautado na agenda de privatização e liberalização da economia, com crescente influência das corporações multinacionais e do mercado financeiro no desenho dos arranjos políticos internacionais – e com a imposição desta agenda global às periferias. Esta influência ocorre não apenas como pressão externa do setor privado sobre o Estado, mas também a partir da presença direta destes interesses no interior das instituições estatais. Neste sentido, o discurso protecionista e isolacionista de Trump se encontra com uma gama de interesses e lobbies profundamente enraizados nos partidos políticos e nas próprias instituições de Estado, que, em alguma medida, precisarão ser acomodados no próximo governo.

Apesar de sua retórica antiestablishment, as notícias sobre a transição e a composição do futuro governo apontam nomes de lobbistas e representantes de grandes corporações, tais como consultores das empresas de telecomunicações, executivos de fundos de investimentos, representantes do setor petrolífero e militares reformados que atuam como consultores em empresas militares de segurança. Na área de segurança e defesa, por exemplo, para além das considerações genéricas de seu “isolacionismo”, a eventual continuidade das relações entre o Estado, a atuação externa e as empresas privadas que prestam serviços nas instalações militares (geralmente integradas por ex-militares) podem ser reveladores sobre o futuro governo.

Trump pode ter chegado até aqui com um discurso aventureiro, incoerente e vago, em muitos aspectos, mas a partir de agora ele é o presidente eleito pelo Partido Republicano, com maioria nas duas casas legislativas; seu governo vai compor com interesses tradicionais e vai incorporar representantes do establishment republicano. Os lobbies da indústria de defesa, do petróleo, da construção, do setor imobiliário parecem já ter lugar garantido. Em outros casos, a acomodação de interesses ainda é mais opaca: as farmacêuticas, por exemplo, por um lado perderiam com o abandono da agenda de acordos de livre comércio e seus dispositivos para ampliar a regulamentação de patentes, mas por outro já anteveem ganhos com o desmantelamento da reforma da saúde feita por Obama e a retirada de restrições ao preço de medicamentos.

Nos dias imediatamente posteriores à vitória de Trump, a grande imprensa rapidamente bombardeou notícias sobre quedas nas bolsas de valores ao redor do mundo, mas um olhar mais específico mostra, por exemplo, que diversos setores tiveram suas ações valorizadas, na expectativa de ganhos no futuro governo, entre eles a indústria de defesa, os setores de petróleo, gás e carvão, os ramos ligados à infraestrutura (maquinário, siderurgia, construção civil), bancos (que esperam a flexibilização de algumas regulamentações adotadas por Obama) e as empresas de segurança que atuam na administração de prisões privadas, que respondem hoje por mais de 60% dos imigrantes indocumentados que aguardam deportação.

A questão a ser observada nos próximos meses é em que medida há fraturas na base de sustentação da globalização neoliberal dos últimos trinta anos e, em caso afirmativo, como será dada a reorganização destes interesses e agendas.

Referências:

Escritório de Estatísticas Trabalhistas. Relatório sobra a situação do emprego, set/2016. Leia mais

Desemprego e participação da força de trabalho: Leia mais

Economic Policy Institute’s The State of Working America, 12a. edição. Leia mais

The State of American Labor, jun/2016. Revista Jacobine. Leia mais

Estatísticas sobre mobilidade social: Leia mais

How Corporate Lobbyists Conquered American Democracy, The Atlantic, 25/4/2015 Leia mais

Black Lives Matter: eliminating racial inequity in the criminal justice system. The Sentencing project, 2016. Leia mais

6 millions lost voters. Report The Sentencing project, 2016. Leia mais

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