Se eu fosse um economista de esquerda e recebesse a honra de ter parte considerável de algum trabalho meu transcrito pelo principal colunista de The Globe, eu realmente ficaria desconfiado. Ou The Globe e seu colunista estariam rumando para a esquerda, numa virada dialética notável, ou eu estaria deslizando no rumo deles, como costuma acontecer com alguns esquerdistas que se tornam direitistas sem sequer fazer uma paradinha no centro político e ideológico.

Porém, qualquer que seja a situação, o que interessa é discutir o conteúdo do que levou The Globe a dedicar uma coluna inteira a opiniões que pretendem provar que os governos petistas iniciaram ou aprofundaram tendências que comprometem a capacidade de desenvolvimento do Brasil no longo prazo. Tais tendências seriam a desindustrialização, a reprimarização das exportações, a maior dependência tecnológica, a desnacionalização, a perda de competitividade internacional, a crescente vulnerabilidade externa estrutural, a maior concentração de capital, a política econômica marcada pela dominação financeira, e a taxa média de inflação superior a 6%, maior do que média mundial.
 
Além disso, as políticas distributivas dos governos petistas não teriam atingido a estrutura de concentração de riqueza e não teriam alterado a distribuição funcional da renda, realizada através de salários versus juros, lucros e aluguéis. O desenvolvimento social não teria apresentado ganho algum em relação ao resto do mundo. A melhora na distribuição de renda não seria vigorosa, nem sustentável, pela própria natureza do modelo de desenvolvimento adotado.
 
A distribuição da riqueza não teria sido alterada, em virtude das elevadas taxas de juros reais, do reduzido crescimento do salário real, da concentração de capital e da ausência de medidas que inibam o abuso do poder econômico pelas grandes empresas. O Brasil continuou mantendo sua posição entre os quatro países de maior desigualdade na América Latina. Em resumo, a ação dos governos petistas teria sido de uma negatividade lapidar. E os avanços proclamados não passariam de ilusórios.
 
Não há dúvida de que os pontos elencados pelo colunista de The Globe serão de grande utilidade para a crescente disputa política que grande parte da burguesia brasileira move contra o governo Dilma, tendo como principais instrumentos políticos o tucanato e o partido da grande mídia. Eles têm repetido exaustivamente a crítica à desindustrialização e à reprimarização das exportações. Também reclamam cinicamente dos pequenos investimentos em inovação e pesquisa e desenvolvimento tecnológico e da perda da competividade internacional. E criam quase um estado de pânico com qualquer repique inflacionário. Assim, nada como ter o aval de cientistas de esquerda para reforçar sua cruzada antipetista.
 
Porém, uma análise em profundidade da desindustrialização brasileira tem que remontar à segunda metade dos anos 1970, à crise da dívida externa, à estagnação econômica dos anos 1980, e ao destrutivo e espoliativo processo neoliberal, levado à cabo pelos governos e pelas frações burguesas nos anos 1990. No caso, os governos petistas devem ser responsabilizados apenas por não terem realizado um ajuste de contas e tornado públicos os verdadeiros crimes cometidos contra a indústria brasileira nesse período. Estariam melhor blindados para enfrentar as acusações sobre sua responsabilidade na desindustrialização brasileira.
 
Naquela ocasião, não ocorreu apenas uma desindustrialização profunda. Ocorreu também um aumento da desnacionalização e da monopolização transnacional da indústria restante e uma desacumulação interna de capital. Não é por acaso que o governo Lula, ao tentar o crescimento via aumento do consumo, bateu logo no teto da oferta. E que o governo Dilma, apesar de todas as concessões para incentivar os investimentos em infraestrutura e em industrialização, continua se batendo contra uma muralha de capital insuficientemente acumulado e, ainda por cima, rentista e monopolista, que fica reclamando dos tributos, para justificar os preços elevados, e da inflação, para justificar a elevação da taxa de juros. Ignorar essa realidade da luta real de classes pode ser justificável para economistas liberais, marginalistas e até mesmo keynesianos, mas não para economistas políticos.
 
O mesmo diz respeito à reprimarização das exportações. Ela é o fruto mais visível da modernização dos latifúndios, de sua transformação em agronegócio capitalista, e da privatização do solo e do sistema mineral do país, conforme as exigências do Consenso de Washington, implantadas religiosamente pelos governos Collor, Itamar e FHC. Associadas à destruição do parque industrial, à desnacionalização e monopolização do que restou dele, à crescente miséria de parte considerável da população brasileira, e à crescente demanda internacional de commodities agrícolas e minerais, essas mudanças na agricultura e na mineração teriam que ter no mercado externo sua forma de realização.
 
Se alguma crítica deve ser feita aos governos petistas, no caso, é não haverem aproveitado numa extensão maior os saldos comerciais externos para elevar substancialmente a importação de bens de capital, ou seja, de máquinas, equipamentos e tecnologias indispensáveis para a re-industrialização. E, paralelamente, não terem criado novos instrumentos estatais que forçassem a burguesia a investir na indústria e na elevação da produtividade. Achar que a burguesia brasileira será capaz, por moto próprio, de correr riscos é o mesmo que desconhecer a natureza dessa classe que, desde o seu berço, foi conduzida à maturidade pelas imposições e benesses do Estado. E supor que a burguesia estrangeira, acostumada a praticar preços de monopólio, vai investir em tecnologia por sua própria inciativa, é o mesmo que acreditar em milagres.
 
A perda de competitividade internacional, a vulnerabilidade externa, a concentração de capital sugada para o centro do sistema capitalista, a dominação financeira, e outros problemas estruturais da sociedade brasileira vêm de longe. Por isso, levantar os problemas, desigualdades a atrasos absolutos e relativos do Brasil não é difícil. Difícil é realizar avanços e mudanças no contexto da hegemonia econômica, ideológica e política de uma burguesia conservadora e reacionária, que continua mantendo em suas mãos os principais aparatos do Estado.
 
Mudar essa situação não depende apenas de vontade de governos eventualmente ocupados em condomínio pela esquerda e outras forças políticas. Depende de ter força social e política em condições de enfrentar as resistências de classe e as sabotagens dos aparatos estatais que operam contra as mudanças e os avanços, por menores que sejam. E de concentrar esforços para construir essa força social, aproveitando cada avanço como sinal da possibilidade de mudanças mais profundas. Nesse sentido, seria conveniente, antes de considerar a nulidade completa dos governos petistas, perguntar aos trabalhadores e ao povo pobre, os melhores juízes para o caso, se seus avanços foram reais ou ilusórios.