Luiz Hildebrando Pereira da Silva – A CAMPANHA PELA ANISTIA EM PARIS (1974-1979)
A campanha da Anistia em Paris, centro nevrálgico da oposição brasileira no exílio a partir de 1973, teve evolução exemplar no sentido da convergência unitária das diferentes correntes políticas de esquerda, fruto de longa e paciente negociação.
Logo depois do golpe de abril de 1964, entre 64 e 68, os exilados em Paris eram poucos. Apenas personalidades como o ex-presidente Kubischek, os ex-ministros Celso Furtado, Almino Afonso, Raul Ryff e Valdir Pires, ex-deputados como Josué de Castro, dirigentes da UNE como José Serra, Vinícius Caldeira Brandt, Nelson Vanuzi e alguns cientistas e universitários. Após 1968, com o AI-5 e o reforço da repressão no país, a população de exilados aumenta com a chegada de outras personalidades da área intelectual como Oscar Niemeyer e alguns políticos como os ex-deputados cassados Márcio Moreira Alves, Fernando Perrone e David Lerer além do governador Miguel Arraes, que se instalara em Argel.
A partir de 1970, Paris se torna centro importante do exílio político, com a instalação de Arares em Argel e a chegada dos 40 prisioneiros políticos liberados após o seqüestro de diplomatas, entre os quais Apolônio de Carvalho. As atividades de Niemeyer e sua equipe em Argel, com a construção das novas Universidades encomendadas pelo Presidente Boumedienne, promoviam freqüentes deslocamentos entre Argel e Paris, facilitando interações entre os exilados na Argélia e os parisienses, fortalecidas pelas passagens de Arraes por Paris. A casa de Pierre Gerveseau e Violeta Arraes Gerveseau no 16e. bairro de Paris se transformou então em centro de conspiração e encontros obrigatórios de exilados e entre estes e os brasileiros de passagem.
A partir de 1973, após o Pinochetaço no Chile, verifica-se a revoada maciça de exilados brasileiros para a Europa. A França foi o país europeu que recebeu o maior número de exilados vindos do Chile, entre os quais mais de 800 brasileiros, seguida da Suécia e Bélgica e, em menor escala, a Suíça, a Holanda e a Itália. Note-se que assistíamos na França nessa época aos primórdios do Programa Comum da Esquerda (que levou a vitoria da coalizão socialista-comunista com Mitterrand em 1981). Nessas condições, reforçava-se a solidariedade às lutas de libertação nacional como no Vietnã e aos povos latino-americanos como os do Brasil e Chile. Na Associação France-Amérique Latine, víamos sentarem-se, no Comitê Diretor, representantes dos três grandes partidos de esquerda (PCF, PS e MRG) e das grandes centrais sindicais (CGT, CFDT e FEN).
O quadro político-institucional humano da esquerda brasileira em Paris ficava também definido. A força política mais estruturada era, sem dúvida, o PCB. Com a presença em Paris de Armênio Guedes, reforçada pela chegada de Zuleica Alembert, vinda do Chile, mantinha dois quadros importantes do CC, apoiados ainda em Sérgio Moraes em Genebra, Marco Moro e Ruth Tegon em Bruxelas, Marcus Del Roio em Milão e Marcus Jaimovitch em Argel. A organização de base do PCB em Paris-Lion contava com mais de 30 membros e um largo grupo de simpatizantes. Apoiada basicamente na estrutura do PCF, a OB desenvolvia suas ações de solidariedade ao Brasil e a denúncia internacional da ditadura militar através da Associação France-Amerique Latine. Outras forças políticas de esquerda eram menos representativas, com exceção do PCBR que alinhava a figura legendária de Apolônio de Carvalho, ex-comandante e herói da Resistência Francesa na guerra de 40-45. As outras organizações e grupos não tinham à sua frente mais do que antigos dirigentes estudantis ou jovens ativistas sindicais. Contavam-se entretanto em grande número, com número variável de aderentes e amigos: o PCdoB, a AP e a APdoB, a VPR, o MR-8, a VAR-Palmares, a POLOP, o grupo Debate etc. Em seu conjunto a população da ultra-esquerda ultrapassava largamente a população da esquerda clássica mas sua extrema divisão a desfavorecia em termos de liderança.
