Disputa de projetos para o Brasil Rural: a ameaça da restauração conservadora
Mestre em Sociologia pela UFMG, Caio Galvão de França avalia projetos de desenvolvimento rural conservadores em pauta
Por Caio Galvão de França*
[Versão revista em 16 de maio de 2016]
Nesse momento em que entramos na reta final do golpe à democracia brasileira, os arautos da restauração conservadora e do programa neoliberal já desenham a agenda do novo governo. A prioridade é a desconstrução política, ideológica e material da opção pelo desenvolvimento com justiça social e soberania nacional, a imposição de retrocessos no campo dos direitos humanos e o desmonte da capacidade indutora e reguladora do Estado.
As novas prioridades, associadas ao velho hábito de apropriação do Estado, já estão sobre a mesa: fim da política de valorização do salário mínimo, retomada das privatizações (com a da CEF), revisão do marco exploratório do pré-sal, flexibilização da legislação trabalhista… e por aí vai. Dessa forma a agenda neoliberal tenta se impor, ancorada em uma onda conservadora que inflama a intolerância e a selvageria.
Nesse cenário é compreensível que os setores que perderam o monopólio e a exclusividade da representação dos interesses do meio rural no bojo da redemocratização brasileira e, especialmente, a partir de 2003, apresentem suas propostas e se movimentem. E é de se imaginar que na condição de participantes ativos do golpe estejam otimistas com as possibilidades abertas pela restauração conservadora para que possam recuperar espaços perdidos na agenda pública.
Sabem o tamanho do desafio que tem pela frente. Durante séculos as elites rurais foram contestados, mas souberam derrotar – e, em diversas situações, massacrar – aqueles que ousavam propor e experimentar novas formas de organização da produção e da vida no meio rural. No bojo da industrialização o latifúndio foi preservado e a modernização conservadora da agricultura ampliou a funcionalidade do setor para a expansão industrial e a urbanização acelerada, ao mesmo tempo que legitimou formas tradicionais e conservadores de dominação política e de subordinação econômica.
Mas a redemocratização brasileira não pode conter a entrada em cena daqueles que já faziam parte da história, mas que ganharam mais visibilidade, mais força, mais aliados e conseguiram inscrever na agenda pública seus interesses, suas demandas e seus valores.
Esses homens e mulheres da agricultura familiar e das comunidades rurais tradicionais construíram uma trajetória de conquistas em ambientes adversos, sendo todas elas resultantes de lutas muito duras. Parciais ou incompletas o mais importante é que produziram uma inflexão na história do Estado brasileiro, conquistando o direito a ter direito a políticas públicas diferenciadas, o direito a expressar seus projetos e poder ampliar seu protagonismo na sociedade brasileira. Abriram de fato uma nova etapa na disputa de projetos para o Brasil rural e para o desenvolvimento nacional.
As primeiras conquistas foram o o direito à previdência social rural, na condição de segurado especial; o Pronaf, o mais abrangente programa de crédito rural; e a retomada da discussão e das ações de reforma agrária.
E, a partir de 2003, com os governos de Lula e de Dilma, constitui-se uma agenda democrática para o desenvolvimento rural a partir da convergência conflitiva entre as lutas e demandas dos movimentos sociais e o programa democrático e popular, tendo por bases o compromisso comum com a democratização do acesso a terra e o reconhecimento dos territórios das comunidades tradicionais e o fortalecimento da agricultura familiar como elementos centrais do combate à fome, da superação da pobreza e de um novo padrão de desenvolvimento.
Antigas reivindicações foram transformadas em políticas públicas em um rico processo de participação social à quente, onde o diálogo em variados espaços institucionais esteve sempre alimentado por intensa luta social.
Um amplo repertório de políticas públicas se constituiu e vem se desenvolvendo nos últimos anos. Políticas que compartilham o sentido estratégico comum do aprofundamento da democracia e que estão orientadas para o fortalecimento econômico e social da agricultura familiar e das comunidades rurais, para a garantia do direito à terra, para a promoção da autonomia e da igualdade das mulheres rurais, para o desenvolvimento territorial e para impulsionar uma transição das práticas e do modelo de produção.
A existência desse repertório de políticas diferenciadas para a agricultura familiar é uma novidade histórica na trajetória nacional e tem servido para incentivar a renovação programática e política da ação do Estado em vários outros países e inclusive de espaços multilaterais.
Mas, mais do que ter suas demandas reconhecidas como legítimas pelo Estado, a mais forte expressão da mudança é o reconhecimento da legitimidade e da importância desses setores para participar da construção de novos caminhos para o desenvolvimento nacional.
