Ano 1 – nº 03 – Maio 2016

Cenário internacional

Desde o início dos anos 2000, o cenário internacional tem passado por transformações, que ampliaram a margem de ação da diplomacia brasileira rumo a uma inserção mais autônoma do país. Ao mesmo tempo, a própria ação internacional do Brasil neste período (iniciativas de integração regional, construção dos Brics e diplomacia sul-sul, por exemplo) contribuiu para estas mudanças, rumo a um horizonte multipolar. Este quadro atingiu seu auge por volta de 2010, quando a crise econômica internacional impactava diretamente os países centrais e ainda não se fazia sentir plenamente nos países em desenvolvimento. Contudo, nos últimos anos, embora as orientações gerais da política externa tenham sido mantidas, o Brasil reduziu o ritmo de sua atuação internacional, o que foi reforçado pelo aprofundamento da crise econômica e política no país mais recentemente. Uma exceção importante a esta tendência foi a atuação nos Brics, que seguiu como uma prioridade, inclusive com resultados concretos como a criação e o início das operações do Novo Banco de Desenvolvimento.

Este processo de “multipolarização” refletiu-se, por exemplo, em uma série de tentativas de reforma de organizações internacionais criadas no pós-II Guerra Mundial, com resultados tímidos até o momento. No caso da ONU, as discussões sobre a reforma do conselho de segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) praticamente não avançaram. Desde o início do governo Lula, o Brasil articulou-se com Alemanha, Índia e África do Sul no chamado G4, para coordenar posições nas negociações. Recentemente, formalizou-se o início de negociações intergovernamentais, mas este fato oferece poucas garantias à conclusão efetiva do processo de reforma. O Fundo Monetário Internacional passou por uma redistribuição de seu sistema de cotas (particularmente por pressão dos Brics, sobretudo da China), que aumentou o peso dos países em desenvolvimento na tomada de decisão, inclusive do Brasil. Na Organização Mundial do Comércio (OMC) – criada em 1995, mas herdeira do regime multilateral de comércio do pós-guerra -, o protecionismo dos países desenvolvidos e a resistência das nações em desenvolvimento em torno de uma agenda de liberalização comercial com consequências profundamente assimétricas levaram a um progressivo esvaziamento da Rodada Doha. A partir de 2003, o Brasil assumiu uma posição de protagonismo na organização, mas a eclosão da crise econômica em 2008 e a resistência dos países centrais levou à paralisação de Doha e, por consequência, ao esvaziamento do principal eixo da diplomacia brasileira na área do comércio internacional. A eleição de Roberto Azevedo, em 2013, para o cargo de diretor geral da organização foi uma vitória diplomática. Contudo, o cargo tem pouco poder para destravar as negociações, que dependem essencialmente da disposição dos países membros.

Frente ao conflito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e à paralisia das rodadas multilaterais de liberalização comercial, as economias centrais, sobretudo os EUA, têm priorizado a negociação das chamadas mega parcerias regionais – como a Parceria Transpacífica (TPP) e a Parceria Transatlântica sobre comércio e investimentos (TTIP) – bem como de acordos plurilaterais fora da OMC, em particular o Acordo sobre o Comércio de Serviços (TiSA). Nestas novas arenas buscam avançar na liberalização do comércio de serviços, na abertura do setor de compras governamentais e na harmonização de novas regras de proteção a investimentos e propriedade intelectual. Em linhas gerais, o avanço desta agenda significa o aprofundamento de uma estrutura normativa internacional que reduz a margem de ação dos Estados em favor dos interesses das grandes corporações multinacionais. Isso porque os vários temas negociados têm implicações diretas sobre a elaboração de políticas públicas: regras mais rígidas de propriedade intelectual retardam a fabricação de genéricos e encarecem o acesso a medicamentos; a abertura do setor de compras governamentais pode restringir uma série de políticas nacionais, como medidas de incentivo à indústria ou à agricultura familiar; as novas regras de proteção a investimentos incluem mecanismos de arbitragem que abrem caminho para que corporações multinacionais processem Estados por políticas que sejam percebidas como prejudiciais aos investimentos (legislações ambientais ou de saúde pública, por exemplo). Os defensores desta agenda costumam destacar a necessidade de inserção nas chamadas cadeias globais de valor. Mas cabe mencionar que o termo da moda significa a fragmentação da produção e do comércio internacionais em diversos países ao redor do mundo, numa divisão baseada em vantagens competitivas, subordinado a empresas líderes localizadas nos países desenvolvidos, que possuem os direitos de propriedade intelectual sobre o desenvolvimento dos produtos, sobre o processo produtivo e sobre as tecnologias e máquinas utilizadas.

