Oriente Médio: o cessar-fogo na Síria e as eleições no Irã

Desde o dia 27 de fevereiro vigora um cessar-fogo na Síria, sem a participação do Estado Islâmico e da Frente Al-Nusra. Na semana de 14 de março, as negociações de paz devem ser retomadas em Genebra. A entrada da Rússia no conflito sírio desde meados do ano passado (enfatizada pela imprensa como a primeira intervenção russa desde o Afeganistão, em 1979) alterou a relação de forças em disputa e forçou uma mudança na posição dos EUA, que deixou de condicionar as negociações a uma mudança imediata de regime. Ainda assim, a participação de Assad nas próximas eleições (as conversas de paz preveem a realização de eleições em 18 meses) promete ser um dos pontos mais controversos em Genebra.

Também em fevereiro, o Irã realizou eleições para o Parlamento e para o Conselho dos Especialistas, com um crescimento de forças reformistas ou moderadas que constituem agora um bloco importante, ainda que minoritário, no Parlamento. A coalizão reformista que apoia o presidente Rouhani ganhou as 30 cadeiras em disputa em Teerã e teve um bom desempenho em outros centros urbanos. O resultado não indica mudanças imediatas, mas sinaliza a popularidade do acordo nuclear obtido pelo presidente Rouhani no ano passado e a provável continuidade de uma estratégia de abertura política e econômica gradual e de reaproximação com os EUA. Por outro lado, o descongelamento das relações diplomáticas com EUA e europeus e a diversificação de parcerias pode potencialmente enfraquecer a influência russa no país. Vale ressaltar que a continuidade destas tendências pode ser colocada em jogo, dependendo do resultado das eleições nos EUA em novembro.

O referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia (UE)

Em fevereiro, o anúncio da realização de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE dividiu a atenção com as sucessivas notícias sobre a crise dos refugiados no continente. A votação, promessa de campanha do primeiro-ministro David Cameron no ano passado, está marcada para o dia 23 de junho. Após condicionar sua posição na campanha à negociação de um status especial para o Reino Unido na União Europeia, obtido em parte no mês passado, Cameron tem defendido a permanência do país na UE. Mas o partido conservador liberou o voto de suas lideranças. Durante as duas primeiras semanas, os debates foram dominados por temas relativos à segurança, emprego e crescimento econômico. Pesquisas de intenção de voto apontam que uma estreita maioria do eleitorado votaria pela permanência. Setores industriais e financeiros também têm se manifestado a favor da permanência do país no bloco. A convocação do referendo pelos conservadores britânicos acontece num cenário de crescimento eleitoral do Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP), com posturas de ultradireita que têm conquistado votos de críticos à imigração e à UE, que tradicionalmente votam nos conservadores. Ocorre ainda num momento difícil para o processo de integração, com aumento de expressões de xenofobia em toda a Europa, com crescentes restrições à livre circulação de pessoas (um do pilares do projeto europeu), com crescimento eleitoral de partidos de direita e extrema-direita e com as dificuldades econômicas que persistem na região, sobretudo nos países do sul da Europa.

O referendo sobre a reeleição na Bolívia

No dia 21 de fevereiro, a Bolívia foi às urnas para votar sobre a reforma de um artigo da Constituição que permitiria a candidatura do presidente da República a uma segunda reeleição consecutiva. Por uma estreita margem (2,6% dos votos), o eleitorado rejeitou a reforma constitucional, o que impede uma nova candidatura de Morales nas eleições em 2019.

Os resultados regionais indicam a manutenção da tradicional base de apoio indígena e camponesa a Evo, mas uma perda de apoio entre eleitores das grandes cidades e das regiões opositoras da chamada meia lua, como o departamento de Santa Cruz. Embora não seja fiel ao MAS, o partido vinha conquistando votos nestes setores no último período.

Os resultados da votação devem ter implicações importantes para o cenário político boliviano. Em primeiro lugar, embora não tenha efeito legal sobre o atual mandato de Evo, terá um efeito político. O desgaste durante a campanha do referendo e o ressurgimento da polarização político-social devem se refletir nas taxas de aprovação ao governo nos próximos meses, num cenário mais difícil em termos econômicos, dada a lenta recuperação da economia global, a queda no preço das commodities e o maior impacto sobre os países em desenvolvimento no último período. A impossibilidade de concorrer novamente em 2019 também colocará em pauta o tema da sucessão, o que pode alimentar divisões no interior do partido, bem como na base de apoio dos movimentos sociais. Por outro lado, o desafio de um nome capaz de unificar as bases políticas também está colocado para a oposição, que até o momento não tem uma liderança nacional com este perfil.

As primárias nos EUA, a radicalização dos republicanos e os financiamentos de campanha

A campanha eleitoral nos EUA tem sido destaque no noticiário internacional desde que o processo de primárias teve teve início no Estado de Iowa, em fevereiro.

No campo republicano, as primárias começaram com 17 pré-candidatos e contam atualmente com quatro postulantes. O pré-candidato Donald Trump lidera a corrida pela indicação, embora não seja o preferido da máquina partidária. No campo democrata, a candidatura do senador Bernie Sanders, com pautas bastante à esquerda da média democrata, tem sido menosprezada pela imprensa desde seu lançamento no ano passado e só ganhou repercussão com os bons resultados obtidos no início das primárias.

