Ampliar uma frente de esquerda para combater o conservadorismo
“Se não disputamos com a sociedade o que fundamenta nossas ações, não preparamos a defesa dos valores e concepções que orientam nossas políticas e que vão muito além do nosso governo”
O 15 de março marca um momento complexo da conjuntura política brasileira e, portanto, requer uma avaliação aprofundada acerca de sua origem e suas implicações. Nesse sentido, a análise que fazemos é preliminar, pois, certamente, merecerá uma formulação mais consistente ao longo dos próximos dias.
O que assistimos neste 15 de março é uma manifestação da disputa de classes, de valores. Um confronto que manifesta os interesses dos setores mais conservadores da sociedade que, desde a eleição do presidente Lula, traçavam estratégias para derrotar o projeto democrático e popular. Essa derrota não ocorreu na última eleição, mas a pequena margem de votos que garantiu a vitória da Presidente Dilma gerou a ideia presente de que poderia se modificar esse resultado por meio da pressão política e da desestabilização do governo Dilma.
Assim, propomos algumas questões centrais para análise do movimento que se forma em contraposição ao atual governo.
A primeira se refere ao entendimento sobre a disputa de projetos políticos para o país. Os governos Lula e Dilma produziram um processo de mobilidade social jamais visto no Brasil: milhões de pessoas saíram da linha da pobreza e 36 milhões ingressaram na classe média. Isso assusta a elite e os setores da classe média que temem a perda de seu status quo. Sentem-se ameaçados por um projeto que amplia as oportunidades de acesso por meio das políticas sociais. O que divide o país, aproximando elite e parcelas da classe média, é a diminuição da desigualdade social que ocorre com a garantia de condições trabalhistas para os setores mais pobres da população (regulamentação da profissão das empregadas domésticas é um exemplo), a redistribuição de renda por meio do sistema tributário, a ampliação da disputa de emprego com a entrada de amplos setores da população à educação profissional, tecnológica e à universidade (Prouni, cotas, Mais Médicos, são exemplos).
A outra questão para análise diz respeito aos fatores conjunturais que se agregam a esse clima de conflito ideológico. A classe média, hoje endividada, foi um dos setores mais beneficiados com as políticas anticíclicas desenvolvidas pelo atual governo e, hoje, sente a perda dessa condição. O agravamento da crise econômica faz com que o governo, neste primeiro trimestre, recorra ao aumento de tarifas e serviços, gerando sua insatisfação (energia elétrica, combustíveis, planos de saúde, mensalidades escolares etc.).
Aliado a isso, a ausência de sinalização contundente do projeto de enfrentamento à crise, garantindo a continuidade e a expansão de ações de proteção dessa camada social, libera uma movimentação desses setores em direção a uma elite que nunca se viu representada pelos Governos Dilma e Lula. Mais que isso, os avanços alcançados não vieram acompanhados de um movimento de politização das camadas populares para a defesa de um real projeto político emancipatório. Os grupos beneficiados pelos programas governamentais como Bolsa Família; Luz para Todos; Minha Casa, Minha Vida; ou Prouni; em sua maioria, não têm uma consciência social de defesa ou de reconhecimento da decisão da sua implementação, que devem ser compreendidas como de um projeto mais amplo de transformação social.
Mas, essas questões apontadas não podem perder de vista os elos entre todas elas, forjando os atos do 15 de março como grande expressão pública de protesto contra o governo e o PT. Trata-se do entendimento acerca dos mecanismos de articulação que conduziram parcelas da população às ruas para fazer pressão política. Trata-se de refutar, veementemente, a tese da espontaneidade repetida pela grande mídia. Os passos dessa movimentação são de elevado profissionalismo e clareza de objetivos dos adversários políticos deste governo que souberam captar a insatisfação existente com o momento econômico, insuflando um clima de corrupção generalizada, a partir da crise na Petrobras. Importante lembrar que há uma seletividade na indignação com a corrupção.
A grande mídia atua como elemento catalisador deste sentimento, dando um verniz de espetáculo, com a participação dos próprios atores globais na convocação dos atos. A massiva divulgação, todo o dia nos canais de televisão, com um discurso do senso comum de que se tratava de ações apartidárias, bonitas, pacíficas, funcionou como um convite à participação. Um movimento desta magnitude envolve planejamento, investimento, organização e financiamento. Por que esses fatos são omitidos durante toda a transmissão?
