“Além do Brasil, a Unasul e, principalmente, o Mercosul estão comprometidos na superação das dificuldades venezuelanas”
Entrevista com Pedro Barros, doutor em Integração da América Latina (Prolam/USP) e titular da Missão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em Caracas
As notícias sobre a República Bolivariana da Venezuela se intensificaram nas últimas semanas nos meios de comunicação nacionais e internacionais e, em geral, declaram um colapso econômico na Venezuela associado a certa ridicularização das ações do governo. Serão os problemas econômicos e sociais tão graves assim na Venezuela? “Na imprensa brasileira parece haver mais torcida do que análise” como bem identificou o entrevistado da semana no Blog Brasil no Mundo, Pedro Silva Barros.
Doutor em Integração da América Latina (Prolam/USP) e titular da Missão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em Caracas, Barros explica que os desajustes econômicos que a Venezuela atualmente atravessa encerram fatores como a dependência estrutural da atividade petroleira, o acirramento do conflito distributivo e choques exógenos, a exemplo da desvalorização do câmbio e do ouro em 2013. Contudo, a balança comercial continua superavitária, é o país com a maior reserva de hidrocarbonetos do mundo e o risco de insolvência inexiste. “A despeito do noticiário internacional negativo (…) [a] percepção é que o governo, particularmente o presidente, está agindo duro contra os comerciantes importadores que receberam dólares baratos e estão remarcando os produtos de acordo com a variação do dólar paralelo”, explica o técnico de planejamento e pesquisa do Ipea.
Ao longo da entrevista, Barros também discorre a respeito das relações Brasil/ Venezuela, enfatizando o “potencial para integrar setores produtivos e ampliar a cooperação técnica” entre os dois países, particularmente nas áreas que compreendem o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela, compara os modelos de exploração petrolífera e a relevância e particularidades das políticas energéticas nos dois países vizinhos e, também, sobre a importância e o futuro do chavismo para o país caribenho. “Desde o anuncio da doença, publicava-se que o chavismo estaria dividido em diferentes grupos, que se aniquilariam rapidamente. Até agora nada.”
Confira na íntegra.
Ultimamente a grande imprensa vem noticiando sérios problemas econômicos enfrentados pela Venezuela. Podemos falar em crise na economia venezuelana? Em caso afirmativo, quais são seus principais fatores histórico-explicativos? E quais as suas possíveis consequências?
Pedro Silva Barros: A economia venezuelana enfrenta desajustes, acentuados neste ano. Desde os anos 1930, devido à abundância de divisas oriundas do petróleo e a sua inserção especializada na economia internacional, o câmbio é estruturalmente valorizado e a estrutura produtiva pouco diversificada. Exporta-se petróleo, importa-se quase tudo, particularmente alimentos e bens de consumo. Esse fenômeno diminui a produtividade, concentra o dinamismo econômico e o poder político nos setores ligados ao comércio exterior, gerando uma cultura rentista. Nos anos 1980 e 1990, a crise da dívida externa que desestabilizou a economia de vários países da América Latina, somada à queda do preço internacional do petróleo e incapacidade de resposta do modelo político bipartidário vigente na Venezuela levou a uma grave crise social, marcada pelas revoltas conhecidas como Caracazo. A ascensão do chavismo está diretamente relacionada a esses fatores e ao fracasso das reformas liberais da década de 1990, quando Chávez assumiu a presidência a Venezuela completava duas décadas de crescimento real per capita negativo. Nos últimos quinze anos, a dependência petroleira se acentuou e as diversas tentativas de fortalecer a produção interna tiveram alcance limitado.Não se pode omitir de qualquer análise desse período que o sindicato patronal Fedecámaras e o corpo dirigente e técnico da estatal PDVSA orquestraram um golpe de Estado em abril de 2002 e um locaute oito meses depois que durou 70 dias. Esses eventos provocaram uma polarização sem precedentes, instrumentalizada pelo governo, que reforça sua legitimidade em momentos de maior tensão, como nas últimas semanas quando o exército foi às lojas garantir que os preços dos produtos que foram importados com divisas preferenciais não fossem remarcados. A despeito do noticiário internacional negativo sobre esse tipo de notícia, mostrando filas para compra de eletrodomésticos, esse tipo de ação é muito