Na base dessa conquista está a afirmação da agricultura familiar e das comunidades rurais como categoria política, social e econômica, que tem tido a capacidade para, ao mesmo tempo que afirma uma identidade geral e que organiza uma plataforma comum, valorizar as múltiplas e diferenciadas identidades dos vários setores populares do meio rural.
Na experiência brasileira a afirmação da agricultura familiar não tem se dado em detrimento dessas múltiplas identidades, como revela a crescente expressão social e política dos quilombolas, dos extrativistas, dos pescadores, dos ribeirinhos, dos assentados da reforma agrária, das mulheres rurais, da juventude rural, com suas identidades próprias, suas lutas e organizações específicas. A afirmação da agricultura familiar revela uma aposta generosa desses diversos setores em compor um campo político e social para defender seus interesses e conseguir ampliar o horizonte de suas demandas, fazendo da sua diversidade econômica, social e cultural, uma fonte de criatividade e de energia militante.
Esses aspectos revelam o potencial contra-hegemônico desses setores populares do meio rural que podem, em aliança com outros setores sociais, criar as condições para mudanças mais profundas na estrutura e na dinâmica econômico e social brasileira.
Tem sido assim que a agricultura familiar como sujeito “coletivo e múltiplo” tem obtido amplo reconhecimento sobre suas contribuições para a garantia da segurança alimentar e nutricional e a realização do direito humano a alimentação adequada, para a própria saúde da população, com a possibilidade do consumo de alimentos saudáveis, e, também, para uma dinâmica mais equilibrada e equitativa de desenvolvimento das regiões e para a conservação da biodiversidade.
A afirmação da agricultura familiar e das políticas públicas diferenciadas explicitam a heterogeneidade social da agricultura brasileira – formada por diferentes setores sociais com seus diferentes projetos– e se constituem em conquistas democráticas da história recente brasileira.
Conquistas que produziram resultados concretos na superação da fome e da pobreza rural – em 2015, o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO – que abrem novas possibilidades para o desenvolvimento das regiões e que despertam tanto o interesse internacional. E são exatamente essas conquistas democráticas que estão ameaçadas pela reação conservadora.
Dois documentos lançados recentemente são bastante ilustrativos de pontos de vistas e movimentos em curso para tentar recuperar a exclusividade perdida da Casa Grande e que ajudam a perceber a agenda da restauração conservadora, inspiradora e operadora do golpe à democracia brasileira, para o meio rural.
Vamos a eles.
O primeiro intitula-se “Pauta positiva – biênio 2016/2017” e é assinado pelo Instituto Pensar Agropecuária e pelo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Reitera, de forma geral, as demandas tradicionais do agronegócio para garantir acesso privilegiados a fundos públicos, a defesa de seu direito de propriedade e a preservação de sua situação de poder.
Apenas do ponto de vista de seus próprios interesses imediatos e particulares poderiam ser chamadas de pauta positiva, pois do ponto de vista mais geral da sociedade brasileira tem o sentido de preservar e aprofundar as desigualdades e rebaixar o patamar de direitos conquistados no período recente.
Ou será que a eliminação das atuais limitações para a compra de terras por estrangeiros, a transferência da competência para demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional, a revisão das desapropriações para fins de reforma agrária e das terras indígenas demarcadas, a supressão do poder deliberativo do Conselho Nacional de Meio Ambiente, a descentralização e enfraquecimento do licenciamento ambiental, a flexibilização do conceito sobre trabalho escravo, a restrição para a atuação dos auditores do trabalho, a desregulamentação da legislação sanitária para a liberação de agrotóxicos e a exclusão das comunidades tradicionais como beneficiárias da repartição dos benefícios gerados pelo acesso e uso dos recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade se constituem elementos para a retomada do desenvolvimento e em uma agenda positiva para a sociedade brasileira?
Com os eufemismos de sempre buscam eliminar traços civilizatórios do marco legal e institucional brasileiro, considerados eivados “de ideologias contrárias ao setor”, prejudiciais ao “ambiente de negócio” e ameaças à “garantia da ordem pública e da segurança jurídica”.
Mais uma vez o próprio discurso dos ruralistas revela sua incapacidade histórica de se associar a um projeto de desenvolvimento nacional orientado para o aprofundamento da democracia. Talvez isso decorra da sabedoria adquirida no exercício da dominação, da clara compreensão que os ruralistas têm de que medidas democratizantes representam uma ameaça à sua condição e, ainda, de que é a reprodução das desigualdade que preserva suas posições de poder na estrutura econômica e no sistema político.
