Por José Carlos de Assis

Enfrentamos como nação o desafio de um mundo em catastrófico processo de transformação. Não sabemos o futuro. Portanto, nunca como agora precisamos construí-lo. A civilização está sacudida, desde suas entranhas, pelo choque de mudanças de paradigmas que marcaram seu desenvolvimento desde as origens da Idade Moderna. Por paradigma entendemos um conjunto de circunstâncias reais que condicionam o pensamento e a ação humanas em determinada época. É isso que está mudando em diferentes campos com a emergência de novos paradigmas, ainda pouco visualizados pela geração presente.

Uma observação rápida do que acontece na economia mundial, dado o papel estruturante que a economia desempenha em todos os aspectos da vida cotidiana, é suficiente para avaliarmos a profundidade das transformações em curso. A crise de 2008, centrada nos países industrializados avançados, assinalou o colapso do projeto neoliberal por eles pretendido como universal, e expresso no primado do Estado mínimo supostamente contrabalançado pela autorregulação dos mercados. Esse projeto colapsou na medida em que o Estado, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, se tornou máximo, endividando-se no esforço até aqui inútil de regulação do sistema financeiro em nome da estabilidade.

Para salvar o mercado está em célere processo de destruição os sistemas de bem-estar social que foram o único aspecto do capitalismo que sinalizou na prática um real avanço da civilização no sistema capitalista. Salvaram-se os bancos, endividou-se o Estado, e a dívida resultante acumulada no Estado tornou-se a escusa para programas de consolidação fiscal que significam a destruição de emprego, de crescimento econômico, de renda dos menos favorecidos, e de serviços públicos que representaram, por décadas, a base de grandes pactos sociais que vigoraram nos países avançados.

Os Estados de grande parte do mundo, exceto na Ásia, passaram a ser governados por instâncias multilaterais dominadas pelo conservadorismo fiscal e, de maneira informal mas efetiva, pelas agências de risco. O cidadão está sendo abolido. Não se vê perspectiva de saída, por razões essencialmente políticas, na Europa e nos Estados Unidos, para os programas de contração fiscal que destroem as expectativas de retomada do crescimento. Com isso, pela primeira vez na História, os países industrializados avançados se entregam à tarefa insana de, conjuntamente, promoverem saldos comerciais como instrumento de revigoramento da demanda agregada sem considerar o efeito disso sobre o resto do mundo.

O inimigo da civilização é o mercado. Não o mercado de transação de mercadorias reais e de serviços, que subsistem desde os primórdios das relações humanas, mas o mercado financeiro livre que submete a vida aos ditames da especulação financeira. A ordem futura, se houver ordem, passa necessariamente pela ampla regulação dos mercados financeiros assegurando uma estabilidade que o mundo conheceu no período áureo do capitalismo, desde os acordos de Bretton Woods à desregulação monetária de 1971. Os países industrializados avançados têm uma responsabilidade com o resto do mundo em empreender reformas efetivas em seus sistemas financeiros descoladas dos lobbies e da ganância.

Estamos diante de uma crise de duração indefinida. Seus efeitos sociais e políticos apenas começaram a se revelar. A esmagadora maioria da população não reconhece suas causas. A insatisfação se apresenta de forma difusa e descoordenada, com manifestações de diferentes grupos sem objetivos comuns. Vimos isso no Brasil nas manifestações de junho. Apareceu em Nova Iorque e em outras cidades norte-americanas no movimento Ocupe Wall Street. Na Espanha, foram os Indignados.  Na Grécia, os movimentos populares desesperados têm sido recorrentes. A característica comum é a aparente falta de objetivos unificadores. E a outra característica, talvez pela ausência de um objetivo comum, é a falta de uma resposta política.

