As negociações comerciais têm sofrido modificações significativas nas últimas duas décadas, em especial com a extensão de disciplinas e regras que, a rigor, vão além das questões comerciais, ao impactarem legislações domésticas e influenciarem formas de interação entre o Estado, a sociedade e o mercado. Essas negociações têm como pano de fundo mudanças nas formas de produção em escala internacional, sobretudo com as chamadas “cadeias globais de valor”. A lógica em si não é nova, tem origem nos anos setenta, a partir da fragmentação da produção em âmbito internacional e da formação de empresas multinacionais. Nesse sentido, as cadeias globais de valor remetem a um processo produtivo fragmentado, controlado pelas multinacionais, no qual os países centrais entram com pesquisa, tecnologia e inovação, ao passo que os periféricos se integram a essas cadeias produtivas por meio de mão de obra e matérias-primas mais baratas e legislações ambientais e trabalhistas mais permissivas. Diante desse cenário, os acordos comerciais internacionais fornecem a estrutura institucional e normativa para a operação das multinacionais, por meio da harmonização jurídica em áreas como propriedade intelectual, prestação de serviços, investimentos, compras governamentais, medidas de transparência e anticorrupção, entre outras.
Desde o início dos anos noventa, a construção desta arquitetura normativa internacional vem sendo perseguida em duas frentes: a via multilateral, na Organização Mundial do Comércio (OMC), e a via bilateral, com acordos de livre comércio. Entre os países desenvolvidos, os EUA foram pioneiros na estratégia de aprofundar as regulamentações multilaterais, com acordos comerciais bilaterais (como o Nafta, em 1994, a tentativa fracassada da Alca e uma série de TLCs posteriores, tanto na América Latina quanto no resto do mundo). Estratégias semelhantes vêm sendo adotadas pela União Europeia e, com algumas diferenças, pela China. Tradicionalmente o Brasil vinha apostando na OMC para a negociação de temas sensíveis, uma vez que as negociações entre 162 países permitem a formação de coalizões e oferecem melhores condições de barganha e contrapartidas. Contudo, desde a eclosão da crise econômica internacional, em 2008, o protecionismo dos países desenvolvidos e a resistência das nações em desenvolvimento em torno de uma agenda de liberalização comercial com consequências profundamente assimétricas têm levado a um progressivo esvaziamento da Rodada Doha.
Nesse cenário, os Estados Unidos e a União Europeia vêm apostando nos âmbitos bilateral e plurilateral, portanto fora da OMC, para avançar nas negociações desses temas sensíveis. Os acordos começam com países politicamente alinhados, com a intenção de que, uma vez fechados, representem um fato consumado capaz de pressionar os países mais resistentes. Para além dos TCLs bilaterais, atualmente há três mega-acordos em curso: a Parceria Transpacífica (TPP: negociações já concluídas, aguardando ratificação dos Parlamentos), a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos entre EUA e União Europeia (TTIP: em negociação) e o Acordo sobre Comércio de Serviços (TiSA: em negociação).
Em comum, os três avançam em regulamentações, seja aprofundando temas que já são objeto de disciplinas na OMC, seja regulamentando temas não tratados multilateralmente. Tanto o TPP quanto o TTIP são acordos preferenciais de comércio, ou seja, formam um bloco preferencial e não estão abertos à adesão de qualquer país interessado. O Acordo sobre Comércio de Serviços, ao contrário, é um acordo plurilateral, o que significa que, em tese, está aberto para a participação de qualquer país interessado nas negociações. O TPP, o TTIP e praticamente todos os acordos bilaterais dos EUA e da UE também contêm capítulos sobre serviços. Em vários pontos as cláusulas são semelhantes, a diferença está no grau de ambição do TiSA e no fato de que, por ser um acordo restrito a serviços, a possibilidade de negociar contrapartidas em outras áreas não é uma opção.
A União Europeia (como bloco), os EUA e outros 21 países (entre os quais Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Panamá e Peru na América Latina) participam das negociações do TiSA, o que corresponde a cerca de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial do setor de serviços. A UE é a principal exportadora do setor (responsável por 25% das exportações mundiais), seguida por EUA (18,7%), China (5,8%), Índia e Japão (aproximadamente 4% cada). China e Índia não estão no TiSA, bem como nenhum outro membro dos Brics. Como mencionado, o TiSA busca aprofundar as disciplinas do setor de serviços existentes no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (Gats), no âmbito da OMC. Assinado em 1994, o acordo define quatro modos de prestação internacional de serviços:
– Serviços transfronteiriços (ex. educação à distância). – Serviços consumidos no exterior (ex. turismo). – Presença comercial do prestador de serviços de um país membro no território de outro membro; investimento externo direto (ex. multinacionais de hotelaria). – Presença comercial por meio de pessoas naturais de um país membro no território de outro (ex. advogados, consultores, enfermeiros, cuidadores etc).
Estes serviços estão classificados em doze grupos: serviços empresariais, incluindo informática; comunicações; construção civil e outros serviços de engenharia; distribuição; educação; serviços ambientais; serviços financeiros, incluindo bancários e seguros; serviços sociais e relacionados à saúde; turismo; recreacionais, culturais e esportivos; transportes; e outros serviços não incluídos anteriormente. Estas categorias estão subdivididas em 160 grupos. A única disciplina aplicável horizontalmente a todos os setores é a cláusula da nação mais favorecida, que impede a concessão de tratamento mais favorável a um país em detrimento de outro. As cláusulas de acesso a mercados e tratamento nacional estão disciplinadas por meio de listas positivas, ou seja, os membros da OMC expressam de forma explícita quais setores estarão sujeitos às regras do Gats e qual o grau de liberalização concedido.