Consideram-se os únicos e verdadeiros produtores, acham que podem falar em nome do meio rural brasileiro e não parecem dispostos a aceitar a disputa democrática sobre os rumos da agricultura. A partir dessa compreensão não podem aceitar a existência de políticas diferenciadas de apoio à produção para a agricultura familiar e para a pesca e aquicultura artesanais e não compreendem a força da sintonia recente entre política econônica e social. Descartam o protagonismo economico da agricultura familiar e ignoram que a autonomia das pessoas passa tanto pela garantia do acesso aos direitos sociais como pela inclusão e o fortalecimento de sua participação economica. Por isso, qualificam as políticas diferenciadas para a agricultura familiar como programas sociais e como tais consideram que devam ser transferidos para o Ministério do Desenvolvimento Social, justificando, assim, a proposta de extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Como descartam a necessidade de um política nacional de abastecimento alimentar propõem a extinção da Conab. Muito provavelmente, isso não significa descartar os generosos instrumentos de comercialização que transferem renda para o setor.
O restante o documento reafirma a pauta conservadora da bancada ruralista agora com o apetite ampliado.
O segundo documento é intitulado “A economia agropecuária brasileira – o que fazer?”1 assinado por pessoas vinculadas ao PSDB e velhos conhecidos e ativos na crítica à agenda democratizante do Brasil rural. Os autores anunciam propostas de “ações urgentes” tendo como foco o que seria primordial para a economia agropecuária brasileira. Partem de duas premissas: a escassez de recursos públicos em função da crise fiscal demandaria “rígida escala de prioridades”; a dinamização do setor agropecuário como “uma das principais vias de superação da atual crise econômica”.
Logo no início do texto chama a atenção a invenção de um suposto sujeito político e social: “a economia agropecuária e suas organizações, em associação com as iniciativas governamentais”. A economia agropecuária ganha uma dimensão demarcatória que pretende ir muito além da indicação de um recorte setorial da economia. Transforma-se em uma suposta expressão geral de interesses dos que produzem no meio rural, que, para esses autores, corresponderiam à pequena parcela dos estabelecimentos agropecuários responsáveis pela maior parte do valor bruto da produção gerado pelo setor, composta, principalmente, por grandes produtores.
Em textos anteriores alguns dos autores desse documento deixavam claro o significado dessa compreensão: políticas agrícolas para os “produtivos”; políticas sociais para os pobres; os de “menos receita” (os pobres) não deveriam ser credenciados às políticas direcionadas à produção, e, sim, exclusivamente, às políticas destinadas a erradicação da pobreza e promoção do bem estar. A decorrência dessa compreensão é clara: a grande parte da agricultura familiar deveria ser descartada da agenda econômica e produtiva e renegada à assistência social. Um determinismo econômico rasteiro que acompanhado de uma suposta racionalidade resultaria na priorização da alocação dos escassos recursos para aqueles poucos capazes de dinamizar a economia agropecuária. Nada mais antidemocrático.
Imagino que os autores tenham preferido inventar e usar o sujeito “economia agropecuária e suas organizações” para não ter que recorrer ao termo agronegócio, evitando, assim, transpor para esse tal novo sujeito as referências negativas cada vez mais associadas ao agronegócio em função dos estragos causados por esse modelo produtivo no campo ambiental, da saúde dos trabalhadores rurais e consumidores e dos direitos dos trabalhadores rurais. Na construção ideológica do agronegócio, a intenção era desvencilharem-se das associações negativas consolidadas na imagem dos latifundiários e se vestirem de uma roupagem moderna, mas o que se constata são renovadas expressões do atraso marcando sua face.
Em apenas um momento no texto – ao tratar de ações para minimizar a pobreza rural – os autores tratam de ações voltadas aos “pequenos produtores”. No tópico “O desafio estratégico redistributivo – a nova forma da ‘questão social’” eles consideram que o principal desafio para os pequenos produtores muito pobres, que ficaram “à margem do processo de modernização produtiva”, é o organizacional e propõem a multiplicação de cooperativas para comprar insumos em melhores condições e para “vender seus produtos competitivamente”, tendo por referência as “experiências bem sucedidas” da região sul do país.
É evidente a importância da organização econômica da agricultura familiar, mas as ações de apoio ao associativismo e ao cooperativismo fazem parte de um conjunto de políticas agrícolas diferenciadas para o setor que, apesar de existirem e ter escala, são ignoradas pelos autores.
Sugerem, ainda, o desenho de uma “uma estratégia específica para o Nordeste rural”, que deveria combinar ações de apoio à produção e de garantia de renda. Como não fazem nenhuma referencia a estratégia de inclusão produtiva do Brasil sem Miséria seria útil para o debate público conhecer a opinião dos autores sobre esse ambicioso e efetivo programa do governo federal.