Os fundamentos gerais desta agenda remontam ao processo de reorganização do capitalismo em escala internacional a partir da década de 1970. Boa parte desta “nova estrutura normativa” do comércio internacional estava proposta no projeto da Alca, em 2005 e nos diversos tratados bilaterais de livre comércio dos EUA com países da América Latina. Desde o fracasso das negociações da Alca em 2005, o Brasil e o Mercosul têm resistido a estas pressões, a partir da perspectiva de que a inserção subordinada nas cadeias globais de valor não atende aos interesses de países com parques industriais diversificados, como Brasil e Argentina, e que uma inserção autônoma na economia política internacional demandaria uma real integração produtiva em âmbito regional. Apesar deste posicionamento, o Mercosul pouco avançou no tema da integração produtiva. Além disto, frente ao esvaziamento do eixo multilateral de liberalização comercial, os países do bloco passaram a enfrentar pressões crescentes de setores econômicos favoráveis à assinatura de acordos de livre comércio e investimentos. É neste cenário que nos últimos anos a diplomacia brasileira ensaiou um movimento de aproximação do Mercosul com a Aliança do Pacífico (com intenção do Brasil de concluir uma área de livre comércio na América do Sul em 2019) e retomou a agenda de negociações do acordo Mercosul-União Europeia.

Embora as dificuldades de integração econômica no Mercosul tenham persistido, a integração e a cooperação regionais mostraram avanços em outras áreas (concertação política, defesa, infraestrutura, entre outros), exibindo contornos mais autônomos com relação às posições dos EUA, num movimento denominado por alguns analistas de regionalismo pós-liberal. Para além do livre-comércio, desde o fim da Guerra Fria, a agenda dos EUA para a América Latina inclui uma perspectiva militarizada de combate às drogas e de “promoção da democracia” a partir de uma visão seletiva e instrumental a seus interesses. A concertação política no âmbito da Unasul (inclusive com a participação ativa de governos de distintas orientações ideológicas) permite que a organização venha desempenhando um papel relevante na manutenção da estabilidade regional frente a crises localizadas. A criação do Conselho de Defesa Sul-Americano, por sua vez, vem paulatinamente promovendo uma concepção regional de defesa e tem servido como espaço para a promoção da indústria de defesa brasileira. Também no radar da Unasul, embora de forma incipiente, há tentativas de uma nova abordagem para o combate às drogas e ao narcotráfico que, se consolidadas, iriam na contramão das estratégias militarizadas dos EUA. Por fim, as iniciativas de infraestrutura adquiriram bastante espaço (IIRSA/Cosiplan), com o protagonismo de empresas brasileiras de construção civil e financiamentos do BNDES. Em suma, para além dos temas econômico-comerciais, a atuação brasileira no âmbito da integração vinha apostando numa agenda mais diversificada, dentro da perspectiva de que o fortalecimento das relações com os países vizinhos seria simultaneamente positivo como valor e estratégico para uma inserção mais autônoma do Brasil no cenário internacional.

No período mais recente, embora esta orientação geral tenha sido mantida pelo governo brasileiro, houve uma diminuição relativa no ritmo das iniciativas regionais, devido aos impactos da crise econômica internacional e à priorização da agenda doméstica em países fundamentais como o Brasil, a Venezuela e a Argentina. A isso soma-se desde o início de 2016 a mudança na orientação política da Argentina – com a recente eleição de Mauricio Macri -, o aprofundamento da instabilidade na Venezuela com a eleição de um legislativo de maioria opositora e possibilidade de um referendo revogatório no horizonte e a crescente polarização política na região em geral.