popular. A percepção é que o governo, particularmente o presidente, está agindo duro contra os comerciantes importadores que receberam dólares baratos e estão remarcando os produtos de acordo com a variação do dólar paralelo. Nos últimos anos a inflação estava alta comparada aos países da região, mas controlada e abaixo do nível dos dois governos anteriores (Rafael Caldera e Carlos Andrés Pérez), algo como 20% anualizados. Nos últimos meses mudou de patamar, chegando a 50%. Independente do aumento do gasto público prolongado (passando por duas eleições presidenciais, uma de 23 governadores e outra de 355 prefeitos em 14 meses), houve um acirramento do conflito distributivo, com reajustes mais frequentes de salários, especialmente o mínimo, choques exógenos, como a desvalorização do câmbio em fevereiro passado, e persistência inercial, combinada a detalhes como a desvalorização conjuntural do ouro em 2013 (73% das reservas internacionais da Venezuela são em ouro, quando o valor do metal cai, derruba o valor em dólar das reservas internacionais, mesmo assim estão US$ 10 bilhões acima do que eram em 1998). Ao limitar e impor mais critérios ao acesso a divisas, muitos meritórios e mais restritivos do que era praticado no governo Chávez, o câmbio paralelo se descolou completamente, desequilibrando os preços relativos. Não haverá estabilidade de preços no curto ou médio prazos. Por outro lado, o país segue sendo estruturalmente superavitário na balança comercial e detém as maiores reservas de hidrocarbonetos do mundo. A dívida externa de curto prazo está estável e é menor do que as reservas internacionais; a de longo prazo aumentou, mas ainda é inferior ao equivalente a um ano de exportações do país, algo próximo a US$ 100 bilhões. Com o preço internacional do petróleo acima de US$ 90,00, a possibilidade de insolvência é muito baixa e o aperto do fluxo de caixa tem sido amenizado com novos empréstimos externos, particularmente chineses, que comprometem crescentemente a venda futura de petróleo para o gigante asiático. A Venezuela é onde a China apresenta sua principal presença relativa na América Latina, em comércio e, principalmente, em investimentos. Nos últimos três anos, têm ocupado até espaços que o Brasil havia preenchido no período 2003-2010.
Qual o papel do Brasil para a superação desta conjuntura?
Pedro Silva Barros: Os dois países têm se aproximado nas (duas) últimas duas décadas e estabeleceram uma aliança estratégica em 2005. Entre 2003 e 2012 o comércio bilateral passou de US$ 880 milhões para mais de US$ 6 bilhões. Em nenhum outro país há tantas instituições públicas brasileiras como na Venezuela. O Brasil tem capacidade de produzir boa parte da demanda venezuelana. No curto prazo, o governo brasileiro, coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, já mostrou disposição em ajudar a Venezuela a superar a escassez de alguns produtos básicos. O ministro Fernando Pimentel afirmou expressamente que o governo brasileiro está disposto a ajudar no combate à “guerra econômica” e que o Brasil de Dilma ajudará a Venezuela de Maduro a vencer mais essa batalha, assim como Chávez e Lula venceram tantas outras. Estruturalmente, porém, o aumento do comércio não basta. Há umaassimetria muito grande (no ano passado o Brasil exportou US$ 5 bilhões e importou apenas US$ 1 bilhão), que só pode ser superada com integração produtiva e investimentos em setores que o Brasil é estruturalmente deficitário. Há muito potencial para integrar setores produtivos e ampliar a cooperação técnica. A produção de coque e fertilizantes para todo o país, o fornecimento de insumos, como aço, alumínio e polipropileno para o polo industrial de Manaus, são alguns exemplos. A logística, porém, ainda é deficiente. Do ponto de vista político, o Brasil foi, na década passada, um grande parceiro da Venezuela. Em dezembro de 2002, o Brasil garantiu o fornecimento de gasolina quando o locaute parecia vitorioso. Em janeiro de 2003, o presidente Lula propôs a criação de um grupo de países amigos da Venezuela que, com a participação de EUA, México, Chile, Portugal e Espanha, foi decisivo para a solução pacífica e eleitoral (referendo revogatório vencido por Chávez com ampla margem) da crise. A Venezuela mantém absoluta confiança no Brasil e em seu governo, que evidentemente tem todo interesse na manutenção da estabilidade e nos avanços sociais e econômicos de toda a região. Além do Brasil, a Unasul e, principalmente, o Mercosul estão comprometidos na superação das dificuldades venezuelanas.
