O fundamental é trabalhar a perspectiva imediata de enfrentamento entre o projeto popular e o de restauração neoliberal

Por Pedro Tierra

Mais do que caprichar nos diagnósticos, que em geral convergem no campo das esquerdas, o fundamental é trabalhar a perspectiva imediata de enfrentamento entre o projeto popular, encarnado por Lula e Dilma e o projeto de restauração neoliberal pela via do golpe judiciário/midiático/policial em curso, encarnado com colorações neofascistas por Moro/Cunha/Gilmar Mendes/Rede Globo. O enfrentamento dos últimos dias expressa o amadurecimento de um processo que se desata a partir das manifestações de 2013. Mas ocorre, neste momento, sob novas condições.

Quais são essas condições: além do conluio – o consórcio criminoso – que se estabeleceu entre setores do judiciário liderados pelo Juiz Moro, soma-se uma espécie de comitê de delegados da Polícia Federal que ocupou o vácuo deixado por um Ministério da Justiça incapaz de comandá-la, e mantê-la dentro da lei. Essa parcela de uma força armada do Estado entrou em franca atuação para depor o governo eleito por meio da espetacularização de suas ações em estreita colaboração com o cartel da mídia, em particular a Rede Globo. 

A Polícia Federal, no segundo governo Dilma, adquiriu uma autonomia que alcançou sua expressão máxima na última semana quando radicalizou o que vem fazendo sistematicamente ao longo da Operação Lava Jato, de diálogos da própria Presidente da República. 

A este crime acresce a nota da “Associação dos Delegados da Polícia Federal” reagindo a uma declaração rigorosamente institucional do Ministro da Justiça, Eugênio Aragão: “Cheirou vazamento de investigação, por um agente nosso, a equipe será trocada, toda. Cheirou. Eu não preciso ter prova. A PF está sob nossa supervisão”. A nota da Associação expressa inquietação diante do que definiu como “ameaça” à autonomia da Polícia Federal. Duas perguntas. Primeira: a Polícia Federal tem autonomia para vazar de forma seletiva informações a respeito de investigações em curso? Segunda: quem comanda a Polícia Federal, o Ministro da Justiça ou a Associação dos Delegados? Sabemos todos que a autonomia de uma força coercitiva do Estado – equipada e armada – levou à violência política indiscriminada que marcou o fim da República de Weimar nos anos 30 do século passado, na Alemanha, e abriu caminho para a ascensão de Hitler em 1933.

Todos sabemos que as elites, neste país que exibe uma das mais altas concentrações de renda do mundo, não enchem uma dúzia de limusines. Sabemos também que as elites, aqui como em outras geografias do mundo não são afeitas às ruas. Não frequentam as ruas. Enviam os segmentos que conseguem hipnotizar e mobilizar seja pelo fascínio que a ostentação da riqueza exerce sobre os setores médios que acalentam a ilusão de um dia ser como elas, seja pela transferência de sua visão do mundo por meio do bombardeio mistificador dos meios de comunicação.

A comparação entre as manifestações do domingo, dia 13 de março e os atos das “Diretas Já” ensaiada pela mídia paulista obedeceu, de forma evidente, à lógica cínica que informa os setores políticos empenhados no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. As multidões que se mobilizaram em meados dos anos 1980, foram para a rua para recuperar um direito fundamental de qualquer democracia – o direito de votar – que havia sido usurpado pelo golpe de 1º de abril de 1964; a multidão que foi mobilizada naquele domingo pelo cartel que monopoliza os meios de comunicação foi para a rua – conscientemente ou não – para cassar a legitimidade dos 54 milhões de votos que deram o segundo mandato à Presidenta. São, portanto, atos com objetivos opostos.

Os setores populares, seus movimentos, as juventudes, a intelectualidade de esquerda, os meios jurídicos democráticos estão diante da necessidade de decifrar os mecanismos utilizados pela direita e pela extrema-direita para interromper a institucionalidade estabelecida pela Constituição de 1988 que deixou de atender aos interesses da acumulação capitalista, no quadro da crise econômica mundial, tal como se expressa no Brasil, neste momento histórico, para coordenar suas ações.

Nas condições do Brasil, nesta segunda década do século XXI, amadureceu a composição dos instrumentos manejados pela direita dentro e fora do Estado, que veio se consolidando ao longo do processo de avanços obtidos pelos trabalhadores, mesmo depois da conquista do governo central, a partir de 2003. Para entendermos a complexidade desse quadro, não há como fugir à comparação entre a Paulista de 13/03 e 18/03.

