Jeferson Miola analisa os bastidores do golpe, mostrando que as instituições políticas já funcionam em caráter de exceção

Por Jeferson Miola

Os golpistas dedicam um esforço descomunal para a construção de uma narrativa de normalidade do funcionamento das instituições. Este propagandismo tenta reverter o desgaste da imagem e a erosão da legitimidade da empreitada golpista no mundo inteiro que, depois do espetáculo deplorável do 17 de abril na “assembléia geral de bandidos comandada pelo bandido Eduardo Cunha”, já é irreversível. Em todos os idiomas se diz que é golpe.

Na guerra contra a democracia e a Constituição, os fascistas agem com extremo cinismo e vitimam a verdade e a justiça. Os atores golpistas, posicionados em todas as agências do golpe – na PF, no STF, TCU, TSE, no Ministério Público, Judiciário, Congresso, nas entidades patronais, na mídia –, com sutis variantes de vocabulário, repetem o mantra de que “não há golpe porque as instituições estão funcionando normalmente”.

Como se trata de um neogolpismo, de um golpe de Estado do século 21 – sem coturnos, sem exército nas ruas e sem Estado de Sítio –, as instituições não foram fechadas, os partidos populares não foram proscritos, as eleições não foram canceladas e a imprensa não foi censurada.

As evidências deste golpe, vistas deste ângulo, não são escancaradas como foram no de 1964, inclusive porque desta vez são as próprias instituições, articuladas no condomínio jurídico-midiático-policial, que participam ativamente na engrenagem golpista e promovem o golpe.

As instituições não estão funcionando normalmente, como querem fazer crer os golpistas. A aprovação do impeachment sem crime de responsabilidade na Câmara dos Deputados é prova disso. As instituições, ao contrário, atuam com excepcionalidade para a consecução do golpe:

1.    Tribunal de Contas da União: o conselheiro João Augusto Nardes, ex-deputado do PP [partido recordista com 32 deputados recebedores de propinas], é investigado de receber, em sociedade com um sobrinho, mais de R$ 2 milhões para vender perdão tributário de cerca de R$ 500 milhões ao Grupo RBS [a Globo no RS] no CARF [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais da União]. O Presidente do TCU, Aroldo Cedraz, foi denunciado na Lava-Jato por suspeitas de tráfico de influência do filho Tiago Cedraz no Tribunal – o delator Ricardo Pessoa afirmou ter pago R$ 1 milhão ao filho do dirigente do TCU para traficar interesses da empresa UTC na Usina Angra 3.

Eis o funcionamento do TCU: o Presidente Cedraz foi reeleito à presidência do TCU em 02 de dezembro de 2015 e o conselheiro Nardes, que continua livre, leve e solto, elaborou o parecer mudando a metodologia de análise de contas para incriminar a Presidente Dilma; parecer que serviu de base para a fraude do pedido de impeachment.

2.    Tribunal Superior Eleitoral: as contas da eleição de 2014 de Dilma e Temer haviam sido aprovadas pelo Tribunal, porém o PSDB teve atendido pedido de desarquivamento para nova investigação. Gilmar Mendes faz uma acrobacia jurídica para abrir outro flanco de cassação da Presidente Dilma: defende que o dinheiro transferido à campanha Dilma/Temer por empresas envolvidas na Lava-Jato é originário de corrupção, ao passo que o dinheiro saído do mesmo caixa das mesmas empresas para a campanha do Aécio Neves/PSDB e da Marina Silva/PSB, ainda que em alguns casos em quantias superiores, é dinheiro limpo e legal.

Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux e Henrique Neves “costuram nos bastidores do TSE uma estratégia que pode levar à absolvição do vice-presidente Michel Temer nos quatro processos que pedem a cassação da chapa vitoriosa nas eleições presidenciais de 2014. O primeiro passo seria separar as contas de campanha dele [Temer] e da presidente” [OGlobo, 20.04.2016]. Gilmar – sempre o Gilmar, aquele dos capangas no Mato Grosso, segundo o ex-colega Joaquim Barbosa – justifica o casuísmo: “inicialmente o Tribunal tem uma posição contrária à divisibilidade, mas certamente podemos ter um quadro novo”.