Sabe-se que, desde algum tempo, existem iniciativas de concertação política em prol do aumento da cooperação e diálogo Brasil/Venezuela na região fronteiriça entre os dois países. Qual é o caráter e importância destes desenvolvimentos? Como a política externa brasileira para o país influi nas relações binacionais Brasil/ Venezuela?
Pedro Silva Barros: Historicamente, a relação entre os dois países foi de baixa intensidade. O primeiro tratado bilateral, ainda em 1859, definiu as fronteiras e o marco para a navegação das bacias do Orinoco e da Amazônia, mas o primeiro encontro presidencial só veio a ocorrer em 1973. Em 1994, os presidentes Itamar Franco e Rafael Caldera firmaram o Protocolo de La Guzmania, que estabeleceu as diretrizes para a integração física, incluindo transporte rodoviário, aéreo, fluvial e energia. A pavimentação de BR-174 entre a fronteira e Boa Vista e a conexão elétrica entre a hidroelétrica de Guri, a quarta maior do mundo, e Roraima foram entregues no início da década de 2000. A conexão aérea com o norte do Brasil só foi concretizada com voos comerciais regulares neste mês, pela estatal venezuelana Conviasa. A conexão fluvial, por meio do canal Cassiquiare, que liga naturalmente as duas bacias hidrográficas, segue recebendo pouca atenção na agenda bilateral. O estado de Roraima tem seu futuro, inevitavelmente, vinculado à integração com a Venezuela e a Guiana. Boa Vista está muito mais próxima da Venezuela (230 km) do que de Manaus (780 km). A partir de Manaus não há conexão terrestre em boas condições com o restante do Brasil, a BR 319 que liga Manaus a Porto Velho é precaríssima. A estrada que liga Santa Elena de Uairén (fronteira) a Caracas é bastante adequada ao seu volume de tráfego, com excelente pavimento. Hoje, o principal gargalo para o desenvolvimento agrícola dos campos de Roraima é o alto custo de insumos, que poderiam, em grande parte, ser ofertados pela Venezuela, com pequenos investimentos em produção e logística, modernização da fronteira e unificação dos processos alfandegários, que deve ser facilitado com o Mercosul. O planejamento do polo industrial de Manaus nunca levou em conta a integração regional. Dos sete vizinhos amazônicos, a Venezuela é o principal exportador para o polo, mas apenas o trigésimo da lista, quando incluídos todos os países do mundo. Agora, porém, parece haver um esforço, tanto da Suframa como de Roraima, estimulados pelo governo federal, para a integração. Por demanda dos dois países a missão do Ipea na Venezuela tem desenvolvido estudos sobre a infraestrutura, desenvolvimento da área de fronteira e integração produtiva entre o norte do Brasil e a Venezuela.
A entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul em julho do ano passado gerou muitos debates à época, embora o interesse do país pelo bloco pode ser observado, pelo menos, desde a presidência de Caldera (1994 – 1999). É possível traçar um paralelo entre as estratégias venezuelanas de integração regional, particularmente em relação ao Mercosul, entre os governos Caldera, Chávez e Maduro? Como elas se relacionam com as linhas gerais de política externa e se articulam com os objetivos da Venezuela adotados em cada período?
Pedro Silva Barros: O Brasil priorizava, no âmbito regional, a aproximação com o Cone-sul e a Venezuela, com o caribe e com os andinos. Da década de 1990 até 2006, a posição venezuelana foi aproximar a Comunidade Andina (CAN) ao Mercosul. Com o avanço das negociações de tratados de livre-comércio entre países da CAN e os Estados Unidos e o enfraquecimento da instituição, a Venezuela optou por sair do bloco e pleitear o ingresso como membro pleno ao Mercosul. Nos últimos anos os dois países, talvez, tenham sido os principais protagonistas da consolidação da Unasul e da criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac). Algumas propostas, porém, já vinham do governo Caldera, além do Protocolo de La Guzmania, seu chanceler propôs uma associação entre a PDVSA e a Petrobras.
