O êxito da mudança do papel do Estado pode ser evidenciado pela sua participação no enfrentamento da crise financeira internacional, com a implementação de políticas anticíclicas, e por sua atuação na construção de políticas públicas distributivistas, como Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Luz para Todos, além da vinculação dos recursos do pré-sal à política de educação.
No entanto, na contramão do projeto eleito pelas urnas, recentemente o Instituto Teotônio Vilela, do PSDB, publicou uma nota com o título “Afinal, para que tanta empresa estatal?”. No pequeno estudo, uma vez mais se busca trazer à tona antigos mitos e caricaturas sobre o Estado brasileiro assentados nas ideias de Estado agigantado e ineficiente e de empresas estatais sucateadas e corruptas, ambos prejudicando e dando prejuízos aos cofres públicos e à sociedade.
Ao tentar comprovar tais hipóteses, o que o estudo revela, na verdade, é uma certa visão da relação entre Estado e mercado que não tem mais a adesão da sociedade, daí a necessidade de sua imposição por meio de um golpe parlamentar e não pelo caminho democrático das urnas.
A nota tem como ponto de partida uma crítica contra a criação de empresas estatais nos governos Lula e Dilma e como linha de chegada a proposta de retomada da desestatização. O que ela não revela, no entanto, é que tais empresas tiveram papel fundamental na busca de saídas para dois problemas estruturantes da economia brasileira: a ausência de núcleos endógenos de financiamento de longo prazo (daí a importância do fortalecimento das instituições financeiras estatais) e a falta de núcleos endógenos de inovações tecnológicas (daí a relevância da dinamização das empresas estatais não-financeiras).
Aliás, para justificar a falsa hipótese de que as empresas estatais dão prejuízos ao Estado, o estudo omite os resultados positivos das estatais financeiras e esconde os impactos da crise internacional sobre o Brasil. Mais ainda, restringe a análise aos gastos de despesa com pessoal e aos resultados contábeis das empresas. Nesse sentido, trata o investimento público como mero gasto e desconsidera os efeitos multiplicadores desse mesmo investimento. Com ares de novidade, o que se apresentam são as velhas concepções de Estado mínimo.
O liberal-conservadorismo brasileiro sempre buscou o encolhimento da ação do Estado por meio do enfraquecimento das empresas estatais. Ao longo de toda a chamada Era FHC, por exemplo, o país experimentou: (i) A privatização de setores estratégicos e empresas fundamentais para o desenvolvimento econômico e a soberania nacional, como no caso das áreas de telecomunicações, mineração, além do estímulo ao desmonte do complexo de bancos públicos estaduais. (ii) A fragmentação e a distorção das atividades estatais, como no caso da Eletrobrás, com a separação das funções de transmissão, geração e distribuição de energia; ou como no caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que de banco público de investimentos passou a ser reduzido a instituição financeira apoiadora da desestatização. (iii) A descapitalização das empresas estatais articulada à estagnação dos investimentos, organizando aquela que foi a maior transferência de valores patrimoniais do Estado para a iniciativa privada; (iv) A falta de compromisso com os servidores públicos que permaneceram reféns de diversas operações de redução de pessoal e encolhimento salarial. (v) Além, é claro, da própria terceirização de serviços públicos fundamentais, como decorrência de todo esse processo.
Tal desmonte veio então acompanhado de um discurso pautado por uma suposta dinamização e eficiência de gestão. No entanto, o que se observou foi uma sequência de problemas marcados justamente pela ineficiência. Merecem ser lembrados, no setor energético, acidentes como o vazamento de óleo na Baía de Guanabara (RJ) e no Rio Iguaçu (PR), além da tragédia ocorrida com o afundamento da Plataforma P-36; além da enorme crise que resultou no Apagão Energético. Foram incontáveis as perdas humanas e econômicas ocasionadas pelo descaso com o Sistema de Empresas Estatais Federais.
Para afastar do horizonte tal concepção, basta mencionar alguns resultados apresentados pelo Sistema de Empresas Estatais Federais relativos a 2014/2015, conforme o relatório do Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, ligado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão1.
No que se refere às instituições financeiras federais: a) A Agência Brasileira Gestora dos Fundos Garantidores e Garantias S.A. (ABGF) implementou o Fundo Garantidor de Infraestrutura (FGIE), que tem por finalidade oferecer, direta ou indiretamente, cobertura para risco de crédito, de performance, de descumprimento de obrigações contratuais ou de engenharia; b) O Banco do Brasil manteve a liderança nas operações de crédito do Sistema Financeiro Nacional, com participação de 21% desse mercado; c) O BNDES teve lucro de R$ 8,6 bilhões, resultado 5,4% superior ao ano anterior, em razão da expansão da carteira de crédito e das participações societárias; d) Na Caixa, a carteira de crédito atingiu o saldo de R$ 597,1 bilhões, evolução de cerca de 23%, com destaque para o crédito imobiliário, que atingiu saldo de R$ 337,5 bilhões, expansão de cerca de 25%, e que representa mais de dois terços do mercado.