Perspectivas

A partir dos anúncios feitos pelo governo interino e de documentos divulgados anteriormente, apontaremos algumas perspectivas para a área de política externa diante do quadro acima desenhado. O aspecto mais claro, sem dúvida, é a ênfase no comércio exterior e no tema das negociações comerciais.

Por parte do governo interino temos até o momento a nomeação de José Serra para o Itamaraty – que em seu primeiro dia no cargo divulgou notas duras contra a Unasul e contra os governos de Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua – e o anúncio de modificações na estrutura organizativa da área de comércio internacional. A Câmara de Comércio Exterior (Camex), órgão interministerial responsável pela formulação de diretrizes para a área, sairá do Ministério da Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior e passará a ser subordinada diretamente à Presidência da República. A Agência de Promoção de Exportações (Apex), também localizada no MDIC, será realocada no Itamaraty. Esta reorganização parece ser um revés para Serra, que desejava assumir um Itamaraty “turbinado” pela Camex e pela Apex, na expectativa de exercer influência na área econômica do governo. Contudo, durante a gestação do governo interino, setores industriais que integram a base de apoio central a Temer, como a Fiesp e a CNI, vinham se manifestando contrários à fusão das agências com o MRE. O resultado parece ser uma tentativa de conciliação.

Embora o setor privado sempre tenha tido influência na Camex, a participação de representantes de sindicatos, movimentos sociais e ONGs nas delegações brasileiras aumentou durante os governos Lula e Dilma. Contudo, esta abertura não foi institucionalizada. No último período, as organizações da sociedade civil vinham demandando a criação de um Conselho de Política Externa, para dar transparência ao processo de formulação e institucionalizar a participação social. Este tendência deve ser revertida no governo interino. A influência do setor privado deve aumentar de forma significativa, em detrimento das demandas de democratização do processo de formulação de política externa.

A modificação organizativa aponta a centralidade do comércio exterior na agenda diplomática do governo interino. A análise de documentos e pronunciamentos prévios nos dá pistas sobre a direção desta agenda: a busca de novos acordos de livre comércio – com ou sem o Mercosul –, sobretudo com as economias centrais; o esvaziamento de iniciativas políticas de integração regional e de cooperação sul-sul; e a redução no perfil de atuação em organismos internacionais. Em suma, o que provavelmente será defendido nos próximos meses como resgate do “interesse nacional” será a agenda ideológica dos setores apoiadores do golpe, centrada nos acordos comerciais em detrimento dos temas políticos mais globais, ou, para resgatar a ideia contida no programa de governo do então candidato à Presidência em 2010, José Serra, a política externa deverá evitar “grandes protagonismos”.

Na breve passagem sobre o tema, o documento Ponte para o Futuro, divulgado no final de 2015 pelo PMDB, menciona a “inserção plena da economia brasileira no comércio internacional”, “maior abertura comercial” com ou sem o Mercosul, busca de acordos regionais de comércio com Estados Unidos, União Europeia e Ásia, integração às cadeias globais de valor e convergência das normas nacionais aos “novos padrões normativos que estão se formando no comércio internacional”. Estes elementos apontam boa dose de confluência com a agenda que vem sendo perseguida pelos EUA nas novas parcerias regionais, como o TPP e o TTIP. O programa do PSDB à presidência em 2014 seguia uma linha semelhante, adicionando a “descaracterização dos Brics como bloco de confronto” (conforme exposto na entrevista do então candidato Aécio Neves à revista Política Externa). O texto mais completo sobre o tema é o programa de Serra à presidência em 2010. Além de condenar “grandes protagonismos”, o documento indica o uso mais ofensivo de mecanismos de defesa comercial; denuncia práticas de comércio desleal, sobretudo por parte da China; defende maior coordenação da Camex com o setor privado; defende a continuidade da reforma do conselho de segurança da ONU, mas evitando medidas custosas em busca de prestígio e apoio à candidatura brasileira; destaca ameaças às fronteiras (tráfico de drogas e contrabando de armas); e defende flexibilidade para que os países do Mercosul negociem individualmente acordos comerciais.