Muitas das empresas vencedoras do recente leilão do Campo de Libra já exploram petróleo na Venezuela em caráter de associação, como, por exemplo, a francesa Total. Quais são as vantagens/desvantagens (ou, se preferir, semelhanças/diferenças) entre os modelos adotados?
Pedro Silva Barros: Há mais diferenças que semelhanças, a realidade de cada país é diferente e não haveria porque o modelo ser igual. O setor petroleiro venezuelano foi construído a partir do apoio de empresas transnacionais, particularmente norte-americanas. A Venezuela foi, nos anos 1940 e 1950, o principal fornecedor de petróleo aos Estados Unidos, particularmente durante a segunda guerra. No Brasil, ao contrário, o setor se desenvolveu a partir da criação da Petrobras, no segundo governo Vargas, a despeito de resistências externas. O Brasil enfrentou estrangulamento de suas contas externas em vários períodos dificultando a aquisição de insumos para o desenvolvimento da atividade petroleira. A Venezuela nunca passou por isso. A realidade e as estratégias energéticas são distintas. Há décadas, o Brasil busca garantir sua segurança energética com a produção voltada ao mercado doméstico e o país tem uma estrutura produtiva bastante diversificada, conquistada com grande esforço substitutivo de importações. Nos anos 1970, o Brasil foi levado ao mar para buscar petróleo, a criar o Proálcool, a construir usinas nucleares e grandes hidroelétricas com o objetivo de equilibrar sua balança comercial em um período de choques nos preços internacionais do petróleo. A Venezuela, por outro lado, é um país monoexportador e a política energética é o núcleo de sua inserção política e econômica internacional. O país fundou a OPEP em 1960 e estruturou um amplo programa de cooperação como o Caribe e América Central a partir do Acordo de San José, de 1980, e da criação da Petrocaribe, em 2005. Chávez foi decisivo para a reestruturação da OPEP em 1999 e 2000, quando realizou em Caracas a segunda reunião de chefes de Estado da história do cartel. Os preços que estavam abaixo dos US$ 10 quando ele foi eleito em dezembro de 1998, ultrapassavam US$ 20 nas vésperas do 11 de setembro de 2001, quando mudou de patamar. O ativismo internacional do Brasil nessa área é desprezível comparado ao venezuelano. Outra diferença está no uso dos excedentes petroleiros. Na Venezuela é utilizado, majoritariamente, para financiar outras políticas públicas, como habitação e saúde e a cooperação internacional, principalmente por meio da Petrocaribe; já no Brasil, o reinvestimento na atividade petroleira e a distribuição de ganhos para os acionais são prioridade. A PDVSA é constitucionalmente 100% estatal, a Petrobras é uma empresa de capital aberto, ainda que o governo a controle administrativamente, indicando toda sua direção. O Brasil precisa combinar necessidade de reinvestimento, ganhos dos acionistas e estabilidade inflacionária, para definir o preço da gasolina na refinaria; o consumo é similar à produção nacional. Na Venezuela, a gasolina é quase gratuita, com US$ 1,00 enche-se o tanque e sobra para a gorjeta, o país produz várias vezes o seu consumo, não há preocupações com os acionistas e sim uma decisão política do governo, que gera ineficiência energética, inviabiliza o planejamento do sistema de transporte nas cidades maiores, mas universaliza o acesso. O índio da comunidade mais longínqua do delta do Orinoco ou da Amazônia venezuelana pode usar seu barco a motor o dia todo sem se preocupar com o custo do combustível, o mesmo acontece com os proprietários daqueles carros dos anos 1970 que pesam mais de duas toneladas e consome um litro a cada três km nas periferias das grandes cidades. Isso seria impensável no Brasil.
