Anfitrião, ex-presidente Lula disse que “o PT precisa construir uma nova utopia” e que “só a democracia pôde me levar à Presidência”

“Sempre acreditei e continuo acreditando no diálogo”. Assim, o ex-presidente espanhol Felipe González, 73 anos, iniciou sua fala na conferência Novos Desafios da Democracia, em São Paulo, nesta segunda-feira, dia 22. Anfitrião do evento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também falou – sobre o momento da esquerda no Brasil e no mundo, o PT, a figura do espanhol, “González é uma das cabeças mais arejadas do debate político”, além de destacar: “só a democracia pôde me levar à Presidência, só ela pôde levar um índio à presidência da Bolívia.”

Promovido pelo Instituto Lula (IL) e pelas fundações Perseu Abramo (FPA) e Friedrich Ebert (FES), o debate contou com a participação e a presença de lideranças estudantis e sindicais, políticos, jornalistas e militantes. Entre eles: os ministros da Educação e da Cultura, Renato Janine Ribeiro e Juca Ferreira; os secretários de Governo e de Trabalho e Empreendedorismo da Prefeitura de São Paulo, Alexandre Padilha e Arthur Henrique; o presidente do PT, Rui Falcão; o deputado federal Carlos Zarattini; a deputada estadual Márcia Lima; o prefeito de São Bernardo do Campo, Luís Marinho; o presidente do PCdoB, Renato Rabelo; o diretor do IL, Luiz Dulci; entre outros.

A palestra de González foi precedida pelas falas dos representantes da entidades. Thomas Manz, presidente da FES, ressaltou a importância de discutir a democracia. “É um projeto inacabado, sempre existe o risco de retrocessos, com desafios permanentes”. Para Kjeld Jakobsen, diretor da FPA, a democracia está ameaçada pela hegemonia do capital financeiro. “Hoje, a América Latina está praticamente sozinha no mundo na tentativa de criar um estado de bem-estar social”. Paulo Okamotto, presidente do IL, afirmou que este é um “momento de reflexão importante, para que tenhamos elementos sobre o tema.” Clara Ant, diretora do IL, coordenou a mesa.

Perguntas inteligentes
Membro do Partido Socialista Obrero Español (Psoe), Felipe González contribuiu para a consolidação democrática após o fim da ditadura de Francisco Franco (1936-1975). Durante seus quatro mandatos (1982-1996), ajudou a Espanha a reduzir a inflação, modernizou sua economia e ampliou a integração com o continente europeu. Foi um dos responsáveis pela entrada do país da Comunidade Europeia. Além disso, garantiu a expansão da democratização espanhola dando independência ao judiciário e fortalecendo a liberdade de expressão; promoveu ainda a inclusão social ampliando o acesso das camadas mais pobres à saúde e à educação.

González citou o título em português de seu mais recente livro, À Procura de Respostas, que aborda a crise europeia atual, para ressaltar a importância de se questionar. “Aos 73 anos, com 55 anos de política e quase 14 anos de governo, uma forma de manter minha cabeça jovem é buscar respostas, para isso é importante fazer as perguntas convenientes e inteligentes. Uma pergunta assim ajuda mais do que respostas ideologizadas, pré-estipuladas.” Para o ex-presidente, a globalização é apenas consequência de uma mudança tecnológica que alterou as comunicações entre os seres humanos.

“Elimina-se a barreira de tempo e espaço, superando as fronteiras dos estados nacionais, inclusive a soberania. A globalização mostra que independentemente das fronteiras, são tomadas decisões que alteram nossa capacidade de realização interna. Isso impacta a democracia representativa. O modelo de economia social de mercado está em crise. E a social-democracia europeia não tem solução para ela. Eu não aceito que o cidadão seja uma mercadoria.” González também destacou outro efeito da globalização, o deslocamento dos centros dinâmicos para a Ásia e o Sul do globo.

Espaço público
“Mas enfrentamos uma nova realidade. A economia da globalização foi financeirizada. Isso se descolou da economia real, o que levou à crise, à implosão do sistema financeiro. E era nisso que os países centrais eram hegemônicos, dos fluxos financeiros que condicionam a economia mundial. Mas se isso produz desigualdade na distribuição da riqueza quando tudo vai bem, quando vai mal, é pior”, disse e citou a Grécia. “O país perdeu 30% de seu PIB, mais da metade da população grega perdeu de 50% a 60% de sua riqueza. A relação dívida-PIB era de 120%, depois do ‘austericídio’ foi para 190%.”

Para González, é aí que entra a responsabilidade ao governar. “No espaço público você governa sobre ideias diferentes. Você governa sobre diferentes sentimentos de identidade culturais, religiosos, etc, sobre pertencimento. Temos de defender a diversidade, pois os reacionários querem uma sociedade homogênea. Temos de fazer um projeto de governo que interesse a todos, como Lula fez. Que englobe a todos. Como constituir maiorias para um projeto de país? Isso é arte da política, da liderança.”

Política terceirizada
Seguiu-se a fala de Lula, para quem “a vinda González pode ser o começo de um novo momento, uma nova discussão. Durante muito tempo nos trancamos na nossa verdade e vimos a esquerda europeia definhar, perder o discurso. Acho que o PT perdeu um pouco a utopia. O PT precisa construir uma nova utopia. Brasil e Europa precisam criar uma nova forma de agremiação partidária. O que o Podemos é hoje o PT foi em 1980. Nós construímos isso, a utopia, o sonho de criar o PT. A política hoje foi terceirizada e assim a democracia está fragilizada.”

Segundo o ex-presidente brasileiro, não existe possibilidade de mudança que não pela política, pela democracia. “A desgraça de quem não gosta de política é que ele é governado por quem gosta. Se você não faz política, se nega a política, o que vem é muito pior. Quando perguntam ‘qual seu maior legado?’ Foi o exercício de democracia. Nunca o povo participou tanto das decisões do governo. Eu era até acusado de ‘assembleísmo’. Foram 64 conferências nacionais para discutir políticas públicas. Só a democracia pôde me levar à Presidência, só ela pôde levar um índio à presidência da Bolívia.”

Fotos Sérgio Silva

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