A notícia de que estão em preparo no governo federal novas propostas de cotas raciais, no caso mais divulgado, para o serviço público federal, resultou em reação negativa de editorial da Folha de São Paulo, precedida de artigo contrário do articulista Vinícius Mota. A Constituição e as leis brasileiras proíbem a discriminação racial. Mas, na vida real do povo brasileiro a discriminação é de uma clareza gritante. É só olhar os setores dirigentes e administrativos de governos e empresas, o Parlamento, o Judiciário, o Ministério Público, as lideranças religiosas, as universidades, as escolas de melhor qualidade, a população que habita bairros dotados de excelência de serviços, e as próprias redações de jornais, rádios e TVs. A crença no discurso de uma democracia racial construiu e deu legitimidade a um racismo velado, porém sentido cotidianamente por negros e negras.

Essa divisão discriminatória da sociedade brasileira, que a abolição da escravatura não apagou, começou a ser resgatada com a mobilização do movimento negro. Resultaram daí legislações que visam combater preconceitos e superar estamentos sócio-econômico-culturais fundados em raça, cor, descendência, origem étnica ou nacional.

Destaco alguns avanços recentes, a começar por 2003, com a obrigatoriedade da temática nas diretrizes e bases da educação nacional, de incluir o estudo de História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. É valorização da cultura do povo negro. Para avançar ainda mais em ações afirmativas no mesmo ano de 2003 foi criada a SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial).

Outra conquista foi o Estatuto da Igualdade Racial aprovado em 2010, que, embora genérico, estabeleceu que é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades e de participação da população negra. Certamente em novembro, a Presidenta Dilma Rousseff proporá concretude a muito do que é genérico no Estatuto da Igualdade Racial. Estes avanços recentes e mais os que estão por serem anunciados em novembro, “mês da Consciência Negra e do nosso herói Zumbi”, obrigou a retomar o debate da questão racial de fato. Não cabe mais no país a hipocrisia da frase “não somos racistas”. Esta geração de políticas afirmativas vem tocando nas feridas ainda abertas do preconceito e obriga a sociedade nacional a debater a questão da desigualdade racial em um novo país que vem sendo construído. Certamente desagrada e incomoda a muitos setores bem aquinhoados que preferem admirar o mundo das leis, como se fosse ele o mundo real.

O apartheid nos Estados Unidos e na África do Sul, ainda vigentes na segunda metade do século passado, este último tendo resistido até bem próximo de nossos dias, elevavam ao texto das leis a segregação real. O corpo jurídico daqueles países proibia negros e negras de viverem em bairros brancos, de elegerem ou terem seus representantes nas instituições do Estado, de freqüentarem escolas e outros ambientes coletivos exclusivos daquela que se considerava raça superior. Nada mais explícito e reprovável do que isso. O que não nos exime de reprovar a segregação real, que exige medidas legais para buscar curá-la, tais como as medidas afirmativas já conquistadas, quero ressaltar que neste ano de 2012 além de aprovar as cotas nas universidades públicas; o Supremo Tribunal Federal – STF aprovou a constitucionalidade do sistema de cotas raciais adotadas na Universidade de Brasília – UNB.

Seria, como diz o articulista da Folha, reintroduzir aqui instituições segregacionistas? Não. É justamente o contrário que lentamente vem sendo feito: estamos introduzindo no Brasil instituições que combatem a segregação real negada na poesia constitucional da igualdade. Por isso, cabe apoiar a intenção do governo federal de propor novas ações afirmativas no próximo mês de novembro, especialmente na área do trabalho.

 

 

Janete Rocha Pietá  é deputada federal (PT/SP), ativista e membro da Frente Parlamentar Mista Pela Igualdade Racial e em Defesa dos Quilombolas.