É compreensível que os autores não tenham tratado dos pequenos produtores nos vários tópicos relacionados a economia agropecuária, mas apenas naquele destinado “à questão social”. O horizonte que vislumbram para os muito pobres – “encurralados pela forças econômicas e pelos processos sociais e demográficos nas regiões rurais” – é minimizar sua condição de pobreza, nunca fazer parte da economia agropecuária e muito menos disputar a política agrícola e os rumos do desenvolvimento nacional.
A transmutação da economia agropecuária em sujeito social e de ações políticas é mais uma tentativa de criar uma suposta representação única totalizante do rural – já tentada com a construção da categoria agronegócio – e assim tentar descartar o reconhecimento democrático da heterogeneidade social e da pluralidade existente no meio rural, composta por diferentes setores, com interesses diferenciados, conflitantes e contraditórios, com formas de inserção econômicas próprias, com diferentes tipos e lógicas de produtores.
Portanto, o sentido político de restringir a noção de ator social a apenas uma pequena parte dos que existem concretamente no Brasil Rural é tentar recuperar a exclusividade perdida da Casa Grande e tentar eliminar o espaço político e social conquistado pela agricultura familiar.
E, vejam só, fazem isso para “interromper” o que consideram seja uma “divisão social” entre os grandes produtores do agronegócio e agricultores e agricultoras familiares, que teria sido artificialmente inventada pelo governo e por alguns intelectuais para dividir a agricultura brasileira.
Nada mais antidemocrático e conservador do que querer homogeneizar a diversidade e definir quem tem legitimidade para demandar políticas ao Estado e propor vias para o desenvolvimento nacional.
Seguimos percorrendo o texto.
Não há muitas novidades no tópico “Produção e Comércio” e, em alguns pontos, os autores até expressam um reconhecimento, meio que implícito, do muito que já vem sendo feito. A partir do lugar de promotores das exportações de commodities agrícolas sugerem priorizar a conclusão de algumas obras de infraestrutura, a promoção de “ajustes e ampliação do programa de financiamento destinado à construção de armazéns privados” e ampliação dos mercados internacionais.
A novidade discursiva está em afirmar que a “integração aos mercados globais” seria condição para assegurar o “abastecimento interno com solidez” e que por isso os “produtores tecnologicamente muito avançados, precisam ser acompanhados pelo Estado brasileiro” que deve ter “uma ação de maior agressividade no confronto com as barreiras comerciais”.
Por um lado, parece ser uma uma tentativa de neutralizar uma eventual crítica a ampliação do apoio já dado pelo Estado aos setores exportadores de commodities agropecuárias, que alegasse que isso estaria se dando em detrimento do abastecimento alimentar nacional. Por outro lado, parece uma tentativa de vincular positivamente o setor agroexportador à segurança alimentar. Esse último ponto me parece o mais relevante. Deparam-se com a força política e social da agenda da segurança alimentar e nutricional e com o reconhecimento do papel da agricultura familiar na produção de alimentos e constatam que não é mais suficiente para a defesa dos seus interesses demonstrar a importância do agronegócio para equilibrar a balança comercial e, assim, contribuir com a estabilidade econômica. Parecem constatar que precisam renovar o discurso de legitimação do setor agroexportador e no texto experimentam algo nesse sentido.
O texto destaca, ainda, que o setor considerado “salvação da economia brasileira” precisaria ser acompanhado, evidentemente pelo Estado. Essa afirmação, acompanhada por outras manifestações do setor agroexportador, permite supor que estão demandando uma mudança na política externa e comercial brasileira, que deveria implicar no abandono do Mercosul e dos espaços multilaterais, como a OMC, e na priorização de negociações comerciais bilaterais.
O mesmo discurso dos anos 90, mas meio deslocado em um mundo em mudanças. Retomar um individualismo comercial em detrimento de ações coordenadas do MERCOSUL e da aposta em regras multilaterais vai na contracorrente da experiência mundial recente. Tem ficado cada vez mais patente que a desregulação dos mercados e da movimentação de capitais é geradora de crises com graves consequências para a humanidade e de que no jogo pesado entre as nações demanda um reforço do multilateralismo e a associação entre os países em desenvolvimento e, no caso brasileiro, o fortalecimento do MERCOSUL e da CELAC.
Parecem ignorar que os tempos mudam e que novidades vão se estabelecendo nos espaços globais, como por exemplo, o potencial das alianças dos países em desenvolvimento, como revela com toda a clareza a experiência ainda recente do BRICS, para se contrapor a subordinação dos organismos financeiros internacionais aos interesses das grandes economias. A própria OMC já reconhece que o desenvolvimento não é uma decorrência da intensificação do comércio internacional e que é legitimo que os países mantenham estoques para seus programas de segurança alimentar, adotem políticas com um tratamento diferenciado para agricultura familiar e preservem suas capacidades nacionais de fazer políticas públicas de desenvolvimento rural. O liberalismo comercial do século XXI confronta-se com atitudes claras de afirmação da soberania nacional e da busca de alternativas à confluência das crises econômica, ambiental e alimentar.
