Debatendo os sistemas agroalimentares e seus efeitos sobre o desenvolvimento rural sustentável, a Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) iniciaram na manhã de 27 de outubro seu novo ciclo de debates: Uma Agenda Democrática para o Brasil Rural. O ato de lançamento contou com Joaquim Soriano, diretor da FPA, e Thomas Manz, representante FES no Brasil.

A sessão inaugural foi coordenada por Gonzalo Berrón, diretor de projetos e política internacional, desenvolvimento sustentável, mídias e comunicação da FES. O debate contou com a presença de Renato Maluf, professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) e integrante do Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Ceresan), ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); e Arnoldo de Campos, secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDA).

Sistemas alimentares

Renato Maluf iniciou sua apresentação mostrando as duas dimensões do enfoque sistêmico para tratar da questão alimentar. Segundo ele, por um lado, esta abordagem mostra que produção, distribuição e consumo de alimentos são dimensões interdependentes; por outro, afirma a existência de uma coordenação entre estas atividades. Nesta perspectiva, não se pode esquecer que “um sistema alimentar se reproduz com hegemonias e contra-hegemonias. Dizer que existe um sistema alimentar não significa desconhecer que no interior deste sistema existem dinâmicas contraditórias”.

Para Maluf, é possível afirmar que existe um sistema alimentar organizado globalmente e algumas de suas manifestações estão no modelo agrícola, na presença de grandes corporações transnacionais com enorme poder de determinação dos padrões de produção, distribuição e consumo, na existência de um mercado global, no papel de determinação de alguns estados nacionais sobre dinâmicas do mercado internacional e as tendências de consumo. Por esta perspectiva, ao mesmo tempo em que se pode apontar a existência de um sistema global, percebe-se nele a coexistência de sistemas alimentares. Em todo sistema, há dinâmicas que vão em direção tanto à padronização quanto à diversificação.

O professor enxerga duas entradas para perceber o nível de diversificação ou padronização de um sistema alimentar: uma a partir do consumo, outra a partir da produção agrícola. Para ele, um grande desafio posto a quem pretende discutir uma agenda democrática para o campo é pensar na interação entre os dois enfoques. Maluf afirma que há dois ou mais modelos de agricultura no Brasil: um marcado pela agricultura patronal e outro pela agricultura familiar. Nesta perspectiva, a agricultura familiar seria uma categoria sociopolítica, pois surge da luta política e das demandas de movimentos populares do campo. Embora costume ser tratada como uma categoria homogênea, Maluf prefere falar em agriculturas familiares, pois o termo abarca modelos diversos. Por outro lado, o agronegócio seria uma categoria político-ideológica, organizada inclusive politicamente em um setor, com uma tradição exportadora, mas que tem também papel relevante no abastecimento interno.

O acadêmico lembra que a agricultura familiar é a principal responsável pelo abastecimento do mercado interno. Na atualidade, o Brasil mantém ao menos dois modelos opostos de agricultura familiar: de um lado o clássico modelo de produção diversificada e métodos sustentáveis, e de outro um modelo capitalizado e especializado (industrial). Como exemplo do segundo modelo, Maluf cita o caso do arroz, que tem hoje 70% de sua produção no país centralizada no Rio Grande do Sul, em propriedades de médio porte com uma estrutura mecanizada. Por outro lado, a agricultura familiar tradicional tem sido responsável pela produção de alimentos diversos, étnicos ou regionais.

Pensando nas relações socioespaciais, o professor afirma que “quanto mais especializada for a produção, mais próxima das cadeias integradas estará a produção, distribuição e consumo; quanto mais diversificada for, mais próxima dos círculos regionais”. Neste cenário, os agricultores de produtos diversificados encontram sérias limitações quando tentam expandir seus negócios a novos mercados. Segundo Maluf, isto acontece porque os mercados não estão dados; precisam ser construídos através da organização dos produtores e incentivos do Estado. Outra forma de lidar com isso seria através de círculos de proximidades ou redes sociais; como exemplo, o professor cita a rede Ecovida.

Para Maluf, no Brasil, não há políticas públicas territoriais voltadas à agricultura familiar; o que há é um conjunto de políticas decentralizadas e territorializadas. Como exemplo, citou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do MDA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Voltado a agricultores pobres, o primeiro serviu para abrir portas para programas em que o Estado adquire alimentos diretamente de pequenos agricultores. O segundo é importante não só pelo tamanho, mas por atingir o equipamento público de maior capilaridade no Brasil, as escolas, o que permite criar políticas que ajam sobre os hábitos de consumo da população.

Uma agenda para o campo passa, segundo o professor, por apontar a importância de uma alimentação diversificada e saudável e discutir estratégias de abastecimento e conformação do panorama agrícola e rural, tendo como referência o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). “Os alimentos e a alimentação são uma referência incontornável para uma agenda rural”. Além disso, seria necessário criar sistemas agroalimentares descentralizados, de modo a garantir uma agricultura familiar diversificada, e promover uma aliança entre produtores e consumidores, como forma de legitimar a agricultura familiar diversificada ante o modelo do agronegócio. Outra medida importante seria garantir a coexistência de dinâmicas distintas que integrem o sistema de forma diversa e complementar. Por fim, Maluf afirmou a importância de promover ao mesmo tempo eficiência e equidade, articulando desenvolvimento rural e territorial com a criação de sistemas alimentares e a importância da informação neste processo.

