Ao longo dos últimos três meses tivemos concretamente poucas ações no campo da política externa

Ano 1 – nº 06 – Agosto 2016

Ao longo dos últimos três meses tivemos concretamente poucas ações no campo da política externa. A construção de um impasse político no Mercosul a partir da tentativa de reverter a adesão da Venezuela como membro pleno do bloco foi a principal delas. Durante todo o mês de julho, os governos de Argentina, Brasil e Paraguai fizeram gestões para impedir que a Venezuela assumisse a presidência pro tempore (PPT) do Mercosul, contrariando o Tratado de Assunção, que estabelece rotatividade por ordem alfabética a cada seis meses. Como não há a figura institucional de um presidente do Mercosul, o país encarregado da PPT é responsável por convocar, organizar as pautas e sediar as reuniões durante seu turno.

O Paraguai esteve na linha de frente das posições mais duras contra o governo de Nicolas Maduro, com forte apoio do Brasil e da Argentina – apesar das diferentes linhas do presidente Mauricio Macri e sua chanceler Susana Malcorra. O Uruguai foi a única voz dissonante, ao reivindicar a estrita aplicação da regra relativa à transferência rotativa da presidência com bases nos textos jurídicos do bloco. Diante das prováveis dificuldades para a aplicação da cláusula democrática, a estratégia coordenada por Brasil, Paraguai e Argentina tem sido a construção de um impasse político e a deslegitimação da presidência venezuelana a partir de um artifício jurídico. O argumento encontrado afirma que a Venezuela não cumpriu o prazo para a internalização de uma série de normativas do bloco em seu ordenamento jurídico, incluindo as regras relativas à tarifa externa comum, e que, portanto, não seria um membro pleno e não poderia assumir a presidência. A rigor as duas medidas não estão relacionadas. Não há nenhuma sanção prevista se as normas não estiverem plenamente internalizadas dentro do prazo inicialmente estipulado, até porque é bastante conhecido o fato de que nenhum país membro cumpre integralmente as regras acordadas pelo bloco.

Desde 1º de agosto, quando o Uruguai declarou encerrado seu turno na presidência e a Venezuela anunciou sua posse, a estratégia de deslegitimação ganhou força a partir de dois elementos. O chanceler interino deu o tom, ao enviar uma carta aos países membros considerando que a presidência do Mercosul encontra-se vaga. Além disso, Brasil, Paraguai e Argentina autoconvocaram uma reunião, que incluiu representantes uruguaios, para “analisar tecnicamente” a adequação normativa da Venezuela às regras regionais. Este movimento encontra-se em curso, com nova reunião prevista para meados de agosto. A linha do governo interino brasileiro tem sido levantar artifícios sobre a própria adesão plena da Venezuela, que sempre foi contestada pela oposição conservadora no Brasil. Ou seja, o impasse no Mercosul é sobretudo político e, em certa medida traz analogias com o próprio golpe no Brasil.

Como não há juridicamente a possibilidade de expulsar um membro, ou o impasse continua – e paralisa a agenda do bloco nos próximos seis meses -, ou abre caminho para algum tipo de flexibilização da tarifa externa comum para todos os membros, o que, na prática, poderia significar o retrocesso da união aduaneira para uma área de livre comércio. A recente notícia de que o Uruguai vai assinar um acordo de livre comércio de última geração com o Chile, por exemplo, caminha no sentido desta flexibilização.

A posição de Serra em relação à Venezuela e ao Mercosul joga para a plateia, na medida em que a redução da agenda diplomática à pauta das negociações comerciais colocou o Mercosul no centro do que é construído como problema da política externa brasileira. A propósito, há muito tempo o Mercosul não recebia a cobertura (neste caso negativa) da mídia brasileira como no último mês. Mas além disso, na prática, tanto a continuidade do impasse quanto a flexibilização das regras constituem um terreno favorável para o desmonte das iniciativas de integração regional. Esta desagregação do Mercosul atende aos objetivos anunciados constantemente pelo governo interino, sobretudo em relação à possibilidade de negociar acordos de livre comércio individualmente, o que é colocado como prioridade e conta com forte apoio de setores econômicos articuladores do golpe, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Contudo, por enquanto, há poucos indícios de que Serra seja capaz de colocar efetivamente uma política alternativa e bem articulada no lugar. Na frente política interna, no início de agosto, a imprensa veiculou a notícia de que executivos da Odebrecht informaram aos investigadores da Operação Lava Jato que Serra recebeu R$ 23 milhões (R$ 34,5 milhões em valores corrigidos) de caixa dois para sua campanha à Presidência em 2010. Na frente externa, os parceiros tidos como prioritários pelo governo interino – EUA e União Europeia – parecem ter eles próprios dificuldades com a agenda de liberalização comercial. No caso da UE, já são bem conhecidas as resistências internas, lideradas pela França, para a concretização do acordo UE-Mercosul. Além disso, a agenda de segurança e os futuros desdobramentos da saída do Reino Unido do mercado comum têm ocupado o centro das preocupações da UE. Nos Estados Unidos nenhuma nova negociação deve ter lugar antes da plena instalação do novo governo. Recentemente a candidata que no momento lidera as pesquisas para a sucessão presidencial, a senadora Hillary Clinton, pressionada à direita pelas declarações de Trump e à esquerda pela ampla base de apoio angariada pelo senador Bernie Sanders, anunciou uma posição mais crítica com relação aos acordos de livre comércio. É difícil transpor estas promessas de campanha para o cenário de um governo de fato, dado seu histórico pró-livre comércio e os poderosos interesses econômicos articulados em torno desta agenda que transcende divisões partidárias, mas sinaliza potenciais resistências.