Além disso, questões como o escândalo do HSBC, as denúncias de que as irregularidades na Petrobras tiveram início, pelo menos, em 1997, durante o governo FHC, ou casos de corrupção que envolvem PSDB e DEM, como em SP, MG, DF, PR, entre outros, não ganham dimensão partidária e são sempre tratados como condutas individuais. Isso fica evidente quando, ontem, o PP/RS esteve à frente das manifestações contra, entre outras coisas, a corrupção na Petrobras, sendo que todos os deputados federais de sua bancada no estado gaúcho estão sendo investigados.
Tudo isso, cria o sentimento anti PT que se transforma em um sentimento de ódio à democracia, reunindo outros sentimentos autoritários, homofóbicos, racistas e reacionários que se expressaram no dia de hoje por meio de faixas que pedem a intervenção militar, apoiam o feminicídio, saúdam o nazismo e protestam até contra o grande educador brasileiro, símbolo da educação popular, Paulo Freire.
Mas as respostas às manifestações de 15 de março não serão resultado de uma equação simples, pois enfrentamos um quadro adverso. Essas respostas passam por uma articulação do governo para, no plano imediato, aprovar medidas de ajuste econômico que possibilitem reduzir o déficit nas contas públicas e, no plano estrutural, aprovar medidas efetivas da reforma do Estado brasileiro.
Isso requer a construção de um novo consenso político que possibilite avançar, especialmente, em relação à reforma política, à reforma agrária, à reforma tributária e à regulamentação da mídia. Eis o impasse: quem foi à rua ontem não reivindicou tais reformas. Quem bate panela na sacada do seu apartamento no Alto Leblon não se propõe a lutar por medidas efetivas de reforma estrutural do Estado brasileiro.
Aliás, a própria base aliada no Congresso Nacional não comunga da mesma visão que temos sobre o conteúdo das reformas que o país precisa. Um exemplo é o PMDB, que possui as presidências da Câmara e do Senado e a vice-presidência da República e apresenta uma proposta de reforma política e eleitoral diametralmente oposta a nossa numa questão central, que é o fim do financiamento privado das campanhas eleitorais. Além disso, PP, PR, PRB, PSD, PTB são exemplos de aliados ocasionais que fazem acordos pontuais no contexto conjuntural e do ponto de vista estratégico defendem bandeiras e propostas totalmente distintas das nossas.
O pacto feito por Lula e reafirmado por Dilma, com setores produtivos da elite brasileira está se esgotando. Em parte pelo cenário internacional, mas, também, pela impossibilidade interna de manutenção de incentivos e desonerações que respondiam aos interesses mais imediatos desses setores.
Portanto, se tudo isso é verdadeiro, uma nova governabilidade é necessária. O modelo de governabilidade baseado numa maioria parlamentar sustentada pela troca de espaços na composição de governo está definitivamente superado.
Para o alcance desse objetivo é preciso reaproximar as relações entre o governo e a base social que elegeu Lula e Dilma. Para tanto, há duas questões-chave: sustentar a transitoriedade das medidas de ajuste e agregar a elas propostas que incluam a taxação das grandes fortunas, a progressividade nas alíquotas do Imposto de Renda e o combate implacável aos grandes sonegadores e à corrupção. Além disso, é preciso que o próprio PT defina com clareza as medidas em relação aos filiados envolvidos no caso da operação Lava Jato. Não haverá êxito na conduta do governo contra a corrupção se o PT não for implacável nas suas questões internas, sinalizando para sociedade esse compromisso.
Outra questão que merece destaque diz respeito à incapacidade do nosso governo em disputar uma visão da gestão do Estado, dominado por uma tecnocracia que se perpetua desde os governos do PSDB. Quadros técnicos que têm uma visão política sempre são considerados vozes de segundo valor. Assim, nossas políticas estão, cada vez mais, nas mãos da chamada tecnocracia e aliados sem compromisso com a continuidade do nosso projeto. Enfraquece-se a disputa em torno de concepções e programas e ações passam a ser reduzidos a uma política de resultados, baseada em indicadores, sem disputa de conteúdo e valores.
Portanto, se não disputamos com a sociedade o que fundamenta nossas ações, não preparamos a defesa dos valores e concepções que orientam nossas políticas e que vão muito além do nosso governo.
Retomar a iniciativa política com uma agenda positiva, em um cenário complexo como esse se torna um imenso desafio. Os obstáculos são imensos e o cenário de instabilidade que atinge a Argentina e a Venezuela agrava, ainda mais, esta conjuntura política. Nossos adversários já sinalizam para novas manifestações em breve, o que nos obriga a agir com celeridade e ousadia.
A nós cabe o ativismo político, a mobilização dos setores democráticos, a interlocução com os movimentos e a constituição de uma frente de esquerda que dialogue amplamente para fazer frente ao crescente conservadorismo.
Paulo Pimenta é Deputado Federal (PT-RS) e Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.