Nos anos 1970, a PDVSA foi criada e parte do setor nacionalizado. Diferente do caso brasileiro, a burocracia da nova estatal foi preenchida por antigos funcionários das transnacionais, que fomentaram a abertura petroleira, que retomou a participação estrangeira, e a internacionalização nos anos 1980 e 1990. Por um artifício contábil a empresa operava no vermelho no exterior e recolhia menos tributos na Venezuela. Chávez foi eleito apresentando duas propostas principais: refundar o país por meio de uma constituinte bolivariana e reverter a abertura petroleira. O atual modelo venezuelano tem previsões legais claras: o Estado venezuelano é o proprietário dos recursos petrolíferos do país e a PDVSA é a principal operadora, com participação mínima de 50%. Na maior parte dos casos, há participação de empresas estrangeiras associadas à PDVSA, desde as supermajors e empresas estatais de países emergentes até empresas médias e independentes de economias avançadas. Operam na Venezuela a norte-americana Chevron, a francesa Total, a norueguesa Statoil, a espanhola Repsol, as russas Rosneft e Gazprom, as chinesas CNOP e CNOOC e mais de uma dezena de empresas de diferentes países. Era permitida a participação de empresas estrangeiras em associação com a estatal PDVSA por meio de Convênios Operativos (camposinativos, abandonados ou em declínio), Co vêm sendo constituídas empresas mistas com empresas estrangeiras de distintas procedências. Mais de 60% dos cerca de 2,8 milhões de barris diários que o país produz são gerados a partir dessas associações com empresas estrangeiras. O modelo chavista fez com que a arrecadação se multiplicasse, aumentando a capacidade de ação do Estado em diferentes áreas. O investimento estrangeiro, que foi importante para aumentar a produção venezuelana nos anos 1990, será decisivo para aumentar a produção na Faixa Petrolífera do Orinoco nas próximas décadas.
No caso brasileiro, a abertura dos anos 1990 quebrou o monopólio da Petrobras e instituiu o regime de concessão, abrindo o mercado para transnacionais. Esse processo, como na Venezuela, não foi restrita ao setor petroleiro. Mas como o Brasil tem uma estrutura produtiva mais diversificada e historicamente houve mais política industrial, os setores associados foram mais prejudicados. O caso da indústria naval, que nada produziu no final dos anos 1990, é o mais enfático. A retomada da política industrial a partir de 2003 e a descoberta de grandes reservas com baixo risco exploratório na camada pré-sal foram o ponto de partida para a legislação de 2010. Foi instituído o regime de partilha para os novos contratos, com a Petrobras como operadora única, criou-se o fundo social do pré-sal e a empresa PPSA, para coordenar e fiscalizar os blocos sob partilha. O novo marco permitirá destinar importantes excedentes para a saúde e educação, como na Venezuela, mas, diferentemente do país vizinho, o Brasil não prevê a migração de contratos anteriores para o novo modelo. Em minha opinião, a preocupação brasileira em relação ao pré-sal deve-se concentrar sobre o aprofundamento da política industrial, dinamizando a cadeia de fornecedores com exigências de conteúdo nacional e fomentando a inovação, e sobre a necessidade não deixar que os investimentos em outras fontes de energia, principalmente biocombustíveis, hidroelétrica e nuclear, sejam atrofiados, sendo secundária a conveniência de participação estrangeira no setor. O debate sobre uma extração mais lenta do petróleo para garantir preços maiores no futuro cabe mais à Venezuela, que tem um consumo muito menor e reservas muito maiores, do que ao Brasil.
Quando da morte de Chávez em março último, muito foi dito nos meios de imprensa sobre uma possível deterioração do chavismo e da ALBA. Fazendo um balanço do período pós-Chávez, quais foram as principais mudanças no movimento e na Aliança?
Pedro Silva Barros: Hugo Chávez é o venezuelano mais expressivo dos últimos 150 anos. Só seria comparável a Bolívar. Provavelmente, se fosse feita uma pesquisa, ela apontaria que Chávez é mais conhecido no Brasil do que Aécio Neves e Eduardo Campos. Um aluno médio dos melhores cursos de ciência política ou relações internacionais do Brasil é incapaz de citar três cidades venezuelanas ou três de seus presidentes, mas discorreria vários minutos, talvez horas, sobre Hugo Chávez, apresentando seu juízo de valor. Em toda a América Latina é assim, não há dúvidas de que ele é muito mais conhecido do que qualquer líder europeu atual.
