Desde o final do século passado, a política e a democracia têm sido desvalorizadas pela ofensiva global dos mercados. Os Estados nacionais perderam capacidade de regulação e os interesses do poder econômico passaram a prevalecer ante os projetos de transformação social. Os valores do individualismo e da meritocracia ascenderam em detrimento da esfera pública. O mercado passou a ser a mediação possível entre indivíduos diante do próprio destino. “Não existe a sociedade, mas apenas indivíduos, homens e mulheres”, sentenciou Margareth Thatcher em 1987.

Refletindo sobre este tema, André Singer, em recente palestra no Instituto de Economia da Unicamp1,  sublinhou que existe hoje uma “espécie de sequestro da política” pela economia. A maior expressão disso é a chamada “autonomia do Banco Central”, cerne da gestão do “tripé” macroeconômico ortodoxo, uma ação deliberada do poder econômico de “subtrair a soberania popular do centro da política que é a política econômica”. Assim, a democracia deixa de atuar “sobre o núcleo da política econômica, que ficou colocado numa redoma”.

A recente iniciativa do presidente do Congresso Nacional de votar o substitutivo ao projeto que dá autonomia ao Banco Central aprofundará o fosso entre a política e a sociedade. Também limitará os esforços na direção do desenvolvimento com justiça social, que requer coordenação da estratégia macroeconômica – impossível de ser alcançada com autoridades econômicas atirando para um lado e as autoridades monetárias para o lado oposto.

Ao contrário do que disse o presidente do Senado, não se trata de mera “discussão técnica, somente técnica”. Também não se justifica a afirmação de que “para um projeto nacional de desenvolvimento autônomo e sustentável é inevitável que o Banco Central, fortalecido, tenha independência e fique imune aos interesses vindos da esfera política, partidária e governamental ou até mesmo da vida privada”. Ao contrário, o poder econômico ampliará o controle sobre o núcleo da política econômica.

O presidente do Congresso revela desconhecimento da realidade de outros países quando considera que “a função de qualquer Banco Central é zelar pela defesa do mais importante patrimônio de uma economia: sua moeda”2.  Observe-se que na legislação dos Estados Unidos, Meca do liberalismo econômico, uma das missões do Federal Reserve Bank (FED) é atuar para influenciar “as condições monetárias e de crédito na economia em busca do emprego máximo, preços estáveis e taxas de juros de longo termo moderadas”. Um olho no gato, o outro no peixe.

No Brasil, um projeto neste sentido chegou a ser aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal no final de 2011. A proposta, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), alterava o artigo 9º da Lei 4.595, de 1964, que passaria a dizer que “compete ao Banco Central do Brasil perseguir a estabilidade do poder de compra da moeda, garantir que o sistema financeiro seja sólido e eficiente, estimular o crescimento econômico e a geração de empregos e bem como cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional”.

Na oportunidade, Lindbergh afirmou que sua proposta estaria de acordo com o discurso da presidenta Dilma Rousseff.  “A presidenta tem dito que o objetivo da política econômica do seu governo é perseguir a estabilidade monetária e combater a inflação, mas conjugar isso com crescimento econômico. Nós estamos colocando isso, de forma clara.”3

Não obstante, apenas dez dias depois da aprovação unânime do seu projeto na CAE, após encontro com o presidente do Banco Central o senador decidiu não dar andamento à proposta e retirou-a da pauta do Congresso Nacional4.  Quais foram as razões apresentadas pela autoridade monetária que convenceram o senador?

O Congresso Nacional continua a ignorar as “vozes das ruas”. A autonomia do Banco Central fortalecerá o poder econômico em detrimento da política, da democracia e dos esforços para um projeto de desenvolvimento com justiça social identificado com as aspirações populares manifestadas pelos protestos de junho de 2013.

A notícia sobre a votação do substitutivo ao projeto que dá autonomia ao Banco Central foi saudada com entusiasmo por representantes de bancos privados nacionais e internacionais. Para eles, a independência do Banco Central terá “impactos institucionais” semelhantes a um “novo Plano Real”5.  Impactos em benefício de quem, cara-pálida?

Eduardo Fagnani é economista, doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do IE-Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) desta instituição, coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento (www.politicasocial.net.br) e membro do Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo.

Texto apresentado ao Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo em 6/11/2013

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