Hamilton Pereira: Considerações sobre o governo Cunha (6)
A renúncia de Eduardo Cunha, operação conduzida por Michel Temer, revela a cumplicidade do governo golpista com o crime
Por Pedro Tierra*
A renúncia do Primeiro-Ministro, Eduardo Cunha, operação cuidadosamente conduzida por Michel Interino Temer, revela o grau de cumplicidade do governo golpista com o crime. A manobra consiste em afastá-lo definitivamente da Presidência da Câmara dos Deputados para preservar-lhe o mandato parlamentar e, assim, protege-lo da ação dos procuradores do Ministério Público e dos Juízes. Uma manobra em tudo semelhante às que a sociedade brasileira se habituou a assistir ao longo dos últimos meses, nas marchas e contramarchas produzidas na Câmara dos Deputados, desde que a alça de mira da Procuradoria Geral da República ajustou seu foco sobre a cabeça de Cunha.
Este foi o acordo pactuado entre os golpistas no encontro noturno ocorrido há duas semanas no Palácio do Jaburu entre o Presidente usurpador e o Presidente afastado da Câmara dos Deputados, réu de quase uma dezena de processos no STF. É este acordo que deverá ocupar a agenda das negociações entre o partido informal de Eduardo Cunha e as demais bancadas que sustentam o governo interino durante a semana que precede o recesso. Uma operação não isenta de incertezas. Haja vista a derrota sofrida pelo Estado Maior Golpista precisamente na Câmara dos Deputados, na última semana, quando da votação de matérias relativas à dívida dos Estados. Considere-se também a quantidade inédita de candidatos da base do governo interino à Presidência da Casa. Nove deles denunciados por corrupção.
Do ponto de vista dos interesses do cartel da mídia familiar, importa dar andamento ao processo de higienização do Golpe, para torna-lo palatável para a sociedade brasileira e adquirir alguma respeitabilidade para mitigar o isolamento internacional em que se encontra. O Primeiro Ministro Oculto, o condutor da obscena sessão de 17 de abril, que se orgulha de ter incorporado ao seu currículo – seria mais adequado dizer prontuário – um golpe de estado, Eduardo Cunha cumpriu sua tarefa, já pode, sem prejuízo aos objetivos da estratégia golpista, ser lançado ao mar, como recomenda a família Marinho em editorial, numa travessia que se afigura difícil.
Trata-se agora de encontrar, no processo sucessório que se abre na Câmara dos Deputados, um nome que não seja “hostil” a Cunha, ou seja, que saiba operar de forma a não criar constrangimentos a sua Excelência e preservar-lhe o mandato como um escudo contra as ações judiciais em curso contra ele. E, em troca, assegurar com seu silêncio, o mandato do usurpador e a governabilidade necessária, no âmbito parlamentar para seguir na marcha e alcançar o objetivo central do Golpe: a destruição do esboço de estado de bem-estar ensaiado por Lula e Dilma.
A batalha que se trava neste momento na Câmara dos Deputados reflete o quadro de decomposição acelerada do sistema político brasileiro gerado pela Constituição de 88. Nosso sistema deixou para trás as poucas e frágeis experiências de partidos orgânicos, de caráter programático, para ceder à prática tradicional de partidos parlamentares, oligárquicos que ignoram suas próprias instâncias – quando elas existem – e dependem de maneira predominante da palavra dos seus mandatados para tomar decisões. Até desembocar na selvageria que assistimos nesses dias de crise aguda em que os apetites individuais de cada parlamentar é que definem seu voto, indiferente a qualquer compromisso para além dos interesses restritos aos laços familiares, explicitados na obscena sessão de 17 de abril. Ou seja, o colapso do sentido próprio de representação social que deve definir o Parlamento.
O sinal mais evidente da profundidade da crise que pôs em cheque o Estado Democrático de Direito no Brasil está configurado no fato de que o Judiciário chamou para si a agenda política da nação e passou a exercer o papel de tutor sobre os demais poderes e sobre a sociedade. O Judiciário, por definição, é o Poder a quem a Constituição atribui a aplicação da norma, ou seja, do conjunto de leis resultante do pacto estabelecido entre as forças políticas eleitas para representar a cidadania, no momento constituinte. Trata-se, portanto, de um poder essencialmente conservador.
Quando a política se degrada e seu espaço é ocupado pelo poder discricionário do juiz, a democracia evapora – a autoridade do juiz não deriva do voto – e ganhamos em seu lugar a tirania da toga. Ora o juiz é um agente público, ou seja, é um agente político. Não está acima dos conflitos sociais. O que o diferencia do dirigente político parlamentar ou executivo não é sua ética, seja ela qual for, é que ele, ao contrário daqueles, não é submetido ao voto.
Quando a política é criminalizada, como no presente, e perde a legitimidade, expressa no slogan “Vocês não nos representam!” repetido desde as manifestações de 2013, perde, junto com ela, a capacidade de formular projetos para o país. Abre-se assim um espaço pantanoso para nos enredar na discussão do como fazer e para encobrir a ausência de respostas à questões simples e cruciais: que país desejamos entregar para as gerações futuras? Uma sociedade que assegure os direitos do mundo contemporâneo aos seus cidadãos? Ou uma sociedade gerida pela Lei de Defesa do Consumidor? Ou ainda, uma sociedade que deseja regredir aos inefáveis tempos do Imperador e reintroduzir 80 horas de jornada laboral por semana? Essa é a sociedade que os herdeiros dos senhores de escravos que dirigem a Confederação Nacional da Indústria querem impor ao país pelas mãos de um governo ilegítimo?
A ofensiva reacionária que avançou pelas mãos de Eduardo Cunha, Michel Temer e seus comparsas, em dois meses de governo interino, busca manter a sociedade, sobretudo os setores organizados das classes trabalhadores entretidos com o aspecto mais aparente da cena: uma malta de salteadores que se locupletaram com dinheiro público verbalizando discursos em defesa da moralidade, enquanto tratam de aprofundar o saque aos direitos conquistados nas últimas décadas e à promoção de uma feira de arrabalde para vender os recursos naturais aos interesses estrangeiros.
Com dois meses de governo Cunha/Temer o Brasil corre o risco de retroceder à condição de uma colônia do século XIX. Assentada, como então, na venda de produtos primários produzidos por mão de obra escrava. Não seria demais pedir àquele ilustre procurador paulista, leitor de Hegel, que peça com a ajuda do inesquecível Stanislaw Ponte Preta, a prisão preventiva da Princesa Isabel, aquela perigosa agente subversiva infiltrada na família imperial, disposta até as últimas consequências a destruir as bases das relações que asseguram a produção da riqueza do Brasil – seu principal combustível – desconsiderando o sacrifício secular dos patriarcas da Casa Grande, abnegados e nunca suficientemente reconhecidos produtores da riqueza nacional.
*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.