Na imprensa (parece) brasileira parece haver mais torcida do que análise. A manchete do site da revista mais vendida do país estampava, no dia 5 de março de 2013: “Morre Hugo Chávez, 58 anos, e com ele o chavismo”. Desde o anuncio da doença, publicava-se que o chavismo estaria dividido em diferentes grupos, que se aniquilariam rapidamente. Até agora nada. Nicolás Maduro é o primeiro presidente chavista, ainda é muito cedo para um balanço geral de sua política, mas não há mais dúvidas sobre sua legitimidade interna e internacional. Em sua política externa parece haver uma ênfase maior nas relações com a China e há manutenção dos instrumentos de cooperação, como a ALBA e a Petrocaribe. Esta garante petróleo subsidiado a 17 países da América Latina e do Caribe num valor que equivale a 1,36% do PIB venezuelano. Nenhum país do mundo tem hoje um programa de cooperação tão grande em termos relativos, que não foi limitado por Maduro. Para dentro do país, apesar das restrições na economia, tem conseguido manter a unidade de sua base e a estabilidade institucional, assim como Chávez garantiu em diversos momentos de dificuldade. É importante dizer que embora o índice de desabastecimento do Banco Central da Venezuela tenha aumentado 5% neste ano e a inflação seja crescente, o poder de compra de um assalariado pouco qualificado é alto comparado aos outros países da região, devido aos subsídios. Os três mil bolívares do salário mínimo, somados a outros pequenos direitos, são suficientes para fazer mais de duas mil viagens pelo metrô de Caracas (BsF 1,50); comprar mais de 500 Kg de açúcar (BsF 6,00) ou mais de quarenta latas de leite NAN (BsF 80,00) num supermercado privado; ou, ainda, 150 Kg de carne ou feijão no público.nvênios de Lucros Compartilhados e Associações Estratégicas (produção de óleo “melhorado” na Faixa Petrolífera do Orinoco). Após as mudanças regulatórias de 2002, 2005 e 2007, esses contratos tiveram de migrar para outro formato de associação, o de empresas mistas. Hoje, é por meio da constituição de empresas mistas com a Corporación Venezolana de Petroleo (CVP), filiada da PDVSA, que é permitida a participação de capital privado (nacional ou estrangeiro) no setor petrolífero venezuelano. A participação da CVP nas empresas mistas formadas a partir dos contratos de Convênios Operativos é de no mínimo 51%, enquanto no caso dos antigos Convênios de Lucros Compartilhados e Associações estratégicas a participação mínima da CVP nas empresas mistas é de 60%. A principal fronteira atual de produção na Venezuela é a Faixa Petrolífera do Orinoco, onde vêm sendo constituídas empresas mistas com empresas estrangeiras de distintas procedências. Mais de 60% dos cerca de 2,8 milhões de barris diários que o país produz são gerados a partir dessas associações com empresas estrangeiras. O modelo chavista fez com que a arrecadação se multiplicasse, aumentando a capacidade de ação do Estado em diferentes áreas. O investimento estrangeiro, que foi importante para aumentar a produção venezuelana nos anos 1990, será decisivo para aumentar a produção na Faixa Petrolífera do Orinoco nas próximas décadas.
No caso brasileiro, a abertura dos anos 1990 quebrou o monopólio da Petrobras e instituiu o regime de concessão, abrindo o mercado para transnacionais. Esse processo, como na Venezuela, não foi restrita ao setor petroleiro. Mas como o Brasil tem uma estrutura produtiva mais diversificada e historicamente houve mais política industrial, os setores associados foram mais prejudicados. O caso da indústria naval, que nada produziu no final dos anos 1990, é o mais enfático. A retomada da política industrial a partir de 2003 e a descoberta de grandes reservas com baixo risco exploratório na camada pré-sal foram o ponto de partida para a legislação de 2010. Foi instituído o regime de partilha para os novos contratos, com a Petrobras como operadora única, criou-se o fundo social do pré-sal e a empresa PPSA, para coordenar e fiscalizar os blocos sob partilha. O novo marco permitirá destinar importantes excedentes para a saúde e educação, como na Venezuela, mas, diferentemente do país vizinho, o Brasil não prevê a migração de contratos anteriores para o novo modelo. Em minha opinião, a preocupação brasileira em relação ao pré-sal deve-se concentrar sobre o aprofundamento da política industrial, dinamizando a cadeia de fornecedores com exigências de conteúdo nacional e fomentando a inovação, e sobre a necessidade não deixar que os investimentos em outras fontes de energia, principalmente biocombustíveis, hidroelétrica e nuclear, sejam atrofiados, sendo secundária a conveniência de participação estrangeira no setor. O debate sobre uma extração mais lenta do petróleo para garantir preços maiores no futuro cabe mais à Venezuela, que tem um consumo muito menor e reservas muito maiores, do que ao Brasil.