‘Transformar conhecimento em riqueza’ ou transformar conhecimento em inclusão?
As manifestações das últimas semanas evidenciaram que não foi apenas a política de transporte urbano que foi “deixada para trás” pelos governos de esquerda. A sociedade percebe que, devido a imposições de governabilidade, outras políticas públicas não avançaram o desejado.
É o caso das que são denominadas políticas “econômicas”, porque interessam aos que detêm o poder econômico, político e midiático, ainda extremamente concentrado, mas que deveriam ser chamadas, dado o dano social que costumam causar, de “antissociais”.
O governo avançou nas políticas sociais, que as elites tendem a considerar “antieconômicas”, porque subtraem recursos à acumulação de capital. Sobretudo nas que não chegam a contrariar severamente seus interesses. É o caso das de natureza compensatória que, dada à “periculosidade” do problema, também as beneficiam.
Avançou-se também em políticas como a de educação que, apesar da oposição de alguns setores, favorecem, ao mesmo tempo, trabalhadores e empresários.
Este texto trata da Política de C&T (PCT), e essa introdução é para chamar a atenção que seu afastamento da orientação neoliberal não teria um grau de oposição que ameaçasse a governabilidade. E que, dado que seus resultados cognitivos são uma condição para potencializar políticas que visam à produção de bens e serviços e que abarcam desde a saúde até a de produção de commodities, passando pela geração de trabalho e renda, seria razoável enfrentar alguns setores que dela se vêm beneficiando.
Dois importantes e conhecidos personagens da esquerda publicaram artigos sobre a PCT que evidenciam por que isso não ocorreu. O primeiro, “Inovar é preciso”, de José Dirceu, saiu no Jornal do Brasil de 03/01. O segundo, “Ciência para o desenvolvimento”, de Marco Antônio Raupp, saiu na Folha de S. Paulo de 22/01. Os trechos desses artigos, referidos a seus autores como JD e MR, podem ser conferidos na web.
Por ser também de esquerda, me senti na dupla obrigação de comentar suas posições com meus alunos antes de terminar o semestre. Embora provavelmente majoritárias, elas não são as únicas no âmbito da comunidade de pesquisadores de esquerda e, por isto, devem ser debatidas.
Faço-o no Jornal da Unicamp porque é aqui que tenho publicado contribuições para o debate da PCT e porque sei que esses pesquisadores com quem me interessa dialogar, e também aqueles a que me refiro diretamente, poderão, num veículo acadêmico como este, ter acesso ao que escrevo.
Os autores têm em comum o desejo, partilhado por toda a comunidade de pesquisa de esquerda, de que nosso potencial tecnocientífico, cuja construção tanto tem custado à nação, seja colocado a serviço da “melhoria da vida da população brasileira” (JD) e do “desenvolvimento sustentado” (MR).
Os dois concordam também, e aí começa minha discordância, de que isso deverá se dar através da “inovação tecnológica, que promove produtividade e competitividade” (JD) ou da “competitividade econômica global” (MR). As quais, embora eles não façam referência explícita à empresa privada e sim a eufemismos como “produção econômica” (MR), só poderiam ocorrer ali, já que não mencionam alternativa.
Nosso desejo seria materializado, segundo eles, estimulando a P&D e a inovação na empresa. O que aumentaria seu lucro, geraria mais e melhores empregos, maiores salários, reduziria o preço e aumentaria a qualidade dos bens e serviços que produzem, faria subir a arrecadação de impostos diretos (sobre seu lucro) e indiretos, diminuiria a importação, agregaria valor às commodities, aumentaria a exportação, etc.
A PCT que alavancaria esse círculo virtuoso teria que subsidiar essas atividades de modo a “transformar conhecimento em riqueza” (MR). E deveria fazer com que as instituições públicas e ensino e pesquisa, nas quais já foi possível mediante seu favorecimento “transformar dinheiro em conhecimento” (MR), entrassem em “sintonia com o Brasil que gera emprego e renda” (JD).
Vou avaliar a viabilidade desse círculo baseado nessa “sintonia” entre universidade-empresa, baseando-me na informação disponível a qualquer colega, analista ou fazedor da PCT, em duas etapas.
Primeiro, vou me referir ao comportamento do ator que motorizaria esse círculo: as empresas.
Para isso vou lembrar, apoiado nas quatro Pintecs que permitem monitorar desde 1998 esse comportamento, que elas não estão correspondendo ao espetacular crescimento dos recursos para P&D colocados à sua disposição. Não aumenta a porcentagem das inovadoras que fazem P&D, seu esforço inovativo medido em relação à sua receita e a importância conferida à P&D para inovar diminuem. Continua baixa a contratação de projetos com instituições de ensino e pesquisa públicas e o grau de novidade de suas inovações; e bem elevadas a preferência por inovar comprando máquinas e a utilização da renúncia fiscal em substituição aos recursos próprios.