No tema dos “desafios estratégicos (principais) dentro da porteira” os autores destacam a expansão da agricultura de precisão elevada agora elevada a condição de “fundamento econômico e técnico da intensificação sustentável na agricultura moderna”; a difusão de informações para conter os “processos nítidos de darwinismo social” dado pela concorrência econômica; e, o chamado a “avançar muito mais para na concretização de uma ´agricultura sustentável´”.
Em pleno período de reconhecimento da insustentabilidade dos modelos produtivos intensivos em recursos geradores de gases de efeito estufa e de celebração do Acordo de Paris, que amplia as responsabilidades dos países com medidas efetivas para alterar processos produtivos, os autores relacionam a sustentabilidade apenas com a intensificação do uso dos recursos – especialmente, a terra – e não consideram condicionantes ambientais para a eficiência economia e produtiva. Seria interessante conhecer a compreensão dos autores em relação ao papel que o Brasil tem desempenhado na construção de acordos globais sobre o clima e sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, bem como sobre iniciativas nacionais e ações em curso, como o Plano Nacional sobre Mudanças Climáticas e o Programa ABC.
No tema “Estado e políticas para as regiões rurais” os autores afirmam para alguns temas o que querem, para proporem o que querem, sem que seja necessário contar com dados de realidade. Afirmações infundadas levam a propostas equivocadas. Afirmam que “a política de redistribuição de terra mostrou-se incapaz de oferecer chances econômicas às famílias rurais mais pobres e não alterou os índices de concentração fundiária” e que “como não existe demanda social pelo acesso à terra, a extinção do INCRA é uma conseqüência lógica”.
Se os autores não consideram válidas centenas de pesquisas acadêmicas que demonstram os resultados positivos da reforma agrária para as famílias assentadas, inclusive do ponto de vista econômico – mesmo com todas as dificuldades inerentes ao processo de reconstrução de comunidades rurais e atividades econômicas e às insuficiências das políticas públicas-, podem recorrer ao Censo Agropecuário e verificar os dados referentes à produção dos estabelecimentos agropecuários originados de projetos de assentamentos, que revelam que assentamentos acompanham, de forma geral, a média da produção regional. Claro que podem tentar desqualificar o Censo, como alguns tentaram recentemente sem sucesso. Desqualificar estatísticas oficiais não é o caminho mais apropriado para reagir a um quadro economico e social que eventualmente os desagrade.
Os autores, apesar da trajetória acadêmica de alguns, cometem um outro erro ao não qualificar a afirmação de que tais políticas não alteraram os índices de concentração fundiária. De fato, o índice de Gini para o conjunto do Brasil manteve-se estável nos últimos anos, mas, para além dos limites de tal indicador, isso é insuficiente para entender o que se passa com a estrutura fundiária brasileira e muito menos para respaldar a afirmação sobre uma eventual inocuidade das “políticas de redistribuição de terras”.
É evidente que nas regiões onde foram feitas as desapropriações e as terras foram destinadas para a reforma agrária a estrutura fundiária foi desconcentrada. Basta visitar as regiões de concentração de assentamentos ou os próprios dados do IBGE, agregados por municípios, territórios ou microrregiões para constatar os impactos sobre a estrutura fundiária.
O que explica a estabilidade do Índice de Gini para o conjunto do país é a ocorrência nesses anos de dois processos com sentidos diferentes: um de desconcentração, com a destinação de 80 milhões de hectares para a reforma agrária; outro de concentração, de dimensões equivalentes, nas regiões de expansão do agronegócio, como ocorre no Maranhão, Piauí, Bahia, Tocantins e em regiões de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Dizer que não existe demanda social pela terra parece mais expressão de um desejo dos autores do que a constatação de algum elemento de realidade. Demanda social não é um dado fixo, decorrente de uma única variável. Seria mais claro que os autores explicitassem sua opinião sobre a reforma agrária e sobre como a atual estrutura fundiária impacta as possibilidades do próprio desenvolvimento nacional.
A demanda social por terra se expressa, por exemplo, pelo número de famílias acampadas e pelo número de famílias que resistem e lutam pela regularização de suas posses e das formas comunitárias de utilização da terra. Mas essa demanda por terra pode crescer na medida em as políticas públicas sejam capazes de garantir a efetivação do princípio da função social da propriedade e de ampliar sua capacidade de redistribuição de terras, de consolidar um horizonte ampliado de participação da agricultura familiar na estrutura produtiva e de garantir o acesso a bens, direitos e serviços que melhorem a qualidade vida no meio rural.
