Entrevista: Carlos Milani fala sobre o “golpe frio” em curso no Brasil
Leia análise do cientista político professor na UERJ que está na Europa participando de conferências sobre a situação política brasileira
O Brasil enfrenta um “golpe frio” que não está passando despercebido. A mídia internacional está “construindo um consenso sobre o golpe em curso”. Essa análise é feita pelo cientista político Carlos Milani, professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) que está na Europa participando de conferências sobre a situação política brasileira. Em Paris, ele aceitou o convite da Fundação Perseu Abramo para conceder uma entrevista sobre o contexto político do Brasil.
O processo de impeachment que está em curso no Brasil é um golpe institucional, na sua opinião? Por que?
Milani – Trata-se de um “golpe frio” como bem etiquetou a revista alemã Der Spiegel. Um golpe frio porque mantém as aparências de um funcionamento padrão das instituições políticas (Congresso, Judiciário e instituições de controle) mas que de fato se fundamenta no comportamento seletivo da política federal e do Judiciário, além de ter sua legitimidade totalmente questionada pela liderança do presidente da Câmara ao longo do processo. Um golpe frio porque não seria possível sem o apoio da oligarquia midiática, que mobiliza segmentos da classe média com base em informações parciais e quase sempre não comprovadas empiricamente.
Do ponto de vista geopolítico, a imagem do Brasil pode ficar prejudicada por esse processo? A oposição e o vice-presidente, Michel Temer, tentam dizer que o posicionamento do PT e da presidenta dizendo que existe um golpe em curso, é prejudicial para a imagem do país. Essa alegação é factível? Ou o processo de impeachment em si é muito mais “pesado” para prejudicar a imagem do Brasil?
Acho melhor pensar em termos de projeção do Brasil no mundo e menos em termos de imagem. A “imagem” pressupõe um espelho e, para boa parte das elites brasileiras, o espelho sempre foram os Estados Unidos e alguns países ocidentais. A “imagem do Brasil”, para tais segmentos, somente importaria à luz do que refletia na Europa e nos Estados Unidos, e nunca em função das percepções de lideranças na região (América do Sul, América Latina), no continente africano ou junto a outras potências, como a Rússia, a China ou a Índia. Não foi por acaso a escolha do país a ser visitado pelo senador Nunes logo após o voto do 17 de abril. De fato, o que se coloca em xeque é a democracia no Brasil. E se por meio de sua política externa o Brasil pretende afirmar-se democrático, terá, se for consumado o golpe, de apresentar suas credenciais. Junto a boa parte dos jornais e veículos de comunicação no mundo, hoje, vai-se construindo um consenso sobre o golpe em curso.
O senhor faz parte da comunidade acadêmica internacional. Está participando de uma série de conferências na Europa. Como a comunidade acadêmica internacional está enxergando o que acontece no Brasil?
Milani – Estive em Paris, Bruxelas e Londres, a convite de universidades europeias, principalmente Sciences Po, instituto com o qual coopero há mais de quinze anos. Em geral existe um espanto sobre a velocidade dos acontecimentos, mas também pouco conhecimento sobre o funcionamento de nossas instituições políticas no Brasil. A mídia europeia (The Guardian, The Independent, Le Nouvel Observateur, Le Monde, Die Ziet, Der Spiegel) apenas mais recentemente começou a publicar artigos mais críticos sobre o que está ocorrendo no Brasil. A visão anterior era muito dominada pela representação social construída e veiculada pelos jornais e revistas brasileiros, muitos dos quais com jornalistas presentes em cidades europeias. A academia que eu frequento na Europa parece agora cada vez mais atenta à necessidade de diversificar as fontes de informação e de dialogar com seus pares no Brasil em torno da democracia, do golpe em curso, do papel da mídia, das omissões do Judiciário, da qualidade política dos congressistas no julgamento da presidenta Dilma Rousseff, entre outros aspectos.
