Por Ernesto Pereira

Recorrentemente ouvimos críticas, que com frequência recebem ampla atenção da grande mídia, ao que, alega-se, seria uma elevada carga tributária no país. De fato, a parcela de tributos no PIB do Brasil é mais alta que a da maioria dos países com renda per capita equivalente. Seria ela elevada demais?

A carga tributária define a parcela de recursos das famílias e empresas transferidos ao governo para que ele possa executar as ações e programas escolhidos, embora de forma indireta e com as imperfeições próprias ao processo decisório em democracias representativas, pela população. Seu tamanho não tem relação com a renda per capita do país, mas com o tipo de sociedade que nele é construída. Tanto é assim que se cargas tributárias elevadas são majoritárias na maior parte da Europa, elas também ocorrem, embora em menor número, em países de renda próxima ou até inferior à do Brasil, e cargas relativamente reduzidas são o padrão em países em desenvolvimento, mas se verificam igualmente em países de alta renda como os EUA.

O que efetivamente distingue os países com menor ou maior carga tributária é o grau de desigualdade entre grupos e indivíduos que suas populações consideram tolerável e, a partir disso, o volume de recursos que decidem concentrar nas mãos do governo para implantar mecanismos distributivos que se contraponham à tendência ao aumento da desigualdade próprio ao funcionamento normal de uma economia capitalista.

O Brasil, especialmente a partir da Constituição de 1988, tem reafirmado a opção de não somente impedir esse aumento, como também combater os efeitos de décadas convivendo com um dos mais altos níveis de desigualdade do mundo, que marginalizou largas parcelas da população dos benefícios do crescimento econômico. Para tornar isso possível, o governo dispõe de dois tipos principais de instrumentos. O primeiro, que busca a garantia de um nível mínimo de renda para todos, engloba os esquemas de transferências aos grupos e indivíduos que compõem os estratos mais vulneráveis da população. Esse é especialmente o caso do pagamento de benefícios previdenciários e de programas como o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família, o abono e o seguro-desemprego. O segundo procura constituir uma esfera em que, se não imune, o padrão de consumo é certamente menos influenciado pela renda e pela riqueza de cada indivíduo do que no acesso à maioria dos bens e serviços. Isso se dá por meio da provisão gratuita (ou fortemente subsidiada) por parte do governo de um conjunto mais ou menos amplo de serviços públicos. Ao custear com recursos dos tributos os gastos com educação, saúde e segurança, transporte e habitação, entre outros, subtrai-se ao mercado, onde a renda de cada indivíduo ocupa um papel dominante, a responsabilidade pela alocação de parcela relevante dos gastos da população.

Decerto, parte das transferências, quando destinadas a grupos de maior renda, e mesmo alguns serviços públicos, quando de caráter não universal, não reduzem a desigualdade, e por vezes a elevam. Da mesma forma, eventuais ineficiências e desperdícios na gestão dos programas de transferências e na provisão dos serviços públicos reduzem seu impacto distributivo positivo, ao desviar para custos recursos de tributos que seriam redistribuídos. Tais disfunções devem indubitavelmente ser atacadas. Mesmo com elas, todavia, é difícil contestar, no caso brasileiro, o efeito distributivo da maior parte das transferências e dos gastos com serviços públicos se observarmos a renda média dos seus, respectivamente, beneficiários e usuários, que em sua absoluta maioria compõem os estratos médios e baixos da distribuição de rendimentos no país.  E é fácil perceber que, como o valor desses gastos, que respondem pela maior parcela das despesas do governo, é limitado pelo tamanho da carga tributária, a eventual redução desta, quando não apenas cosmética, implica na diminuição das despesas com transferências ou com o custeio dos serviços, ou com ambos.

Este é justamente o ponto central na discussão sobre o tamanho da carga tributária, que opõe aqueles que desejam uma sociedade menos desigual capaz de garantir padrões mínimos de bem-estar a todos, e aceitam os custos, na forma de pagamento de tributos, dos mecanismos distributivos que geram esse resultado, aos que preferem um corpo social em que a acumulação individual não se veja obstada por aqueles mecanismos, mesmo que isso leve à manutenção de grande parte da população na pobreza em meio à riqueza de alguns. Os que se opõem a tributos maiores para custear os mecanismos distributivos geralmente alegam que estes prejudicam o crescimento, ao desalentar o esforço individual. Contudo, se concebível em casos isolados, é difícil acreditar que esse efeito possa ser generalizado. Em compensação, é certo que a maior tranquilidade social própria a sociedades mais igualitárias e a estabilidade da demanda sustentada por esses mecanismos incentivam o investimento. Não surpreende assim que a relação entre carga tributária e taxa de crescimento seja no mínimo ambígua. Por outro lado, defendem alguns que, diante da, para eles, provada impossibilidade de produzir serviços públicos de qualidade comparável àqueles disponíveis em países com carga tributária equivalente, essa carga deveria, no caso brasileiro, ser reduzida. Mas comparam eles, para chegar a essa conclusão, os serviços brasileiros com os prestados em países que, tendo carga semelhante, possuem, contudo, renda per capita e, com isso, recursos para custear os serviços, três ou quatro vezes superiores.

A discussão sobre o tamanho da carga tributária é certamente legítima, mas deve ser bem informada, evitando os argumentos falaciosos frequentemente evocados. A resposta à pergunta-título do artigo deve assim ser dada, por cada um, sabendo que, se eventuais ineficiências – a ser continuamente combatidas – na aplicação dos recursos obtidos com os tributos de fato podem afetar, de forma limitada, aquele tamanho, seu determinante principal não está aí e nem no quão rico é um país, mas sim na escolha de sua população em relação ao quanto a renda que a origem e a trajetória de cada indivíduo permitiram auferir deve interferir em suas possibilidades de acesso às condições de vida disponíveis no estágio de desenvolvimento da sociedade em que vive. Aqueles que pensam que o Brasil ainda não é capaz de garantir padrões mínimos desejados desse acesso a todos como chegou a ocorrer em boa parte da Europa não devem pensar que isso será possível com uma carga tributária menor.

Ernesto Pereira é economista