Há anos especialistas apontam uma tendência a uma “polarização assimétrica” do eleitorado estadunidense, com crescente radicalização à direita e a criação de organizações como o Tea Party. Entre os republicanos, a novidade é que um candidato fora do establishment, o bilionário Donald Trump, tem capturado estes votos. Pelo lado democrata, é provável que a senadora Hillary Clinton consolide suas vantagens nas primárias nos próximos meses e obtenha a indicação oficial. Contudo, a novidade é o significativo espaço conquistado por uma candidatura com posições mais à esquerda que a média do partido (próxima às posições mais tradicionais da social-democracia), indicando que a polarização – até então mais visível no campo conservador – também está se fortalecendo entre o eleitorado mais progressista, sobretudo os jovens, ecoando movimentos recentes como o Occupy Wall Street e movimentos de jovens negros contra a violência policial.

Um ponto importante levantado pelas eleições estadunidenses, mas pouco presente na grande imprensa, diz respeito ao financiamento de campanhas e ao papel crescente de doações anônimas milionárias no processo eleitoral. Após mudanças na legislação de financiamento de campanhas em 2010 nos EUA, estima-se que as doações secretas batam recorde nas eleições deste ano. As regras aprovadas em 2010 abrem uma brecha para doações anônimas por meio de organizações sem fins lucrativos, que, segundo o Center for Responsive Politics, podem chegar a meio bilhão de dólares para a campanha deste ano.

Os pesquisadores Theda Skocpol e Alexander Hertel-Fernandez, da Universidade de Harvard, relacionam a radicalização do partido republicano às doações milionárias de campanha e, mais especificamente, ao papel da rede liderada pelos famosos irmãos Koch neste processo. Segundo os pesquisadores, posições ultraliberais, crescentemente defendidas por legisladores republicanos, não seriam majoritárias entre o eleitorado do partido (temas como gastos com educação, previdência e saúde apresentariam as principais divergências), nem mesmo entre associações empresariais tradicionalmente alinhadas, como a Câmara de Comércio dos EUA.
Uma comparação entre as fontes de financiamento das atividades do Partido Republicano entre 2002 e 2014 apontaria o crescente espaço de fundos não-partidários, o que significaria recursos de organizações que não são organicamente vinculadas ao partido.

Segundo os pesquisadores, analisar as doações em termos individuais forneceria uma explicação incompleta, já que desde o início dos anos 2000 um elemento importante é a formação de uma rede de doadores, organizada e administrada pelos bilionários irmãos Koch, que age como uma espécie de estrutura “para-partidária”. Ou seja, a rede de doadores não opera de forma independente do partido, mas se organiza em uma estrutura ao mesmo tempo federada e centralizada, que opera de forma independente, mas dentro do Partido Republicano. Ainda segundo o estudo mencionado, 76% das organizações conservadoras criadas a partir de 2002 estão ligadas aos Koch e 86% do financiamento extrapartidário dos republicanos vêm da rede dos magnatas. Esta rede inclui centenas de doadores (cerca de 500 segundo estimativas), 1200 funcionários em tempo integral e mais de 100 escritórios no país.

Após uma primeira fase que remonta aos anos 1970, com a criação de think tanks conservadores (como o Cato Institute), a novidade seria a criação e a coordenação de uma rede de doadores (por meio dos Seminários Koch, que ocorrem semestralmente, e da Câmara de Comércio dos Parceiros da Liberdade) e a de organizações para a mobilização popular. A organização mais ativa desta nova fase seria a Americans for Prosperity, que é gerida de forma autônoma, centralizada, mas com uma estrutura federativa. Segundo os pesquisadores, outra diferença seria a alta rotatividade dos profissionais da AFP, entre cargos legislativos, empregos nas indústrias Koch e cargos de direção nesta rede de organizações “para-partidárias”.

Segundo Skocpol e Fernandez, a radicalização do discurso de uma crescente parcela dos republicanos (sobretudo em posições econômicas ultraliberais) não responderia diretamente aos anseios dos eleitores, mas principalmente à máquina dos Koch. O candidato líder da corrida republicana, Donald Trump, é visto com bastante desconfiança neste setor ultraliberal, dadas suas posições protecionistas. Embora os pesquisadores não avancem nas implicações desta disjunção entre o eleitorado de base e a posição de seus representantes, uma hipótese possível seria pensar o êxito de Trump à luz desta crescente disjunção.

Como já foi noticiado por agências independentes, esta rede de organizações conservadoras também se articula internacionalmente em mais de 80 países, por meio da Atlas Network. Segundo reportagem publicada pela Agência Pública no ano passado, a rede Atlas é uma espécie de “meta-think tank”, focada em apoiar a criação de outras organizações ao redor do mundo. Ainda segundo a matéria, a organização Students for Liberty é um dos principais mecanismos de conexão entre a rede conservadora nos EUA e os movimentos ultraliberais de jovens na América Latina. No Brasil, a rede Atlas e a Students for Liberty apoiam financeiramente atividades da organização Estudantes pela Liberdade. Tanto a Atlas como a Students for Liberty, dado seu caráter filantrópico nos EUA, são proibidas de financiar atividades políticas fora do país. Por este motivo, a partir do crescimento de mobilizações populares em 2013, a organização Estudantes pela Liberdade passou a se organizar politicamente em torno de outra organização, o Movimento Brasil Livre.

Para ler mais:
– sobre o referendo na Bolívia:
Derrotas y victorias. Artigo de Alvaro Garcia Linera. Leia aqui
– sobre a rede de financiamento organizada pelos irmãos Koch: Leia aqui
Skocpol, Theda; Hertel-Fernandez. The Koch effect: the impact of a cadre-led network on American politics. Paper, 2016. Disponível aqui

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