O horizonte da demanda social por terra tem a ver, portanto, com a natureza das escolhas sociais feitas democraticamente sobre o padrão de acesso e uso aos recursos naturais, sobre os instrumentos de desconcentração econômica e o tipo de desenvolvimento que se quer para as regiões do Brasil.
Muito ainda pode ser feito pelo INCRA se a sociedade brasileira produzir a legitimidade necessária para a limitação do tamanho da propriedade, para uma efetiva aplicação do princípio constitucional da função social da terra e de um marco regulatório restritivo da expansão do agronegócio.
Aguardemos as propostas para poder entender o que seria “instituir e atualizar regularmente sua lei agrícola” e alguma outra justificativa que não seja apenas a de seguir o exemplo dos EUA. Já há um marco legal recente para as políticas diferenciadas para a agricultura familiar composto, entre outros, pela lei da Agricultura Familiar, pela lei e pela Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, pela Política e pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar, pelo Programa de Aquisição de Alimentos e pelo Programa de Alimentação Escolar, com suas exigências para compra de produtos da agricultura familiar. Seria interessante que os autores explicitassem suas opiniões sobre tais aspectos do marco legal brasileiro, que são reconhecidos internacionalmente pelo seu sentido econômico democratizante.
No tema “Estado e políticas para as regiões rurais” aparece de forma mais clara o que parece ter mais sentido denominar como “ações urgentes”. Afirmam que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento seriam ministérios “competidores entre si”, e que essa situação “perdeu o seu significado” e propõem a “extinção de ambos […] e a constituição de único ministério o qual poderia ser intitulado Ministério do Desenvolvimento Rural”. Esse “novo ente público”, segundo os autores, além de reduzir custos e criar sinergias, poderia “estabelecer uma estratégia de ação governamental que interrompa a divisão social”.
Seria interessante conhecer os argumentos que levam os autores a afirmar que as políticas do MAPA e do MDA estariam obsoletas, que tais ministérios seriam competidores e que a existência dos dois teria perdido sentido.
Inovam na velha proposta de extinção do MDA e da transferencia de suas atribuições ao MAPA ou ao MDS. Ao invés disso propõem a extinção dos dois, algo que pode ser considerado, como dito por uma pesquisadora, uma estratégia bem ardilosa, que embaralharia o jogo para os desinformados.
Embaralhar para não revelar as intenções reais de eliminar as políticas diferenciadas para a agricultura familiar e sua diluição nas políticas agrícolas, e assim, do ponto de vista dos autores, “interromper a divisão social” que seria insuflada pelo MDA e por tais políticas. Embaralhar para não explicitar que não reconhecem a agricultura familiar e as comunidades rurais tradicionais como atores econômicos e que a eles devem ser dirigidos apenas políticas sociais.
É evidente que se faz necessária uma boa reorganização da administração pública federal, especialmente, pelo descompasso existente entre a grande expansão e complexificação da agenda pública no período recente decorrente da criação de diversas novas e mais complexas políticas públicas, várias delas de caráter intersetorial que demandam intensa coordenação intragovernamental e federativa. Algo que vale não só para a agenda social, mas também para os investimentos em infraestrutura, para o campo dos direitos humanos, da ciência e tecnologia, das comunicações, da educação e da cultura, das políticas para as mulheres, do desenvolvimento territorial, entre outros.
A reforma do Estado necessária não é aquela pautada pelo principismo neoliberal do exugamento e do esvaziamento do papel do Estado, mas aquela que permita qualificar a administração pública federal para cumprir um programa democrático e popular orientado para aprofundar a democracia, superar as desigualdades regionais e integrar suas ações recorrendo a novas referências teóricas e conceituais, tendo em vista os limites evidentes do gerencialismo e as inovações já implementadas no período recente pelo governo federal.
E nesse debate não há como deixar de reconhecer o peso político e institucional alcançados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário na atual agenda pública. Expressam uma estratégia vitoriosa de criação, como sempre lembra Ignacy Sachs, de um “feixe simultâneo e permanente de políticas públicas” de garantia de direitos sociais, de garantia da segurança alimentar, de afirmação das populações rurais e de ampliação de espaços institucionais e incorporação de novos temas, num ambiente de valorização da participação social.