As manifestações de 18 de março, em 25 estados do país, mobilizaram o esforço de entidades populares que vieram sendo construídas ao longo dos últimos trinta anos, pelos trabalhadores, movimentos sindicais, partidos de esquerda, organizações culturais, juventudes, movimentos de mulheres, negros, de LGBTs, setores democráticos das classes médias progressistas, juristas, intelectuais, artistas. Esses movimentos sinalizaram, menos de uma semana depois – e sob o fogo cerrado da artilharia midiática – sua capacidade de resistência e de mobilização. Deixando exposta a fratura social alimentada pelas forças golpistas. Centenas de milhares de cidadãos e cidadãs saíram às ruas em defesa da democracia entendida como condição garantidora dos direitos conquistados, inscritos na Constituição de 1988 e aprofundados a partir de 2003.

A manifestação de 13 de março foi mobilizada por uma empresa: a Rede Globo de Televisão. Bem adequada ao figurino neoliberal dos tempos que correm. Revelou uma face real e preocupante, em geral escamoteada, do conflito político presente: os líderes institucionais da direita – senador Aécio Neves, presidente do PSDB e Geraldo Alckmin, governador de São Paulo – sequer conseguiram falar no palanque. Foram impedidos pela massa que já não estava sob seu controle, fora capturada pela hegemonia da extrema direita. Tiveram que se retirar, sob os gritos de “fora corruptos”, de uma manifestação sem programa, sem outras bandeiras além da bandeira do ódio e do ressentimento açulada pelos meios de comunicação. Um quadro típico que caracteriza essa vertente política quando desembarca nas ruas. É necessário, portanto, que entendamos: a direita está nas ruas e, em certos momentos, sob a hegemonia da extrema direita. Esse é o fato: as ruas do Brasil, depois de décadas, passaram a ser campo de disputa entre os defensores do projeto popular e os defensores da restauração neoliberal que adquiriu no conflito social atual colorações políticas neofascistas.

Tal fato determina a necessidade de ações práticas da parte dos movimentos dos trabalhadores e da parte do governo. Deste, as organizações populares que seguem apoiando-o, ainda que com críticas, exigem com urgência a mudança da política econômica com medidas emergenciais, por exemplo um programa “Mais empregos”, orientar investimentos para a área de infraestrutura e a ampliar o investimento nos programas sociais já existentes. Traduzindo, recuperar a agenda que elegeu Dilma Rousseff presidenta da República em novembro de 2014 para reatar os laços entre o governo e a base social que o elegeu.

Dos movimentos sociais, a situação de emergência exige a multiplicação das pequenas ações em todos os espaços de organização e debates a que tenhamos acesso, a pulverização da guerrilha eletrônica que vai cumprindo um papel de romper com o monopólio da informação, a realização de atividades culturais, viradas, vigílias capazes de mobilizar as juventudes das periferias e das universidades, escolas públicas e privadas para a batalha de valores em defesa da democracia e a preparação dos grandes atos de massa – 31 de março – coordenados pelas frentes que se constituíram nos últimos meses e, dentro de quarenta dias, uma mega mobilização em frente ao Congresso Nacional como vigília cívica que possa preceder a votação do impedimento da presidenta Dilma.

Tenhamos claro que a direita trabalha com informações semelhantes às nossas. E com um grau de articulação superior ao nosso. Trabalhará suas mobilizações combinadas com as articulações no Congresso Nacional, onde nos encontramos em franca desvantagem. É necessário que a intelectualidade, os juristas, os artistas tenhamos como tarefa a denúncia diária desse teatro do absurdo a que o país foi conduzido: um processo de impedimento de uma presidenta da República eleita com 54 milhões de votos, em eleições limpas, sobre a qual não pesa acusação consistente de crime de responsabilidade. Esse processo foi aberto e é conduzido por um presidente da Câmara denunciado a partir de provas documentais, pela Procuradoria Geral da República por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal, acolitado por uma empresa de comunicação concessionária de serviço público, em conluio com personagens do Poder Judiciário.

Não permaneceremos indiferentes aos ataques golpistas contra as conquistas que a sociedade brasileira alcançou nos últimos anos “Estamos de pé,/ para retomar a marcha interrompida./ Agora é a vigília./ Agora é a rua, a praça, os becos, os morros, os cais, os corações./ O chão da fábrica, o assédio à cerca do latifúndio./ As escolas ocupadas pelos que nasceram depois de nós./ A guerrilha digital contra a acidez do ódio que sonha dissolver/ a invencível alegria de nossa gente./ Acreditem, os sonhos do ódio, não vingam.”

Pedro Tierra é presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo