Devolvendo o coelho à cartola
Por Tânia Oliveira
O texto do colunista Marcelo Coelho, em destaque no caderno especial do jornal Folha de São Paulo, na quinta-feira, 21, teve grande repercussão nas redes sociais e nos debates sobre o réu no processo do mensalão, José Genoino.
Aparentemente, o erro grotesco de Joaquim Barbosa com a determinação de cumprimento da pena em regime inicialmente fechado, cumulado com o comprovado estado de saúde precário do ex-presidente do PT, forçado a uma viagem sem explicação a Brasília e a um procedimento estranho ao praticado pelo Judiciário, fez com que os jornalões abrissem espaço pra uma artilharia dita menos pesada contra os réus, até então condenados publicamente antes mesmo do resultado do julgamento. Nessa linha, o articulista afirma que Genoino é “honesto, porém não inocente”. Uma equação aparentemente fácil de engolir para os que pretendem tratar de maneira estranha e superficial o significado de um processo judicial.
O texto é capaz de agradar em cheio o senso comum mediano que, diante das provas de que Genoino não embolsou um só centavo, não teve qualquer aumento de patrimônio e não se locupletou de quaisquer negociatas, encontra guarida na “certeza” de que ele, apesar disso, envolvera-se no esquema sob julgamento do Supremo Tribunal Federal por ser “óbvio”, por ser ele um homem inteligente e experimentado na política.
O pecado original de Marcelo Coelho é tratar Direito Penal como quem fala de questiúnculas resolvíveis na esfera extrajudicial. Relegou a um plano secundário o fato de que estamos tratando da possibilidade de supressão de um dos valores mais caros ao indivíduo, que é sua liberdade. E ao secundarizar o princípio, abordou o tema de forma completamente irresponsável e leviana. Os recortes dos votos do julgamento no STF não refletem, nem de longe, o significado do resultado. Os lamentos dos senhores ministros não elidem o fato de que não se basearam em provas para decidir.
Subjetivamente falando, nos estudos de ética e psicologia, falar de culpa é traduzir o sentimento que se apresenta à consciência quando o sujeito avalia seus atos de forma negativa, atraindo pra si a responsabilidade por falhas e erros. Quando a culpa é o atributo objetivo, implica que é fator externo ao indivíduo, que um grupo lhe imputa a responsabilidade de um ato do qual resultou algum prejuízo a outros. É nesse contexto que se insere a culpa como elemento do Direito.
Em Direito Penal aprendemos que a culpa, como o dolo, são elementos do fato típico que por sua vez, em linguagem simplificada, traduz-se na conduta humana produtora de um resultado. A culpa diferencia-se do dolo porque neste existe a vontade do agente de praticar ou ato ou, sabendo do risco, de não evitá-lo.
O princípio da presunção de inocência é consagrado por diversos diplomas internacionais e foi positivado no Brasil com a Constituição de 1988, que no inciso LVII do artigo 5º diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em atendimento a este princípio incumbe à parte acusadora o dever de comprovar a culpabilidade do acusado, não deixando ensejar nenhuma duvida quanto a ela, haja vista que, em caso de não haver certeza da culpa não deverá o juiz incriminá-lo. Este é o chamado indubio pro reo. Diante de qualquer dúvida ou da ausência de provas concretas e factíveis prevalece o juízo de ponderação de que é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, na clareza de que o primeiro erro é menos grave que o segundo.
O fato é que o Estado, ao dar início à persecução penal, tem a obrigação de estar imbuído da ideia que é exclusivamente sua a responsabilidade de produzir a prova lícita e moralmente posta nos autos. Se não o faz ou se elas inexistem, assume a responsabilidade sobre tal.
O que indica não entender o colunista Marcelo Coelho é que a regra da presunção de inocência não pode ser esquecida, mesmo que a sociedade cobre o castigo imediato daquele que “parece” ser o culpado.
Seu artigo, na verdade, é um grande exercício de retórica onde, diante do óbvio que a assinatura de Genoino consta em todos os contratos, inclusive de empréstimo feitos pelo PT como seu presidente que era, afirma a “evidência” de ter praticado corrupção ativa.
Não parece enxergar o autor do artigo que sua lógica do que “parece” pode, em franca agressão ao Estado Democrático de Direito, permitir muito facilmente que ideologias promovam uma “caça às bruxas” e um afastamento do Direito Penal dos fatos e da culpa, com o viés subjetivista quanto à escolha dos réus a serem condenados.
Ao assumirmos a tese de Marcelo Coelho admitimos um direito penal das pessoas, onde o que imaginamos como verdade em virtude de nossas crenças pessoais seja o bastante para a supressão da liberdade de indivíduos.
Não imagino qual o grau de conhecimento do autor de doutrinas penais, mas o fato é que ele, em seu artigo, faz a defesa de uma das teses mais nefastas do último século chamada de “Direito Penal do Inimigo”, em que está embutido um direito penal de autor e não do fato, sob a égide de que o sujeito é punido não por aquilo que fez, mas por aquilo que é e pensa. A frase final do texto é muito elucidativa: “Mas inocente não era.” Sentencia como quem faz uma grande conclusão a respeito de algo, tendo, antes, tecido diversas considerações sobre o PT e desvios na política. A par de se esquecer, na frase como em todo o texto, que a inocência é presumida e a culpa provada, Coelho afirma que Genoino é presumivelmente culpado por ser do PT.
Longe de ser respeitoso a Genoino, como talvez imagine seu autor, o artigo justifica o injustificável em nossa democracia, que é uma condenação sem provas.
E nesse caminho faz uma perigosa aproximação teórica com ideologias totalitárias, que já demonstraram todo o mal de que são capazes à humanidade.
Tânia Oliveira é assessora técnica da Liderança do PT no Senado