Seca e poder: Entrevista com Celso Furtado
Um livro de Celso Furtado é sempre um acontecimento, uma vez que ele é um dos intelectuais mais bem-dotados do país; ao lado de uma sólida cultura, apresenta também grande experiência administrativa. Como cientista, escreveu numerosos livros sobre a problemática brasileira e latino-americana, ora de forma global, estudando o país ou o continente como um todo, como ocorre com o mais conhecido de seus livros, Formação econômica do Brasil, ora analisando os aspectos da economia brasileira ou internacional em determinados aspectos. De qualquer forma, sempre o faz com precisão e segurança.
Embora dominando os métodos econométricos, Celso Furtado não se limita a usá-los, ignorando o contexto econômico-social em que os problemas analisados se inserem; as suas análises são substancialmente enriquecidas com considerações que interessam tanto aos economistas como aos cientistas sociais em geral. O estilo usado na análise dos problemas, em seus diversos livros, inclusive nos de memórias, é escorreito e agradável. Dentre as inúmeras teses que levantou, convém salientar a de que a pobreza do Nordeste não é, como se afirmava então (década de 1950), conseqüência da seca, mas sim do subdesenvolvimento e da exploração da região pelas próprias elites nordestinas e por grupos diferentes de outras regiões do país. Estudando a região, sobretudo no relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDNdn), ele salienta que a pobreza resulta muito mais da forma de exploração da terra e das relações de produção, do que do impacto da seca; o problema é muito mais social que natural. Para isto, propôs ao Congresso Nacional uma lei de irrigação para o Nordeste, defendendo a desapropriação das terras a serem beneficiadas por este programa, a orientação das culturas que deveriam ser feitas e o controle da produção, com a fixação do agricultor à terra. Era essa, para ele, uma forma de evitar uma agricultura degradadora da paisagem e dos solos e empobrecedora dos trabalhadores — era uma forma de intervenção na estrutura social do sertão.
Infelizmente o Congresso de então, bastante conservador, não aprovou a lei, e após os idos de março de 1964, tornou-se impossível uma visão social da problemática brasileira.
Ao propor uma política para o desenvolvimento do Nordeste, ele, que vinha da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) com uma forte experiência dos problemas latino-americanos, se batia pela realização de uma reforma agrária moderada, com a troca de terras dos latifúndios, e pela implantação de estruturas que tornassem os mesmos mais produtivos. Nessas terras cedidas seria desenvolvida uma política de agricultura familiar, ao lado de uma política de industrialização que, naturalmente, iria modificar o parque açucareiro e algodoeiro, diversificar os tipos de indústria existente, além de promover a transferência de excedentes populacionais das áreas superpovoadas para áreas em povoamento, como o noroeste do Maranhão e o sul da Bahia, e a modernização dos serviços, atingindo os vários setores da sociedade. Um programa como este iria provocar uma forte reação das elites nordestinas, acostumadas a ser beneficiadas pelos governos federal e estadual, e a desenvolver a chamada “indústria da seca”. A posição dos que se opunham variava desde uma certa condescendência com a política de industrialização que não atingia os seus supostos direitos, até uma oposição sistemática a projetos de reforma agrária ou de mudanças políticas. Por isto, o superintendente da Sudene era acusado de subversivo e até de comunista, tendo sido, em conseqüência, uma das primeiras personalidades atingidas pela cassação dos direitos políticos, após o golpe de 1964.
Mas, se ele deu uma contribuição de ordem político-administrativa para o desenvolvimento da região, deu também uma contribuição da maior importância, do ponto de vista científico, ao caracterizar a agricultura nordestina do período colonial como capitalista, de vez que na área canavieira o aporte de capital na implantação dos engenhos foi dos mais expressivos, sobretudo se comparado com a agricultura feita em outros continentes, onde havia uma contribuição mais expressiva da força de trabalho. Esta posição vinha contestar a velha teoria, aceita desde o século passado, inclusive por Joaquim Nabuco, de que teria havido uma espécie de feudalismo no Brasil, no período em que se usou a força de trabalho escrava.
Celso Furtado, com os seus numerosos livros e artigos em revistas especializadas, nos deu, por mais de quatro décadas, uma contribuição científica e cultural ao conhecimento da sociedade brasileira e aos tópicos gerais da cultura econômica, histórica e sociológica. A sua experiência administrativa, porém, não é inferior à cultural; trabalhando em organismos nacionais e internacionais, exerceu a superintendência da Sudene por quase cinco anos, organizando-a, instalando-a desde a fase do GTDN e do Codeno (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste) até a sua plenitude, onde se fez cercar de jovens técnicos do nível de Francisco de Oliveira, de Jader de Andrade e de Nailton Santos, entre outros.
Ocupou o Ministério do Planejamento no governo João Goulart, quando se procurava uma saída democrática para o Brasil mediante a solução de seus problemas de base. O golpe de 1964 afastou-o do país numa ocasião das mais difíceis para o Brasil , impedindo que se fizesse reformas de base, sobretudo a agrária, e que se levasse o país para o caminho do desenvolvimento. No período em que viveu no exílio, ele se dedicou sobretudo à vida universitária, lecionando nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França. Com a redemocratização, retornou ao Brasil para exercer, no governo Sarney, o Ministério da Cultura, demonstrando que não era apenas um economista, mas um cientista com uma visão geral do mundo, do país e dos problemas brasileiros.
Na entrevista que concedeu a três interlocutores, Maria da Conceição Tavares, Manuel Correia de Andrade e Raimundo Rodrigues Pereira, de que resultou este livro, Celso abordou sobretudo o problema da seca e do subdesenvolvimento, demonstrando que a seca que enfrentamos periodicamente — geralmente uma em cada dez anos — é muito mais um problema social do que natural. Isto porque é um fenômeno conhecido e a sua ocorrência previsível; se se desenvolvesse uma política preventiva ela não seria o flagelo que nos aflige desde o período colonial. A correção pode ser feita com uma emigração organizada para áreas subpovoadas, democratizando o acesso à terra, desenvolvendo a agricultura seca em algumas áreas favoráveis à mesma, e também a irrigação em pontos e em proporções que não degradassem os solos. Ele aí se baseia sobretudo nos ensinamentos do conceituado agrônomo Guimarães Duque.
Na sua entrevista, Celso Furtado procura esquematizar as suas concepções de desenvolvimento, indicando a linha em defesa da promoção do mesmo — que ele executou durante o período em que dirigiu a Sudene — indicando não só as linhas gerais da política que desenvolveu, como também a oposição que enfrentou durante o seu período administrativo.
Mas, não ter podido permanecer no país após a sua destituição, o poupou de ver como a obra que procurou realizar foi mutilada e impedida de ser executada numa diretriz que fosse atender às aspirações e necessidades populares.
A leitura do livro é de grande utilidade para todos, especialistas e não especialistas, devido à soma de informações que contém, às sugestões que faz e à independência das diretrizes que defende, muitas delas de grande atualidade. Da sua leitura podemos concluir como o Brasil está perdendo por não manter um homem do porte intelectual e da honestidade de Celso Furtado em cargos chaves para o desenvolvimento nacional. O compromisso de brasileiro e de nordestino é mantido com a maior intensidade, sendo de grande importância esse compromisso que o cientista tem para com o país, com o seu desenvolvimento e, sobretudo, com o bem-estar do povo brasileiro.
Manuel Correia de Andrade
Dados Técnicos
ISBN:978
Páginas:184
Ano:1998
Edição:1
Idioma:Português
Peso:100