O MDA saiu da periferia setorial para se integrar a agenda central de governo, presente e atuante nas políticas anticíclicas (via, por exemplo, o PAC 2 e o programa Mais Alimentos), nas esferas de decisão sobre a política de comércio exterior (o MDA é um dos 7 ministérios que integram a CAMEX) e da política econômica, assumindo novas tarefas no desenvolvimento regional com o Territórios da Cidadania, na regularização fundiária na Amazônia e, inclusive, na agenda internacional, além de ampliar suas contribuições para o Brasil Sem Miséria, para a Convivência com Semi-árido, o desenvolvimento sustentável e a políticas de promoção da igualdade e da autonomia econômica das mulheres.
O MDA de 2016 é muito, mas muito diferente, do que existia em 2002, então responsável pelo Banco da Terra e pela gestão descentralizada do Pronaf. De lá para cá, assumiu novas atribuições (regularização de territórios e etnodesenvolvimento de comunidades rurais tradicionais; assistência técnica e extensão rural); ampliou significativamente seu orçamento (especialmente de recursos discricionários); realizou concursos públicos; inovou no marco legal (lei de ATER, por exemplo); aprofundou a democracia participativa (Condraf e Conferências), estabeleceu parcerias com universidades e órgãos de financiamento da pesquisa, impulsionou a integração regional (REAF Mercosul e CELAC) e a cooperação sul sul (projeto regional com a FAO na América Latina e Caribe e na África); e assumiu responsabilidades na gestão de políticas intersetoriais (organização produtiva das mulheres rurais, Territórios da Cidadania, governança fundiária). Conquistou reconhecimento em espaços centrais do governo federal; estabeleceu-se como importante interlocutor de estados e municípios; respondeu com criatividade e agilidade às novas prioridades da agenda de governo; colocou a agricultura familiar na agenda econômica e, soube aproveitar todas as oportunidades que se apresentaram para ampliar suas atribuições e fortalecer suas ações.
Nas disputas políticas e ideológicas, nas boas lutas, inclusive internas ao governo, seja para incluir e reposicionar temas na agenda de governo, pelo acesso aos fundos públicos, no desenho das políticas ou na conformação de uma percepção sobre o mundo rural, sua atuação contribuiu para o fortalecimento econômico da agricultura familiar e das comunidades rurais, para afirmar a reforma agrária e uma agenda democrática para o desenvolvimento nacional. Lutas e conquistas que contribuíram para a construção de um campo politico e social com potencial para impulsionar uma agenda contra-hegemônica e com capacidade para compor alianças sociais mais amplas, ancoradas no compromisso com a democratização e superação das desigualdades.
A existência e expansão das atribuições do MDA expressa, portanto, no âmbito da administração pública federal a heterogeneidade do meio rural, a dualidade da agricultura brasileira e a legitimidade de novos setores sociais ancorarem uma novo modelo de produção, mais democrático e mais sustentável.
Já pelo lado do MAPA, as coisas, de fato, não vão muito bem. Há uma perda de relevância que vem desde os anos 90 quando, em paralelo à consolidação da noção de agronegócio, processou-se um ajuste nas demandas do setor patronal em relação ao Estado: mantinham as suas tradicionais demandas de acesso aos fundos públicos por intermédio das seguidas “renegociações” de dívidas, da ampliação do financiamento para investimentos, mas agregavam com peso as demandas para melhorar a competitividade deste setor exportador com investimentos em logística, infra-estrutura, abertura de mercados agrícolas e liberalização mais liberalização no comércio internacional.
Uma agenda assumida e tocada por outras áreas de governo o que tornava o MAPA, de certa forma, dispensável para o setor, para além do importante papel da defesa agropecuária, da Conab e da Embrapa.
A partir de 2003, a situação não mudou muito e a direção do MAPA seguiu comportando-se como repercutidora do discurso ideológico e demandante do setor, em uma nostálgica e acomodada passividade: perda de atribuições institucionais; ausência de ações propositivas para a agenda de governo; limitados recursos discricionários; perda de protagonismo nos programas intersetoriais. Vale lembrar que o MAPA perdeu a responsabilidade institucional sobre a assistência técnica e extensão rural e o programa de recuperação de estradas vicinais, com o repasse de máquinas e equipamentos para as prefeituras, só parou no MDA pela recusa do MAPA em acolhê-lo.
Portanto, há razões suficientes para se repensar o MAPA, mas não é com isso que os autores parecem estar preocupados.
Mas a disputa mais importante não é a que se dá no campo da estrutura da administração pública federal. A disputa central é pela noção de agricultura familiar que vem sendo construída desde a redemocratização do Brasil, num esforço político de aproximação e convergência de diversas organizações e movimentos sociais. A disputa é pelo domínio da representação dos interesses do mundo rural, pela legitimidade de reivindicações, direitos e interesses da agricultura familiar e das comunidades rurais tradicionais que são conflitantes com o modelo hegemônico. O que querem é esvaziar a disputa de projetos, desqualificando e integrando de forma subordinada as aspirações dos setores populares do campo.