Como dito, a ênfase nas negociações comerciais é clara. Como a Argentina passou recentemente por uma mudança de governo e de orientação política (que também privilegia o tema de acordos comerciais), é possível que haja um nova reorientação do Mercosul a partir da convergência entre seus maiores sócios. Neste âmbito, as medidas mais passíveis de serem concretizadas em curto e médio prazo são aquelas que já vinham sendo negociadas no governo da presidenta Dilma Rousseff (o acordo Mercosul-UE, acordos comerciais na América do Sul e a aproximação com a Aliança do Pacífico). Embora haja resistências no interior da UE, lideradas pela França, podemos considerar a possibilidade de avanço, caso o Brasil e a Argentina se disponham a oferecer mais. Por outro lado, embora devam ocorrer tentativas de aproximação com acordos como o TPP e a abertura de novas negociações, a garantia de resultados é bem menor (negociações comerciais são lentas, e a diversificação da economia brasileira deve motivar resistências em alguns setores). Além disso, se lembrarmos da atuação de Serra no final do governo FHC em torno do programa de combate ao HIV e da aliança com Índia e África do Sul na OMC para a quebra de patentes em situações de emergências de saúde pública, pode haver possíveis tensões dentro do governo interino e das próprias posições de Serra, uma vez que os “novos acordos regionais” implicariam aprofundamento de medidas de proteção à propriedade intelectual e dificultariam medidas como aquelas defendidas pelo então ministro da Saúde.

A proteção às fronteiras e o combate ao narcotráfico estiveram na agenda da primeira reunião do senador à frente do Itamaraty. O tema já apareceu anteriormente em pronunciamentos de Serra, inclusive em declarações agressivas com relação à Bolívia e ofensivas ao presidente do Paraguai. Recentemente, Obama e Macri assinaram acordos para o combate ao narcotráfico. É possível que este tema volte a ter bastante influência dos EUA, em detrimentos dos esforços no âmbito da Unasul.

Com relação a outros temas de política externa, ainda há poucos elementos para discussão. A integração na área de infraestrutura pode voltar às origens. De acordo com a proposta original da IIRSA, criada no final do governo FHC, bancos internacionais de desenvolvimento, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), financiariam os projetos que seriam executados inteiramente pelo setor privado. Nos governos Lula e, sobretudo Dilma, o tema passou a fazer parte da agenda estatal, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento. A continuidade da integração física está intimamente relacionada ao futuro papel do Banco Nacional para o Desenvolvimento Social (BNDES) e das empresas brasileiras que prestam serviços nos países da região.

Em âmbito político, as primeiras notas da chancelaria assumiram um tom agressivo e pouco diplomático contra declarações do secretário-geral da Unasul e de governos da região. É bastante provável que o Brasil se descole de todos os esforços de concertação política dos últimos 13 anos. Este tom inicial com relação à América Latina guarda pouca semelhança até mesmo com as posições do Itamaraty durante os governos FHC. Contudo, como o próprio PSDB se reposicionou no espectro político brasileiro, é possível que a demarcação de diferenças com os governos petistas traga de forma mais clara estes elementos ideológicos para a política externa. Em outras palavras, nos temas políticos mais amplos do regionalismo sul e latino-americano, deveremos ter em graus variados uma combinação entre esvaziamento da atuação brasileira e elementos ideológicos de oposição aos governos mais à esquerda na região. Como os vários arranjos de integração tomam decisões baseadas em consenso, o crescimento de divergências internas tende a dificultar a tomada de decisões relevantes.

No caso dos Brics, é difícil imaginar que o Brasil abandone iniciativas de peso como o Novo Banco de Desenvolvimento, mas o país pode ser uma voz dissonante nos posicionamentos mais políticos do bloco. A redução do perfil político também deve ter impacto na cooperação sul-sul e levar ao fechamento de representações diplomáticas no exterior, sobretudo em países do continente africano.
Em suma, como contribuições iniciais ao debate, podemos esperar prioridade absoluta às negociações comerciais e diminuição substantiva no protagonismo político internacional, que deve se refletir no esvaziamento da diplomacia sul-sul e da integração regional.

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