É ilusório imaginar que a deterioração social nos países industrializados avançados, sobretudo na Europa, se estenderá no tempo sem reação da população. Apenas excepcionalmente as sublevações populares requerem uma coordenação central e um objetivo comum definido ex ante. A Revolução Francesa não foi uma, mas várias revoluções: a revolução dos camponeses contra os senhores feudais, a dos operários contra os burgueses, a revolução da aristocracia contra o rei, a revolução de todos contra a Igreja. Isso resultou em sublevação geral sem coordenação prévia, em seguida no terror, e finalmente na mão firme e autoritária de Bonaparte, criando uma nova ordem na França.

Não é possível saber quão distantes estão alguns países da Europa de uma sublevação, mas é perfeitamente possível reconhecer a incompetência do sistema político europeu, dominado pelos interesses financeiros de curto prazo, para tentar debelar a crise. Mesmo os Estados Unidos correm risco de forte instabilidade social, em face da rigidez do sistema político dividido entre democratas e republicanos. Nesse contexto, é o mundo inteiro que está em risco pois os estilhaços da fragmentação social dos países industrializados avançados inevitavelmente nos atingirão em face da conexão entre as economias e as sociedades mundiais.

Escapamos com relativo sucesso dos efeitos imediatos da crise. Mas não tenhamos ilusões. Fomos beneficiados por condições mundiais que não se repetirão. Os países do G-20 definiram e coordenaram políticas de expansão fiscal de 2008 a 2010, mas os líderes europeus decidiram, a partir deste último ano, implementar políticas de contração para reduzir as dívidas públicas, mergulhando grande parte da zona do euro na crise. Isso nos afetou, mesmo que tenhamos continuado a nos beneficiar das fortes importações asiáticas de commodities em quantidade e preço. Por certo que nossa própria política de expansão do mercado interno e de apoio ao investimento pelo BNDES também nos favoreceu. Mas igualmente aqui houve um recuo, em face sobretudo do acolhimento de críticas do “mercado” ao legítimo e eficaz apoio do Tesouro ao BNDES.

Entretanto, podemos minimizar os efeitos da crise mundial a partir, sobretudo, de uma estratégia que seja articulada ao nível dos países do foro Brics. Em face do caráter inorgânico de nossa sociedade, da precariedade de nosso sistema partidário, e de nossa fragmentação em grupos de interesse sem um objetivo claro comum, a única instância que pode formular e implementar objetivos comuns é o Estado, por sua capacidade de planejamento e execução. Não é o Estado máximo, é o Estado necessário e eficaz. É o Estado cuja representatividade social e política é filtrada pelo sistema democrático, dotando-o de plena soberania.

Em um mundo ainda encharcado de propaganda neoliberal, travestido de demandas sucessivas por “reformas” de mercado, nossa saída consiste em nos ancorar ideologicamente nos demais países do foro Brics, cujo êxito inequívoco depois da crise de 2008, como o nosso, é uma legitimação de seu sistema de planejamento central, de seus bancos públicos de desenvolvimento, de suas empresas estatais estratégicas, seu sistema de controle de fluxo de capitais, de sua ação fiscal anticíclica e de seu inequívoco compromisso com a melhoria dos padrões sociais de sua população, incluindo a eliminação da fome extrema. Não se trata de ideologia. Nem mesmo apenas de economia. Trata-se da vida futura de nossos povos.

O Estado não é uma abstração. Ele é dirigido por governos. No cruzamento de destino no qual nos encontramos, ter uma liderança do Estado em condições de promover interesses comuns na base de um grande pacto social pode ser a diferença entre a prosperidade e a tragédia. Nossa perspectiva não é em função desta eleição, nem mesmo desta década. É em função do futuro imediato nosso e das próximas gerações. É preciso que um líder legitimado pela força popular arrebate a bandeira do nosso desenvolvimento soberano em condições de atender as demandas das maiorias, respeitando direitos das minorias e promovendo o interesse geral, sem se curvar à ideologia do mercado em franco colapso.

José Carlos de Assis é economista, ScD pela Coppe/UFRJ, e professor da UEPB