Por Carlos Brandão (IPPUR/UFRJ)  

1. Vem dos ensinamentos do pensamento crítico latino-americano uma interessante visão de que o processo de desenvolvimento implica necessariamente em um conjunto de mudanças materiais, sociais, simbólicas e mentais pelas quais o aparato de produção e reprodução de determinado país é articulado e acoplado à vida concreta de sua população, de tal modo que o aparelho econômico libere o produto que fique a serviço da população, ao invés de lhe ser alheio. Esta seria a “essência de desenvolvimento”, envolvendo simultaneamente as coesões: econômica, espacial-territorial e social, garantindo a equidade das oportunidades, mas, sobretudo, a universalização dos direitos. Para sua construção, seria preciso avançar em ações sistêmicas que possam construir a aderência e a coerência entre o perfil produtivo e ocupacional, a base de interação espacial e a coesão social. Nesse sentido, o Brasil precisa construir estratégias e instituições capazes de conectar os canais de interação entre crescimento econômico, integração territorial, construção de cidadania social, ciência, tecnologia e inovação e aprimoramento de capacidades humanas emancipadoras. Só assim, poderá romper a histórica e persistente marginalização da maior parte da população brasileira dos benefícios do progresso técnico e do acesso aos serviços sociais públicos coletivos básicos para a adequada construção da almejada homogeneização social, ainda mais nesta conjuntura de brutalidades e intolerâncias. A eterna dupla tarefa da nação brasileira (combater suas desigualdades e valorizar suas diversidades) nunca foi tão atual.

2. Foi consagrado desde o texto do PPA 2004/2007 a urgência em se transformar profundamente o padrão de oferta de bens e serviços e de provisão de infraestruturas sociais de utilidade pública. Com o PAC, em seu segmento Infraestrutura Social e Urbana (saneamento, habitação, metrôs, trens urbanos, universalização do programa Luz para Todos e recursos hídricos), promoveram-se importantes inversões públicas e privadas, contudo, carentes de diálogo e coordenação entre elas. Poder-se-ia ter avançado em maior consistência e articulação das múltiplas interfaces entre: o Sistema Nacional de Fomento (BNDES, CEF, BB, BNB etc.), o Sistema de Proteção e Provisão de Bem-Estar Social, o Sistema de Aprendizado/Educação/C,T&I e o Sistema Nacional de Políticas Urbanas, Rurais e Regionais. O certo é que a mudança no Padrão de Oferta de Bens e Serviços tem potencialmente a possibilidade de reforçar os efeitos dinâmicos e sinérgicos entre estes sistemas (alguns deles ainda precários em sua estruturação). Como simples exemplos, dentre muitos outros de caráter sistêmico que poderiam ser lembrados: existia a possibilidade de ter articulado políticas de C,T&I e industriais em torno de equipamentos de monitoramento de água, de mobilidade urbana de massa, de saúde, de lazer, de cultura; era para ter se dado maior impulso às ações educativas, artísticas, de prevenção de doenças, pedagógicas-politizadoras; elas deveriam ter sido melhor articuladas, através de postos e pontos de atendimento, eventos, utilização de espaços físicos como escolas, arenas e estádios de futebol, rádios comunitárias, emissoras públicas, clubes etc., em uma ação pública de indução massiva, catalizadora e integrada no terreno da vida cotidiana, a começar pelas áreas mais carentes dos espaços urbanos e rurais de cada região brasileira. Na verdade, eles exemplos e outros visam demonstrar que não deveria haver contradição, mas antes complementaridade, entre ações exigentes de tecnologias avançadas e de ponta e ações que reclamam antes tecnologias sociais e de mobilização e agito socioculturais.

