Contra o fundamentalismo religioso e a vontade crua da maioria
Por Paulo Pimenta
Duas notícias nos últimos dias assustaram o mundo. O Estado da Indiana, nos Estados Unidos, aprovou uma lei pela qual estabelecimentos comerciais podem impedir a entrada de homossexuais. A justificativa é a liberdade religiosa. O Estado Islâmico, dias antes, degolou jovens identificados como gays… Na intolerância, os opostos se aproximam.
Medidas de violência contra grupos vulneráveis têm cada vez mais feito parte do cenário político brasileiro também. Especialmente na Câmara dos Deputados, com o PL 7382/2010, que criminaliza a heterofobia, e o PL 1672/2011, que institui o Dia do Orgulho Heterossexual. Dentre outros com o mesmo espírito tramitando, vale a pena citar o Estatuto da Família, que quer definir essa instituição como a união entre um homem e uma mulher.
Em todos os casos está presente a tensão entre maiorias e minorias; entre afirmação da hegemonia de um grupo frente a outros que, por alguma razão, têm menos poder na sociedade.
Qual o sentido de uma data comemorativa que afirma o orgulho da heterossexualidade, num contexto em que homossexuais e travestis são discriminados, violentados e até mesmo assassinados por sua orientação sexual e identidade de gênero? O sentido é justamente o de esmagar a minoria.
A sociedade brasileira, em tensão com seus traços misóginos e racistas, tem uma tradição democrática que se ampliou ao longo das décadas. Justamente por isso tem, assim como em outros países, efemérides que, de forma correta, comemoram o orgulho de minorias (em poder) que precisam ser visibilizadas e respeitadas: Dia Internacional da Mulher, Dia do Índio, Dia Internacional da Luta Contra a Homofobia, Dia do Orgulho Autista, Dia Nacional do Cigano, Dia da Consciência Negra, etc.
A proposta que criminaliza a heterofobia tem o mesmo problema. O que é discriminação contra os heterossexuais? Algum heterossexual pode, sem cinismo, dizer que já foi excluído ou discriminado por essa condição? Já sofreu violência na rua? Já foi humilhado em casa? No emprego? Já foi motivo de piadas? Esse projeto de lei, evidentemente, é o contraponto ao PLC 122, que visa a criminalizar a homofobia. Por que criminalizar a homo e não a heterofobia?
Quando se cria um crime, o que se pretende é, em termos técnicos, proteger um bem jurídico. Proteger um elemento que é caro a uma determinada comunidade política. Assim, o mais básico dos crimes, o de homicídio, quer na verdade proteger a vida. O crime de peculato, proteger o patrimônio do Estado. O crime de injúria, a honra. E assim por diante. E existem determinados crimes que protegem grupos específicos. É o caso dos crimes contra crianças, adolescentes e idosos, que expressam o entendimento de que o Estado e a sociedade precisam cuidar de forma especial dessas pessoas. É o caso do crime de racismo, que existe porque as pessoas não-brancas sofrem uma discriminação em razão do seu fenótipo que é injusta e que deve acabar. E seria o caso do crime de homofobia, por se entender que a sociedade fundada em valores patriarcais exerce violência contra gays, lésbicas, travestis e transexuais.
A proposta de criminalização da heterofobia vai ao sentido oposto da ampliação da comunidade de direitos, de aperfeiçoamento das nossas instituições. Afirma a ordem de ideias que justifica e que fomenta a violência contra pessoas simplesmente pela sua forma de se identificar e de amar. Que não pode, portanto, ser aceita.
E aí chegamos à terceira proposta: o Estatuto da Família, que quer excluir os homossexuais da entidade familiar. É segregadora; retroage do patamar civilizatório que já conquistamos. Qual é o fundamento para se afastar determinadas pessoas da comunidade de afeto que é a família, cuja proteção pelo Estado é reconhecida?
Os argumentos são absurdos. Que os órgãos sexuais foram criados para reprodução, por exemplo. Fosse assim, as pessoas inférteis não poderiam se casar, já que formam uma união da qual não podem resultar filhos biológicos; fosse assim, o instituto da adoção deveria ser proibido, já que a partir dele se estabelece uma família não fundada em laços sanguíneos. Não existe uma razão pública, moralmente aceitável, a sustentar essas discriminações. E se a justificativa é religiosa, seu problema é que ela só é válida para quem crê em um dogma inicial.
O fundamentalismo existe justamente quando um grupo pretende que os princípios de sua fé sejam generalizados para a toda a sociedade via Lei. É o oposto da democracia (em cujo conceito é intrínseca a noção de laicidade): os motivos das decisões devem ser compartilhados, argumentados; na democracia um dogma não pode ser estendido a todos. Nesse sentido, determinadas opiniões, a proibição na Indiana e o Estado Islâmico se aproximam: trata-se de impor dogmas pela força. Ainda que seja a do Estado. Isso é opressão religiosa. Liberdade é a possibilidade de todos os credos conviverem.
Outra argumentação que tenho ouvido de deputados é de que a vontade da maioria deve prevalecer. A vontade do que eles entendem por maioria cristã. Não. A maioria da sociedade não pode esmagar minorias sexuais e culturais. Minorias que não lesionam ninguém, que expressam a riqueza de expressões que a humanidade comporta.
Democracia nunca foi nem nunca será o regime das maiorias. Regimes em que vale a vontade crua das maiorias são autoritários, e a história (inclusive a presente) está repleta deles. Na democracia devem coexistir a vontade de maiorias com a proteção de minorias culturais, étnicas, sexuais e outras. Os direitos humanos são justamente a linguagem comum de proteção dos bens relacionados à dignidade e à diversidade de todas as pessoas; são parte do conceito de democracia; são cláusulas pétreas, incorporados ao patrimônio jurídico e político de nossa sociedade. Não podemos, sobre isso, retroceder.
Paulo Pimenta (PT-RS) é Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados
Publicado originalmente em www.pt.org.br e www.ptnacamara.org.br