Nesse sentido, no âmbito comercial, o desmonte do Mercosul abre caminho para a negociação de acordos individuais, mas entre a possibilidade e a efetivação o caminho pode não ser tão linear. No plano político, a posição brasileira contribui decisivamente para a ofensiva sobre o governo Maduro ao reforçar, por outra via, os esforços de isolamento da Venezuela no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao enfraquecer as gestões da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para mediação da crise no país vizinho, negligenciando estrategicamente as iniciativas promovidas pelo secretário-geral, Ernesto Samper.

Além da ofensiva política sobre a Venezuela, há poucas ações concretas. A única referência à África veio logo no início da gestão interina, com a notícia de que Serra pediu um estudo de custo para avaliar o fechamento de representações diplomáticas no continente. Também não houve praticamente nenhum ato a ser destacado no âmbito dos organismos multilaterais. Estes silêncios não surpreendem, pois condizem com o esvaziamento da agenda de cooperação Sul-Sul e a intenção de realizar uma política externa “sem grandes protagonismos”, como já fora anteriormente anunciado pelo chanceler interino. Até o momento, a principal incógnita está relacionada à atuação brasileira no âmbito dos Brics, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África, que deve manter algum grau de pragmatismo, visto o tamanho do mercado e dos investimentos chineses.

Uma notícia que passou quase sem nenhuma repercussão na grande imprensa foi a nomeação de assessores políticos de Serra para cargos de confiança no Itamaraty, a partir de um decreto da Presidência de República. Entre eles está Hideo Augusto Dendini, um dos policiais acusados de envolvimento no massacre do Carandiru, absolvido no julgamento e assessor parlamentar de Serra até a recente nomeação para o Ministério de Relações Exteriores (MRE). A desfaçatez daqueles que sempre questionaram os governos Lula e Dilma por um suposto aparelhamento e partidarização da política externa chama a atenção. Até então, nunca os cargos de assessoria direta do ministro tinham sido ocupados por pessoas de fora da carreira diplomática.

Por fim, ao longo destes três meses também tem ficado claro o pouco preparo e a falta de habilidades diplomáticas do chanceler interino. Em junho, Serra afirmou que o relatório da Organização para a Cooperacão e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que prevê recessão no Brasil por conta das incertezas políticas era uma “bobagem”. Recentemente no México, o interino tentou fazer uma “piada” machista embaraçosa ao afirmar para a ministra das Relações Exteriores, Claudia Ruiz Massieu, que o país era um “perigo” porque “quase a metade dos senadores são mulheres”. Nos últimos dias, a ofensiva sobre a Venezuela e a construção da crise política no Mercosul se desdobrou em novo episódio, no qual agora o Brasil gera um mal estar e se indispõe com o Uruguai. No dia 15 de agosto, o jornal El Pais noticiou que o chanceler e vice-presidente uruguaio Rodolfo Nin Novoa acusou o Brasil de tentar comprar o voto do país no caso da presidência pro tempore do Mercosul, durante a viagem de Serra e Fernando Henrique Cardoso a Montevidéu em 5 de julho. As declarações vieram a público a partir das notas taquigráficas de uma reunião da Comissão de Assuntos Internacionais da Câmara de Deputados, na qual Nin Novoa declarou que o governo uruguaio não gostou “que o chanceler Serra tenha vindo ao Uruguai para dizer – publicamente e por isso digo – que vinham com a pretensão de que se suspendesse a transferência [da presidência para a Venezuela] e, além disso, de que, caso se suspendesse, nos levariam em suas negociações com outros países, como querendo comprar o voto do Uruguai”. Com o caso tornado público, Serra escalou o mal estar, ao convocar o embaixador brasileiro para consultas. Esta coleção de declarações – que vão de gafes diplomáticas a casos nos quais o ministro interino fomenta o desentendimento – revela posturas incompatíveis com o cargo de chanceler.

Em suma, até agora, entre ações e silêncios, temos elementos que indicam a reversão da política externa construída pelos governos Lula e Dilma, sobretudo com relação às iniciativas de integração regional e cooperação Sul-Sul. Mas além de agradar ideologicamente seus apoiadores, não é automático que esta política se converta em resultados concretos muito expressivos no âmbito das tão anunciadas negociações comerciais.

 

 
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