Fim à pena de morte
Por Paulo Teixeira
A ditadura que sobreveio ao golpe de 1964 produziu 426 mortos e desaparecidos. A maioria das mortes “oficiais” foi justificada por um artifício do regime militar: uma medida administrativa designada auto de resistência, ou resistência seguida de morte. Era o salvo-conduto para que policiais matassem opositores: o simples registro de um auto de resistência relegava a investigação às gavetas.
Cinquenta anos depois, o ato administrativo continua intocado e é considerado legítimo por autoridades policiais e judiciárias. Hoje, na mira da arma policial está, em maioria, uma população civil jovem, negra e sem antecedentes criminais.
O auto de resistência é um entulho da ditadura cuja motivação, antes política, passou a ter viés social. Em abril de 2008, ao justificar o assassinato de nove pessoas pela Polícia Militar na favela de Vila Cruzeiro (Rio), o coronel Marcus Jardim assim expressou a filosofia que norteia esses assassinatos: “A PM é o melhor inseticida social”. A ideia que legitima a ação de maus policiais é a de que pobreza, cor da pele e criminalidade são sinônimos. A sociedade incorporou esses preconceitos –ou os preconceitos da sociedade contaminaram as polícias?
O relatório “Segurança: Tráfico e Milícia no Rio de Janeiro” examinou 12.560 autos de resistência na década de 1990 e concluiu: todas as mortes em ações policiais ocorreram nas favelas; 65% dos assassinados levaram pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça, o que permite concluir que foram sumariamente executados. Os mortos foram sentenciados num julgamento em que o policial é o juiz e o carrasco.
Entre janeiro de 2010 e junho de 2012, 2.882 pessoas foram mortas pela polícia no Rio, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e São Paulo, numa média de três por dia –no ano passado, chegou a cinco.
Os Estados Unidos, no mesmo período, tiveram 410 desses casos. Em Nova York, a polícia atirou em 24 pessoas e matou nove em 2011. Naquele ano, o Rio teve 283 mortos por policiais; em São Paulo, 242.
Em 2012, eu e os deputados Fabio Trad (PMDB-MS), Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ) apresentamos à Câmara o projeto de lei nº 4.471. Ele acaba com o auto de resistência, obriga a preservação da cena do crime, a perícia imediata e a coleta de provas e define a abertura de inquérito. Fica vetado o transporte das vítimas em “confronto” com os agentes, que devem chamar socorro especializado.
O Estado de São Paulo, no ano passado, tomou medidas para coibir a violência policial, em resposta à elevação constante das mortes em autos de resistência. Em 2012, o Estado registrou 546 mortos, contra 439 em 2011.
Relatório da ONG “Human Right Watch” registrou que, em 2012, 95% das pessoas feridas em confronto e transportadas por policiais morreram no trajeto ou no hospital. No início de 2013, o governo proibiu o registro dos autos de resistência e impediu que os policiais socorressem as suas vítimas. Em um ano, foi registrada queda de 39% dessas mortes no Estado e 47% na capital.
A aprovação do projeto de lei estenderá as medidas tomadas por São Paulo ao país. Será um tiro de morte em um dos mais perversos entulhos que o país carrega da ditadura, a licença para matar.
Paulo Teixeira é advogado, deputado federal pelo PT de São Paulo.
Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo de 28 de fevereiro de 2014.