Uma gota de sangue azul
Por Sócrates Santana
Se, por um lado, uma parcela da sociedade mostra ojeriza às cotas para negros nas universidades públicas, por outro, revela naturalidade ao enobrecer privilégios como se fossem direitos hereditários. É o caso explícito de 60 famílias no Brasil, que se enraizaram nas entranhas da cultura política deste país e, a cada eleição, apresentam para o eleitor a sua árvore hereditária como se fosse uma credencial para ocupar qualquer cargo público, inclusive, a Presidência da República.
Há alguns anos, o sociólogo Demétrio Magnoli dedicou 400 páginas para identificar as políticas de promoção da igualdade racial no Brasil com a organização social norte-americana e o nazismo. Deu ao livro o título “Uma gota de Sangue: história do pensamento racial”. Faz críticas a classificação dos seres humanos a partir do critério de raça e defende o conceito de nação contra o que chama de “construção ideológica de uma nação negra”. Trata-se de uma refinada argumentação contra uma política de “exceção” supostamente em curso no país. É, sem dúvida, o mais tergiverso manuscrito conceitual contra o modo petista de governar, mas, também é o maior exemplo para quem – erroneamente – classifica como iguais PT e PSDB.
Ao contrário do que muitos pensam o sociólogo paulista não só deu argumento para os nobres atacarem o ato “discriminatório positivo” deste governo, mas, também distinguiu de maneira singular a política de desigualar os desiguais até se tornarem efetivamente iguais, mediante a geração de desigualdades em sentido inverso ao ato discriminatório no Brasil. É tudo uma questão de tempo, literalmente. Sendo assim, o que se vê é uma completa dissimulação da ordem cronológica da história, onde “os que mandam simulam as virtudes dos que servem”, como diria Friedrich Nietzsche.
O fato é que as políticas de promoção da igualdade racial surgem de dentro do poder público, institucionalmente, a partir de um governo engajado no uso da república como instrumento dos interesses da maioria excluída. De outra ordem, a tradição e os privilégios hereditários entram em choque com o amadurecimento da república no país, cada vez menos tolerante com as vicissitudes de quem constrói aeroportos no quintal de casa e transforma uma reunião de governo num encontro familiar. A partir da aprovação da lei contra a prática de nepotismo, a noção entre público e privado no país passou a figurar com mais rigor pelos corredores do poder. O uso de recursos públicos para benefício pessoal ou familiar também ganhou contornos de crime, mas, infelizmente, ainda batalha para obter a alcunha consensual de imoral.
Desta forma, enxergamos de maneira bastante clara as diferenças antagônicas entre a candidatura de Dilma Rousseff e de Aécio Neves. De um lado, uma mulher comum, que possui uma trajetória pública baseada no conhecimento acadêmico e administrativo do Estado. Do outro, um homem de estirpe, que possui uma trajetória pública marcada pela ascendência do avô, Tancredo Neves. A primeira, discreta, disputa uma eleição presidencial com o respaldo do partido. O segundo, pavão, reivindica a cadeira presidencial como se fosse um trono tomado pelo destino do avô.
*Sócrates Santana é jornalista e assessor parlamentar do deputado federal Amauri Teixeira (PT/BA).