No que se refere às empresas estatais não-financeiras: e) A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) concluiu sistemas de abastecimento para o atendimento de 23.412 pessoas, esgoto sanitário em onze municípios e a instalação de cerca de 75 mil cisternas; f) A Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) procedeu a identificação, delimitação e vetorização de setores de risco a deslizamentos e enchentes classificados como alto e muito alto em 307 municípios, nos quais foram identificados 2.880 setores, com 194.026 moradias e 849.873 pessoas; g) A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) realizou a cobertura da Copa do Mundo e das eleições e a transmissão digital a partir da nova Torre de TV do Distrito Federal. Disponibilizou o acesso a conteúdos de comunicação pública para 163,4 milhões de pessoas (85,7% da população brasileira) em 3.583 municípios; h) A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) desenvolveu o Aplicativo de Vigilância em Saúde e Gestão de Riscos Assistenciais Hospitalares (Vigihosp), um software online para notificações em tempo real de incidentes em saúde, queixas técnicas, doenças e agravos de notificação compulsória; i) A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) inaugurou novo banco genético que triplicou a capacidade de armazenamento de amostras de sementes, tornando-se o maior banco genético da América Latina. A nova capacidade colocará o Brasil entre os três maiores repositórios mundiais do gênero; j) O Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA) foi o primeiro centro universitário público a formar cirurgiões em cirurgia robótica. Além disso, renovou a conquista da Acreditação Internacional, conferida pela Joint Commission International, sendo o primeiro Centro Médico Acadêmico do Brasil e o terceiro da América Latina a possuir este selo de padrão internacional de qualidade e segurança; k) A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) iniciou a distribuição ao Sistema Único de Saúde (SUS) do primeiro produto com marca própria: o Hemo-8r, medicamento considerado mais moderno para o tratamento de hemofilia tipo A. Foram entregues mais de cem mil frascos do produto em 25 serviços de saúde de todas as regiões do país, para beneficiar cerca de nove mil portadores da doença.
Vale ainda destacar o fortalecimento da Petrobras e sua fundamental participação no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na exigência de conteúdo nacional nas licitações, na busca pela autossuficiência do país em petróleo, no aumento da produção de óleos leves, na ampliação da produção e oferta de gás nacional, no avanço da área de biocombustíveis e na dinamização da tecnologia de sondas e da indústria naval. Na mesma medida, o grupo Eletrobrás tornou-se uma holding de capital aberto, mais competitiva, com melhor governança e novos mecanismos de planejamento e pesquisa na área energética.
Desconsiderar esse conjunto de avanços e apresentar a Lei de Responsabilidade das Estatais como panaceia para os problemas da eficiência estatal, das contas públicas e da corrupção é apenas um subterfúgio para esconder as reais razões que movem o projeto liberal-conservador. A proibição ou restrição de que pessoas com ação partidária e que ocupam cargos públicos atuem nas empresas estatais é mais uma falácia moralizadora: vale lembrar que a maior parte dos envolvidos na Operação Lava Jato são empresários privados ou diretores de empresas estatais que se encaixam exatamente nesse perfil, nunca foram filiados a partidos ou militaram politicamente.
Além disso, utilizar a tecnocracia como forma de criminalização da política é uma forma de enfraquecer o Estado nas suas responsabilidades com a democracia e com os direitos sociais e trabalhistas, para que se possa fortalecer, através do Estado, a aliança com certos interesses do rentismo.
Se lacuna houve na gestão petista do Estado certamente ela não está situada na recomposição do sistema de empresas públicas federais e na ampliação do investimento público, mas sim em ter achado que a reestruturação do Estado, em algumas instituições, poderia ser feita estritamente com o aumento de cargos, concursos e salários. Esse tripé é evidentemente fundamental, mas ele precisa vir acompanhado de instrumentos e inovações que evitem a internalização na ossatura do Estado de uma casta de tecnocratas nem sempre afeitos a projetos democráticos e distributivistas.
Mas o atual governo certamente não busca aperfeiçoar a estrutura do Estado para que ela acompanhe e melhore na construção das políticas públicas, o que se busca, ao que tudo indica, é antes a desestruturação de ambas. Nesse sentido, caminha-se na contramão da construção de uma relação mais saudável entre Estado e mercado e o que se perpetua é uma visão onde o poder público deixa de ser de fato público e a iniciativa privada segue caminhando sem ter de fato iniciativa. Nesse sentido, o golpe de Estado só pode se completar convertendo-se em um golpe contra o próprio Estado.
1. Os dados foram extraídos do documento: “O perfil das empresas estatais federais, 2015, ano-base 2014”. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/arquivo/dest-1/perfil-das-empresas-estatais-1/160801_2015_ano_base_2014.pdf
|