3.    Polícia Federal: pirotecnia, vazamentos de inquéritos, grampos telefônicos ilegais e fervor investigativo observam critérios de seletividade: contra o PT, a PF age como Polícia Política, e não como Polícia Judiciária. Em setembro de 2015, um delegado da PF fez uma “manipulação grotesca no despacho entregue ao STF [inquérito 3989] com o objetivo de incriminar o ex-presidente Lula e livrar a barra do PSDB”.

Em novembro de 2013, a PF apreendeu helicóptero de propriedade da empresa de Zezé Perrela [PTB], senador mineiro aliado de Aécio Neves, carregado com 450 kg de pasta base de cocaína, cujo valor foi estimado em R$ 10 milhões. “Não há, atualmente, por parte da Polícia Federal, nenhuma investigação em relação ao suposto envolvilmento da família Perrella com a droga do helicóptero e menos ainda sobre as relações dos governos tucanos em Minas Gerais com o trânsito suspeito da aeronave” [revista Fórum]. O dono do “helicoca”, que segue livre, leve e solto, é um dos 21 julgadores do impeachment da Presidente Dilma na Comissão do Senado.

4.    Judiciário: o juiz Sérgio Moro cometeu haraquiri funcional com o fim único de tumultuar o ambiente político e impedir a reação do governo Dilma. Em 4 de março, levou o ex-presidente Lula sob condução coercitiva ilegal para depor no aeroporto de Congonhas, de onde pretendia transferí-lo preso a Curitiba. Em 17 de março, gravou e divulgou ilegalmente conversas telefônicas da Presidente Dilma para criar um clima absurdo de suspeição a partir de diálogos coloquiais e, assim, impedir a nomeação de Lula para a Casa Civil – e conseguiu.

Moro, que com sua ousadia descarada infringe todas as normas da magistratura, segue impoluto exercendo as funções que deveria ser impedido de exercer, estivesse o Brasil vivendo um tempo de normalidade no STF e no Conselho Nacional de Justiça.

5.    Ministério Público: Aécio Neves e o PSDB aparecem em quase todas as listas de corrupção dos vários criminosos que fizeram acordo de delação premiada. Delcídio Amaral acusa Aécio de ocultar dados da quebra de sigilo do Banco Rural na CPI dos Correios, e de ser o comandante de um esquema tucano de corrupção em Furnas.

O Procurador-Geral da República ou não abre inquéritos ou então arquiva investigações. Em relação ao ex-presidente Lula, todavia, sua sanha condenatória não tem limites.

6.    Supremo Tribunal Federal: o STF influi na anormalidade institucional quando toma decisões e quando decide não tomar decisões. Isso fica claro, por exemplo, nos quase 5 meses de não-decisão sobre Eduardo Cunha, que se mantém ilegalmente na Presidência da Câmara para cometer desvio de poder e patrocinar o crime do impeachment. Contra o governo, entretanto, o STF toma decisão, sempre e quando a decisão serve para obstruir o funcionamento do governo e colaborar com a aceleração da espiral golpista, como é o caso da anulação da posse do ex-presidente Lula na Casa Civil e quando lava as mãos e não condena a insubsistência do impeachment sem crime de responsabilidade, que jamais poderia ser admitido e votado pela Câmara dos Deputados.

Os golpistas partidarizaram as instituições de Estado para desfechar um golpe contra o mandato da Presidente Dilma e o Estado Democrático de Direito num processo totalmente maculado pela fraude e pela manipulação. Não há espaço para ilusão: os golpistas ferem a democracia para destruir os direitos do povo.

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