E isso não por falta de “sintonia” da universidade. Enquanto entre 2006 e 2008 ela formou 90 mil mestres e doutores em ciência dura, tão afeitos à P&D empresarial como os estadunidenses, que na sua maioria são contratados para pesquisar na empresa, as empresas locais absorveram apenas 68!
Nem por “falta e espírito inovador”, “atraso” ou “ignorância” dos empresários (os melhores do mundo, haja vista a taxa de lucro que auferem). Sua resposta é racional. Eles sabem que a conhecida máxima “nenhuma empresa ou país desenvolve tecnologia se puder roubar, copiar ou comprar”, quando praticada num país periférico com uma ancestral dependência cultural – onde tudo o que se produz, consome ou usa, já existia antes no Norte –, com baixos salários e elevado grau de oligopólio , a regra não é fazer P&D.
E vou lembrar também que os casos citados – Embraer-ITA-CTA, Petrobras e Embrapa (MR) – são exceções. Foi o Estado e não a empresa privada, que hoje está tendo sua P&D subsidiada, que “bancou” esses e outros poucos marcos da autonomia tecnológica latino-americana. E que eles só ocorreram porque alguma elite, para defender-se de epidemias e pragas, por motivos estratégicos ou associados à exploração de riquezas naturais, e não por objetivos de “melhoria da vida da população brasileira” (JD) e de “desenvolvimento sustentado” (MR), foi capaz de mobilizar o potencial tecnocientífico do país em seu benefício.
Vou lembrar também que parece pouco realista considerar que a “Embrapii (a “Embrapa da indústria”) está alinhada com o novo momento” (MR). A Embrapa só foi exitosa porque, por razões que todos conhecemos, a tecnologia que desenvolveu não estava disponível para os donos do agronegócio exportador. E nada leva a crer que, nesse “novo momento” (MR), as empresas industriais e de serviços estejam demandando algum conhecimento específico, original e realmente inovador.
A segunda etapa da avaliação da viabilidade desse círculo virtuoso aceita a improvável hipótese de que o comportamento futuro das empresas seja oposto ao que escrevi acima. Isto é, que elas inovem e que, assim, expandam o emprego formal numa dimensão quantitativa e qualitativamente compatível com o que desejam. Ante ao provável insucesso nesse sentido, abandono o espaço da “problemática” e ingresso no da “solucionática” referindo-me aos desafios que se colocam para a comunidade de pesquisa.
Mesmo deixando de lado o processo de desindustrialização em curso, e a competição dos chineses que pagam salários industriais de menos de 1 dólar por hora enquanto nós pagamos 5, lembro que em 2008, dos 160 milhões de brasileiros em idade de trabalhar, somente 40 milhões possuíam um emprego formal (e destes, apenas 7 milhões estavam na indústria de transformação, 2 milhões na construção civil e 1,4 milhão na agropecuária, extrativa vegetal, caça e pesca). E que de lá para cá, com muito esforço e um pouco de sorte, os novos empregos formais nem sequer absorvem o aumento vegetativo da população.
Evitando a falácia da taxa de desemprego, que quase nada significa numa sociedade como a nossa, preocupa a muitos pesquisadores de esquerda o que eles podem fazer para que cerca de metade da população (aquela que ganha menos de 6 dólares por dia), que muito dificilmente poderá ter carteira assinada e está próxima da informalidade e da exclusão, venha a melhorar a sua vida. Especialmente aqueles colegas que já perceberam que, menos do que almejar emprego e salário, essas pessoas terão que gerar as suas próprias oportunidades de trabalho e renda que lhes permitirão incluir-se na economia solidária. E que devem exigir do Estado e não esperar das empresas o investimento necessário para a satisfação de suas necessidades básicas a que têm direito.
Ao que tudo indica, e contrariamente ao que se supõe nos artigos, esses brasileiros que deveriam ser um dos alvos prioritários da Política (Pública, é bom lembrar) de C&T dificilmente poderão ser beneficiados pelas ações orientadas para a competitividade das empresas. O enorme esforço que eles terão que fazer pode e deve ser apoiado pela comunidade de pesquisa.
Cabe a ela a mobilização de nosso potencial tecnocientífico para abrir um atalho que substitua aquele improvável círculo virtuoso. Numa ponta, ajudando na adequação sociotécnica para chegar à tecnologia necessária para a geração de oportunidades autônomas e autogestionárias de trabalho e renda. Na outra, identificando essas oportunidades em nosso tecido produtivo e concebendo projetos e políticas que as alavanquem mediante a utilização do poder de compra do Estado.
Por isso, e parodiando a consigna “transformar conhecimento em riqueza” (MR), os pesquisadores de esquerda deveríamos discutir outra “transformar conhecimento em inclusão”.
Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências