Médico sanitarista David Capistrano Filho é homenageado em SP
Nesta terça-feira, dia 10, será realizado um tributo na Faculdade de Saúde Pública da USP com transmissão ao vivo pela tevêFPA
O Tributo a David Capistrano Filho, organizado por amigos e companheiros, no dia 10, em São Paulo, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, às 19h30, no auditório João Yunes, vai recordá-lo no 15º aniversário de sua prematura morte, ao fim de anos de luta contra a leucemia. A proposta é homenagear, nesses tempos extremos, a capacidade do ex-prefeito de Santos de afirmar opiniões sem sectarismo e de ser tão combativo como se espera de um camarada comunista. Médico sanitarista, Capistrano foi um dos arquitetos do Sistema Único de Saúde e introduziu políticas públicas que são referência na saúde brasileira até hoje, como as medidas de prevenção e combate à AIDS e a luta antimanicomial. O evento irá contar com transmissão ao vivo da tevêFPA.
Capistrano foi muitos. Amigos e companheiros guardam pedaços fraturados de sua história. Telma de Souza, ex-prefeita de Santos, após contar com Capistrano na coordenação da campanha, o tornou secretário de Saúde e, posteriormente, o indicou para sucedê-la. Dai surgiu uma relação conturbada, porém, como ela define, muito próxima. Com a delicadeza das amigas, Telma se recorda do trabalho de Capistrano no Vale do Ribeira, onde atuou como membro do PCB e desenvolveu ações de atenção às parturientes, criando um modelo de berço a partir de engradados de bananas, recoberto com as folhas de bananeiras. “É bem a cara dele”, elogia.
Saúde em Santos
Após ter sido secretário de Saúde em Bauru, Capistrano, com Telma na Prefeitura de Santos, foi além. Enfrentou um dos mais altos índices de AIDS, adotando uma abordagem ousada e contestando tabus sobre a então desconhecida doença. Telma se lembra do grande número de mortes e da primeira providência de Capistrano para organizar o acolhimento dos doentes em um Centro de Apoio. Depois, junto com Fabio Mesquita, médico epidemiologista, cruzaram dados para confirmar que a AIDS não era uma doença de homossexuais. “Concordei com a distribuição das seringas aos drogaditos, o que rendeu a mim, ao Capistrano e ao Mesquita ordens de prisão”, relembra, como se tivessem cometido uma travessura.
Para o jornalista Breno Altman, as ações de Capistrano enumeradas com saudosismo por Telma “ajudaram a transformar a batalha contra a AIDS em uma ampla mobilização sanitária e social”. O perfil de Capistrano o favorecia como precursor de políticas públicas inovadoras, principalmente na área da Saúde. Altman aponta como a principal herança pública de Capistrano a construção do Sistema Único de Saúde, do qual foi um dos principais formuladores e o seu mais talentoso engenheiro. “Principal liderança sanitarista do país a partir dos anos 70, para além de colaborar decisivamente para o corpo doutrinário e orgânico do SUS, suas experiências como gestor público, em Bauru e Santos, serviram de exemplos para muitos operadores do sistema e para uma multidão de usuários”, avalia o jornalista.
A elaboração de uma alternativa à omissão do Estado na saúde pública era uma das preocupações de Capistrano ao ser preso e torturado, junto com outros integrantes do PCB, no final de 1975. O médico, então universitário, Ubiratan de Paula Santos, o Bira, companheiro do PCB, foi preso com Capistrano no DOI CODI paulista. Lá, “ele pensa a criação do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde) para discutir políticas de saúde e construir um sistema de saúde nacional”, uma preocupação num momento da história brasileira em que o sistema público de saúde atendia restritamente apenas os contribuintes da Previdência.
Também no governo de Telma, Capistrano organizou a intervenção no Hospital Anchieta, entidade privada de Santos, libertando os pacientes de um verdadeiro depósito humano. “Foi um marco da luta antimanicomial que inspirou esse movimento a alterar radicalmente o cenário psiquiátrico do país”, avalia Altman. O atendimento à saúde mental na cidade passou a ser organizado em Caps (Centro de Atenção Psicossocial), separados das policlínicas, outra inovação de Capistrano.
Políticas públicas
O legado de Capistrano para as políticas públicas se estende além da área da saúde. Valter Pomar, professor da Universidade Federal do ABC, assessorou Capistrano em Santos e acredita que pessoas como ele, entre outros prefeitos petistas, como Dorcelina Folador, Celso Daniel e Toninho do PT, os três assassinados, fazem muita falta hoje em dia. “O David foi um grande prefeito, dos melhores que tivemos naquela geração de 1988 a 1996, quando a maior parte do PT entendia que governar não era apenas administrar, era também e principalmente acumular forças, disputar concepções, participar da luta política e social entre as classes”.
Bira, secretário de governo de Capistrano, acompanhou o impacto da gestão transformadora da administração do médico sanitarista. Diferentemente dos políticos conservadores, o então prefeito “não cedia, não deixava de aplicar uma diretriz política em decorrência dos riscos de imagem”. É deste compromisso ideológico que surgem ações e políticas públicas surpreendentes para a cidade, como as melhorias nas favelas para promover habitabilidade, acolhimento da população de rua, instalação de maternidade para atendimento das mulheres de baixa renda, alteração da relação tributária com o porto, gestão metropolitana com duas administrações regionais, criação do diário oficial com um grupo de jornalistas para dar cobertura às secretarias e muitas outras iniciativas cujos princípios, ao lado das experiências de outros prefeitos do partido, deram origem ao que o PT, orgulhosamente, chamou de “modo petista de governar”.
Quadro político
Militante do PCB, Capistrano ingressou no PT em 1985 com um grupo que editava o jornal A Esquerda. Altman o define como “um refinado quadro político” dedicado a um projeto estratégico e sobre o qual exerceu importante papel como intelectual e dirigente. Pomar relembra ataque feito a Capistrano em uma reunião da tendência majoritária do PT na época, a Articulação, durante a crise do socialismo soviético. “O `divertido´ é que os que atacaram o David, naquela época, cobrando que ele fizesse autocrítica pelo que tinham feito os soviéticos, os chineses, os cubanos, os romenos, os búlgaros etc., hoje criticam publicamente qualquer intenção de fazer autocrítica sobre os erros… do PT”.
Para Bira, havia uma estranheza entre o PT e Capistrano. “Ele não era um fundador, não contava com toda simpatia da alta direção do PT”. Em tempos de estranheza entre a alta direção e a militância do partido, Altman, Pomar e Bira concordam que há um vácuo onde antes havia Capistrano. “Sua morte precoce provocou um vazio tanto no estado-maior do movimento sanitário quanto no PT. A crise de direção pela qual passa o PT tem em sua ausência, penso, assim como na de vários outros companheiros da melhor forja, um dos fatores mais relevantes”, diz Altman. Pomar cita outro episódio, quando Capistrano participava da Articulação de Esquerda e foi autor de um discurso memorável no encontro estadual do PT-SP. “Ele explicou para o plenário que ele era totalmente a favor da mais ampla política de alianças, mas defendia que o Partido fosse hegemônico sobre os aliados, não subalterno aos aliados”. Bira reconhece que “uma pessoa só não alteraria os rumos da história, mas esse ideário, essa concepção da política como algo nobre tem feito falta”.
Do Linha Direta do PT / Foto Agência PT