O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff tem sido alvo de toda a imprensa internacional que, por sua vez, tem feito muitas críticas à toda a ambiguidade e à falta de legitimidade do processo. Mesmo veículos de comunicação que antes pediam a saída da presidenta, como é o caso da The Economist, agora dizem que o processo é vergonhoso e que não resolverá a situação do Brasil. Existe a possibilidade de governos estrangeiros assimilarem essa visão e não reconhecerem um possível governo de Michel Temer?
Milani – Acredito que muitos governos devem aguardar a condução do processo, mas também o pronunciamento do Presidente Obama, até agora muito silencioso. Curioso notar que Obama fala muito aos ucranianos, aos cubanos, aos ingleses sobre como esperaria que tomassem suas decisões em matéria de democracia, direitos humanos e integração europeia, por exemplo. Quanto aos graves acontecimentos no Brasil, o seu governo tem sido muito cauteloso, porém não neutro – uma vez que já sabemos que o senador Nunes foi recebido por Thomas Shannon no Departamento de Estado e por congressistas americanos. Ou seja, o governo americano, ou uma parte importante dele, parece ter lado, e isso é grave diante da “longa história” conhecida de ingerências dos Estados Unidos na América Latina ao longo de nosso complexo processo político de construção democrática. A posição dos Estados Unidos, por sermos um país situado no que eles próprios chamam de “Western Hemisphere” é decisiva. Não acredito que governos europeus, aliados dos Estados Unidos, possam se arriscar a tomar posição distinta no atual contexto de guerra ao terror, de crise econômica e de re-emergência da direita e de movimentos extremistas na Europa. Na região latino-americana, alguns líderes já se manifestaram (Chile, Cuba, Uruguai, Venezuela), mas muitos dos governos atuais em países importantes da região são ou desejam ser parceiros próximos dos Estados Unidos em matéria de comércio, investimentos ou inclusive de segurança. Isso dificulta imaginar algum posicionamento crítico desses últimos em relação ao golpe em curso.
A mídia internacional também questionou a parcialidade da imprensa brasileira durante a crise política no Brasil. Na opinião do senhor, a mídia brasileira compromete o processo político no Brasil? De que maneira?
Milani – Os governos de Lula e Dilma tiveram a oportunidade de submeter ao Congresso projetos de regulação democrática da comunicação social no Brasil e não o fizeram. Isso foi um erro grave, principalmente depois de todos os debates que houve com a sociedade civil sobre os cenários e os mecanismos possíveis e desejados. O Brasil necessita de um marco regulatório claro e preciso, e principalmente, democrático – sobre a mídia. No contexto no qual estamos, fica claro que a Rede Globo é incompatível com a democracia, como já afirmou o professor Wanderley Guilherme dos Santos.
Em um debate sobre a situação brasileira, Pierre Salama, economista e latinoamericanista francês, afirmou que basta analisar quem participa das manifestações a favor do impeachment para perceber que a maioria da população brasileira não está representada ali. Ele afirmou também que o projeto de Michel Temer para governar o Brasil não condiz com o que a maioria dos brasileiros quer, tomando como base o projeto vencedor das eleições. Na visão do senhor, o projeto de Temer coloca em risco a construção da política externa que o Brasil vem praticando nos últimos treze anos? Por que?
Milani – Isso é muito claro nas posições anunciadas e nos nomes previstos (pelo que se publica nos jornais brasileiros). Mudam os governos, muda também a política externa, principalmente em matéria de comércio, integração regional e definição de novas coalizões internacionais. Devem entrar na lista das mudanças, caso o golpe se efetive, por exemplo: o papel do Brasil na OMC e em relação às negociações sobre comércio e investimento com os Estados Unidos, o desenho institucional e político do Mercosul, e o futuro do grupo Brics (principalmente o Novo Banco de Desenvolvimento, cujos primeiros passos recém foram dados em termos de institucionalização). Uma questão importante, para além da aproximação mais estratégica com os Estados Unidos, vai ser o que fazer da China, dos compromissos assumidos e da parceria estratégica assinada com Pequim, mas também com Moscou. A reviravolta geopolítica tenderia, a meu ver, a ser de envergadura.