O TiSA, por sua vez, é uma negociação mais ambiciosa, que pretende aprofundar as regras já existentes e ampliar a liberalização nos mais diversos setores:
– além da cláusula da nação mais favorecida, ampliar a cobertura das cláusulas de acesso a mercados e tratamento nacional; – modelo de lista negativa para acesso a mercados, o que implica a liberalização mais ampla, já que apenas aqueles setores especialmente destacados no acordo terão permissão para seguir com algumas restrições. Além disto, serviços ainda não existentes já nascerão regulamentados pela cláusula de acesso a mercados do TiSA; – lista positiva para tratamento nacional (contrariando preferência dos EUA de lista negativa para toda a estrutura da negociação); – claúsula “standstill”, que implica a impossibilidade de revogar no futuro qualquer liberalização acatada durante as negociações; – regras para setores como transporte marítimo internacional; serviços de telecomunicações; comércio eletrônico; transferência internacional de dados; serviços financeiro; empresas estatais; – regras para a compras governamentais de serviços, do âmbito nacional aos municípios. No limite, as negociações buscam excluir a proteção ao setor, o que obrigaria a abertura de licitações para as multinacionais dos países signatários e a proibição de políticas de conteúdo nacional; – harmonização de regulamentações domésticas (padrões técnicos, certificações educacionais, licenciamentos, regulamentações ambientais, regras de segurança no trabalho, direitos do consumidor etc).
Como mencionado anteriormente, as negociações no setor de serviços não estão restritas ao TiSA, mas estão presentes no TPP, no TTIP e em praticamente todos os tratados de livre comércio impulsionados pelos EUA e pela União Europeia. Como ilustração, segue abaixo um quadro comparativo entre o TPP e o TiSA no tocante aos serviços. Vale mencionar que o TPP contém uma série de capítulos sobre outros temas (propriedade intelectual, investimentos, meio ambiente e questões trabalhistas) que não estão presentes nesta comparação, pois estão fora do âmbito do TiSA.
Embora estes acordos tragam menções à proteção de serviços de interesse público geral (como saúde e educação) e, em si, não obriguem à privatização, inúmeros setores da sociedade civil organizada têm criticado o potencial impacto deste novos acordos rumo à mercantilização de serviços públicos. Por exemplo, caso o TiSA seja assinado, a eventual privatização de um serviço público num país membro – como a distribuição de energia ou de água por exemplo – não poderá ser revertida no futuro. O mesmo valeria para qualquer outro ramo de serviços. De acordo com a cláusula standstill, se um país integrante do TiSA permite, no momento da assinatura do acordo, a atuação de multinacionais no setor hospitalar, por exemplo, a decisão não pode ser revertida sem um provável processo nas cortes internacionais de arbitragem. Outro ponto controverso refere-se à segurança da Internet, comércio eletrônico e ao fluxo internacional de dados confidenciais. O acordo proíbe medidas que obriguem ao armazenamento de dados em servidores locais, por exemplo. Um terceiro ponto a ser discutido são as implicações da liberalização de serviços financeiros. Um estudo encomendado pelo Parlamento Europeu analisa uma série de acordos de livre comércio da UE e conclui que, embora não seja possível estabelecer estatisticamente uma relação causal, há indicações fortes de que que a liberalização de serviços financeiros contribui para a lavagem de dinheiro e a evasão de divisas.
Após o ciclo de mobilizações internacionais na virada do milênio e sua posterior fragmentação a partir de meados dos anos 2000, o avanço destes novos e mais amplos acordos comerciais tem suscitado um engajamento renovado por parte de organizações e movimentos sociais. No último 8 de julho foi lançada a Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo, que ocorrerá em 4 de novembro, em Havana, Cuba. A articulação é integrada sobretudo por movimentos sociais que protagonizaram as mobilizações contra a Alca no início dos anos 2000, como, entre outros, a CLOC/Vía Campesina, a Marcha Mundial de Mulheres e o movimento sindical atualmente reunido na Confederação Sindical das Américas. O lançamento da jornada aponta a luta contra estes acordos comerciais e contra a atuação das empresas multinacionais como pontos centrais de mobilização frente ao avanço conservador na América Latina e à captura das instituições democráticas pelas grandes corporações.
Referências: – TiSA versus Public Services. Relatório Especial da Internacional de Serviços Públicos: o acordo de comércio em serviços e a agenda corporativa, 2014. – The Trade in Services Agreement (TiSA): an end to negotiations in sight?. In-depth analysis, policy department, European Parliament, 2015. – El TiSA, el TPP e la negociación de la vida y los derechos. REDES Uruguay, 2016. – The Impact of Financial Services in EU Free Trade and Association Agreements on Money Laundering, Tax Evasion and Elusion. Study by the T.M.C. Asser Instituut and the University of Groningen, 2016 (versão preliminar). – Budini, T. Os tratados de livre comércio e as políticas dos EUA para a América Latina após 2005. In: Codas, Jakobsen, Spina (orgs.) Alca dez anos: fracasso e alertas a novas negociações. Fundação Perseu Abramo, 2015..
|