O que querem é acabar com a força instituinte das práticas sociais e econômicas destes setores e sua capacidade de construir, com base em outros valores, um novo padrão de desenvolvimento rural.
O que querem é questionar, deslegitimar e acabar com o direito da agricultura familiar a ter políticas diferenciadas orientadas para a sua autonomia econômica e para um novo padrão produtivo. E aqui é importante estar atento pois há formas variadas para atingir tais objetivos, sem que seja necessário decidir, simplesmente, pela interrupção das politicas. Ao invés disso, outras formas de atacar esse direito poderão ser acionadas e levarem a eliminação da diferenciação nas políticas públicas: a revisão da lei da agricultura familiar; o fim da condição de segurado especial para os agricultores famliares acessarem a previdência social; a unificação dos planos safras; o enfraquecimento gradual dos instrumentos; a reorientação de seu sentido estratégico; a restrição dos espaços de participação na formulação e na execução das políticas; entre outras. Sempre é bom lembrar que a desconstrução pode ser um processo rápido, imposto ou negociado, e que tem um grande efeito desorganizador.
O que pretendem é a desconstrução desta categoria política e social, formado por homens e mulheres, que reconhece e valoriza a diversidade de setores sociais com seus modos próprios de acesso, uso e gestão dos recursos naturais. Sabem que isso tem se mostrado útil para compor campos de unidade, que vem acumulando forças e que, em vários sentidos, já expressa um compromisso em transformar o modelo hegemônico de produção agropecuário, de ocupação e uso da terra e dos recursos naturais.
Podem querer tentar reinstalar burocraticamente o monopólio da representação dos interesses da agricultura brasileira e negar a possibilidade da existência de diferentes vias para o desenvolvimento rural brasileiro.
Podem querer impor sua ideologia atacando o processo recente e ainda incompleto de organização de uma programa e de um fazer contra-hegemônicos. Podem querer diluir, como expressão de uma visão conservadora e antidemocrática, a diversidade de interesses presentes no meio rural brasileiro e subordiná-los ao seu projeto, como se fora expressão de uma mera racionalidade econômica.
Mas para isso terão que fazer muita luta política e ideológica.
A heterogeneidade social da agricultura brasileira não foi inventada pelo MDA ou por alguma intelectual. O seu desvelar para a sociedade brasileira foi fruto de lutas sociais, do próprio amadurecimento democrático do país, do debate intelectual e das mudanças políticas simbolizadas pelas seguidas vitórias eleitorais do projeto democrático e popular, simbolizados por Lula e Dilma.
Se o modelo agrícola brasileiro seguirá marcado pela dualidade agricultura familiar e agronegócio, ou se poderemos trilhar o caminho de uma nova via de desenvolvimento assentado em uma estrutura produtiva democratizada, em práticas produtivas sustentáveis e um novo sistema agroalimentar produtor de saúde e de conservação da biodiversidade, dependerá menos do querer autoritário de alguns do que das escolhas sociais que forem sendo feitas democraticamente pelo povo brasileiro.
Não será resultado das opções ideológicas dos autores e nem de eventuais medidas burocráticas de reorganização da administração federal.
Os novos sujeitos políticos que entraram em cena a partir da redemocratização, que construíram suas próprias organizações representativas e que conquistaram novos direitos, seguem lutando por autonomia e cidadania, trabalhando para criar melhores condições para uma transição do modelos produtivos e do sistema agroalimentar.
Esse tem sido o sentido estratégico a orientar não só a atuação do MDA, mas de todo um campo político e social – com suas várias e variadas diferenças – de afirmação da agricultura familiar e da reforma agrária.
Esses sujeitos, homens e mulheres, incomodam por querer disputar, em alianças com outros setores sociais, os rumos do país. Lutam não pela imposição de um projeto setorial ou corporativo, mas pela afirmação de projeto generoso de superação das desigualdades e das variadas formas de opressão e discriminação, de desenvolvimento com justiça social e de exercício de novos direitos.
O golpe de Estado pode tirar um governo democraticamente eleito e alguns podem até tentar maquiar a restauração conservadora. Sabem que não tem a legitimidade democrática para aplicar seu programa neoliberal e impor sua agenda de governo. Mas assim como em outros momentos da história não terão dificuldades de recorrer a outras formas de sustentação de seu projeto de poder.
As marcas das conquistas recentes dos setores populares estão inscritas no Estado brasileiro e na consciência de muitos homens e mulheres, que, também, sabem o que querem.
* Caio Galvão de França é mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
– O texto é autoral e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.