3. Propõe-se aqui formas emergenciais, um verdadeiro “tratamento de choque” na provisão de direitos, com adequadas quantidade e qualidade, que promovam a habilitação cidadã, com base na oferta incisiva, concentrada e enfeixada de bens e serviços de utilidade pública, enquanto meios de reprodução da vida social, infraestruturas sociais e meios de consumo-direitos coletivos, ou seja, instrumentos auxiliares na formação ampliada das forças e capacidades produtivas e criativas-emancipatórias humanas, que possam desatar e mobilizar ações universalizantes e de criação de patamar adequado de homogeneidade social, pela via da construção da habilitação e das inovações sociais e institucionais. Devem ser acionados, apoiados e articulados setores e segmentos prioritários de grande capilaridade espacial, ligados aos complexos de saúde, educação, habitação, saneamento, transporte urbano, recursos hídricos, energias renováveis, agricultura e processos produtivos de baixa intensidade de uso de recursos naturais e energia, dentre outros. As ações de indução pública e coletiva devem ultrapassar a simples lógica “setorialista” e compartimentada, promover a capacidade articuladora do tecido sócio-produtivo-territorial, ao lado de impulsionar os adequados engate e conexão de aparelhos produtivos localizados e a distribuição de riqueza e renda, habilitando e distribuindo territorialmente direitos sociais aos cidadãos. Essa ação de conjunto do Estado brasileiro deveria partir de uma visão de “não inventar a roda” (não propor, de início, nem novas políticas públicas, nem novas instituições etc.), mas partir do que já se tem disponível (alguns ativos, capacitações e recursos ociosos ou latentes) em cada território: equipamentos, ações e iniciativas já existentes, identificação de lideranças, agentes de transformação e novas lógicas de participação etc. Antes de tudo, cabe construir um “efeito demonstração” da presença robusta e benfazeja do Estado no território (a população precisa sentir “de que lado estão os aparelhos estatais”!). Esta ação deveria partir da própria Presidência da República, através de sua Secretaria-Geral.

4. Em suma, é urgente prover o suporte adequado de bens e serviços públicos básicos, essenciais e coletivos, transformando o formato e as modalidades de chegada (com solidez, estabilidade e consistência) do Estado no território, com plasticidade e resiliência, no chão das práticas cotidianas e do imediato sensível, das experiências localizadas, no lócus específico de reprodução social das “pessoas de carne e osso”. Urge realizar a provisão desses bens e serviços para a consolidação de uma sociedade de consumo e de direitos de massa, que logre acessar (territorialmente) plenamente direitos sociais e cidadania (saúde, educação, seguridade social, transporte urbano de alta densidade, moradia, saneamento, aprendizado etc.). Do mesmo modo, é fundamental prover infraestruturas sociais que aperfeiçoem habilidades e propiciem habilitações. É preciso construir a atuação com alta efetividade do Estado brasileiro, por meio de institucionalidades, instrumentos e mecanismos que, capilarmente, difundam, concretizem e enraízem ações de Estado em todo o vasto território nacional. Operacionalmente, serão necessárias aproximações sucessivas e ingresso adequado no sítio para atingir adequadamente o lugar (place), em que a atuação pública é mais necessária, sobretudo nas porções territoriais mais débeis. O lugar/cotidiano é a expressão do singular que precisa ser captada nas ações públicas emancipatórias e é o lócus último da efetivação e da efetividade dessas ações. 

Os “estoques” e “fluxos” de bens, infraestruturas, funções e serviços, agentes de transformação dessas áreas, precisam ser identificados rapidamente. Pelo interior do Brasil, a rede de cidades médias deverá ser utilizada na implementação da estratégia, criando o supralocal (na hinterlândia do centro urbano intermediário). Nos grandes centros metropolitanos, deveria ser centrado em suas periferias. Nos espaços rurais e regiões isoladas a ação teria que guardar muitas especificidades. O certo é que as inter-urbanidades, inter-ruralidades precisam progredir em renovadas formas de sociabilidade e reciprocidades urbanas e rurais, que precisam ser acionadas e revolvidas, gerando Plataformas Territoriais de Articulação da Cidadania em todo o Brasil, em uma grande mobilização nacional cidadã.

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