Governos progressistas

Arnoldo de Campos ficou responsável por apresentar o que vem sendo debatido e articulado pelo Governo Federal no sentido de garantir e atender a uma agenda do campo. Segundo ele, os avanços começam com a Constituição de 1988, mas a maior parte das políticas públicas que diminuíram as desigualdades nas cidades e no campo foram criadas a partir do governo Lula. Campos lembrou que os estudos sobre pobreza sempre mostraram a existência de um abismo entre as condições de vida das cidades e do campo, que vem diminuindo nos últimos anos, graças à ação do Estado.

“Por que nós saímos do Mapa da Fome da ONU? Nós tivemos um conjunto de políticas públicas. Não foi só o PAA, não é só o Bolsa Família. A importância da carteira assinada, do sistema de previdência, do aumento do salário mínimo, do emprego, o apoio às micro e pequenas empresas, o Simples, o Microempreendedor Individual, o Pronaf para a agricultura familiar, o Garantia Safra. Todo esse conjunto de políticas públicas foi responsável pela redução da pobreza multidimensional crônica urbana e rural, mas sobretudo rural”.

Segundo Campos, há desafios imensos a serem enfrentados, mas muito vem sendo feito e há avanços no sentido de pensar uma agenda democrática para o campo; entretanto, estes avanços não devem acomodar as pesosas, pois as desigualdades ainda existem e mantêm indígenas vivendo de forma mais precária que quilombola, que vivem de forma mais precária que a média do campo, que vive de forma mais precária que a cidade.

Saindo da questão da pobreza e entrando na da segurança alimentar, o secretário lembra que novos desafios se colocam. “Saímos do mapa da fome e entramos no da obesidade e das doenças decorrentes da má alimentação. 72% das causas de morte do Brasil são na transmissíveis, a maioria delas decorrentes do estilo de vida urbano, ou  seja, daquilo que se come e não daquilo que não se come”.

Campos afirmou a necessidade de proporcionar à agricultura familiar diversificada, sustentável e agroecológica o acesso a tecnologias de produção e considerar as diferenças regionais, as florestas e e os biomas, que são capazes de prover uma alimentação equilibrada para a população; além de repensar as estruturas de distribuição e abastecimento, e as políticas do setor privado e estratégias de desenvolvimento que incluam também as micro e pequenas empresas, como restaurantes, pequenos mercados e mercearias; colocando limites inclusive à publicidade.

“Além de tudo isso, temos que ter uma capacidade de diálogo com o setor privado. Achar que nós vamos resolver isso com circuitos estatais como o PAA é loucura. Se nós triplicarmos os recursos, ele atenderá cerca de 10% dos agricultores familiares, o que é muito pouco. Por quê? Porque o PAA só abastece instituições de Estado. Quem abastece os supermercados, padarias e restaurantes? Precisamos discutir isso com o setor privado, inclusive com a indústria. Há uma indústria emergente da alimentação saudável, porque ela não tem incentivos? Por que não incentivamos a alimentação saudável reduzindo os preços de alguns produtos. Nós precisamos discutir isso. Se precisamos arrecadar, por que não taxamos os produtos processados? Estamos entrando em um período que deve trazer discussões importante. A crise vai passar e precisamos estar com uma agenda de futuro posta”.

Próxima sessão

Em 23 de novembro, deve acontecer a segunda sessão de debates, com a presença de Patrus Ananis, ministro do Desenvolvimento Agrário e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, cargo em que foi responsável pela implementação de inúmeros programas, dentre eles o Bolsa Família. A exposição terá como tema as referências para uma agenda democrática para o Brasil Rural.

O ciclo

A persistência das crises econômica e ambiental tem exigido que os diversos povos repensem os padrões de produção e consumo, estimulando uma retomada – em novas bases – do debate sobre o desenvolvimento das nações. O reconhecimento dos efeitos das mudanças climáticas tem pressionado os países a assumirem novos compromissos internacionais e a criarem as condições para o desenvolvimento sustentável, abarcando ao mesmo tempo as dimensões econômica, social e ambiental.

Pensando em contribuir com a pauta que este contexto impõe, FPA e FES decidiram promover o ciclo de debates Uma Agenda Democrática para o Brasil Rural, que enfrenta o desafio de pensar a transformação do meio rural brasileiro em um espaço de qualidade de vida e de produção sustentável, integrado e parte ativa da construção de uma nação mais justa e mais democrática.

As sessões ocorrem na sede da Fundação Perseu Abramo com um público fixo presencial, formado por representantes de movimentos sociais, organizações não governamentais, acadêmicos e outros convidados. Todos os debates terão transmissão ao vivo pela tevêFPA.

Fotos por Marcelo Vinci / Fundação Perseu Abramo

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