Os conflitos entre as diferentes correntes da esquerda, que se manifestavam desde os anos 60, se cristalizavam essencialmente em torno da questão de métodos de luta. De um lado havia organizações e correntes que defendiam a necessidade de «luta armada» para derrubar a ditadura e abrir caminho para um poder democrático e popular. Essa tese se manifestava em alternativas diversas, defendendo algumas correntes a necessidade de guerrilhas rurais, outras a de ações urbanas capazes de induzir revoltas populares e a « revolução popular de conteúdo socialista ». Tais tendências foram fortalecidas e prestigiadas com a reunião da «Tri Continental» em Havana em 1967, o desencadeamento da guerrilha de Guevara na Bolívia e das guerrilhas na Colômbia, movimentos que se proclamavam convergentes com a palavra de ordem do «Che » : « criar Vietnãs em todo o Mundo ».
O PCB, isolado entre as forças de esquerda no país, defendia uma linha centrada sobre a ação popular e da sociedade civil pela reabertura democrática em ligação com os movimentos sociais e, em particular, no que se chocava com a ultra-esquerda, uma coordenação com a « oposição legal », isto é com a oposição admitida pela ditadura que se estruturava em torno do MDB (considerado pela ultra esquerda como elemento integrante do esquema da ditadura militar). O clímax da confrontação em Paris entre as correntes ditas « reformistas » lideradas pelo PCB e as ditas « revolucionarias » constituídas por um grande número de organizações e frações dissidentes se deu entre 1967 e 1972. A confrontação coincidia com o desenvolvimento do « Maio francês de 1968 » que propiciava o surgimento na França de centenas de movimentos, dissidências, frações e grupos ultra-esquerdistas devotados a « revolução mundial » e, por definição, favoráveis às correntes ultra-esquerdistas da diáspora brasileira e sul americana.
Paradoxalmente foi após o pinochetaço chileno e a chegada de centenas de exilados brasileiros e sul americanos na França no final do ano 1973 que começou a quebrar-se o gelo entre as duas tendências conflitantes da esquerda brasileira. Isso foi favorecido pelas vitórias esmagadoras da « oposição legal » do MDB nas eleições de 70 e 74, o surgimento do néo-sindicalismo no ABC paulista e as ações de oposição à ditadura na sociedade civil brasileira com os movimentos de juristas, jornalistas (ABI), cientistas (SBPC), tornando clara a importância da sociedade civil e da oposição legal.
Esses e outros elementos prepararam o ambiente político e social da diáspora brasileira para unir-se em torno do Movimento em Prol da Anistia. A iniciativa decorreu igualmente de visitas a Paris de membros do Comitê Feminino pela Anistia que, em São Paulo, sob impulso de Terezinha Zerbini, Ruth Escobar, Jovina Pessoa e outras desenvolvia desde o Congresso da UNE de Ibiuna, um intenso movimento em favor da Anistia. Terezinha Zerbini tinha ligações com os dominicanos brasileiros exilados e conseguiu facilmente mobiliza-los. Por outro lado estabeleceu-se um relacionamento direto do Movimento de Mulheres de Paris, que já era unitário, com os movimentos de mulheres brasileiras nas outras cidades européias e com o grupo do jornal Brasil Mulheres de São Paulo que assumira papel importante no Movimento de anistia no interior do país. Pode-se assim dizer que o Movimento de mulheres teve um papel precursor da convergência unitária. Faltava um elemento de circulação aceito na área ultra esquerdista para cristalizar o movimento. Alguns elementos fizeram esse papel mas os que mais se salientaram foram José Aníbal, André Luiz, Jean Marc von der Weid e Sérgio Menezes. Conseguiu-se assim reunir representantes das correntes para definir a área de ação e o terreno de entendimento para a ação unitária. Isso não se fez sem dificuldades e durou não menos de três meses de contínuas reuniões. Três dificuldades maiores se apresentavam: a de definir que « organização » seria reconhecida com direito a assento na mesa diretora da Campanha ; a de definir os princípios de tomada de decisão: maioria ?, unanimidade ?, direito de veto ?; a de saber que amplitude devia tomar a campanha de Anistia. Três meses de reuniões e debates acalorados para vencer preconceitos de cada um e definir normas aceitáveis por todos.
O exemplo unitário dado pelo COMITÊ BRASIL ANISTIA de Paris, obtido a custa de paciência e perseverança, teve grande repercussão no conjunto da diáspora brasileira na Europa e repercutiu igualmente no interior do país, servindo de ponte de unificação entre movimentos clandestinos, movimentos da sociedade civil e a oposição parlamentar que conseguiram finalmente levar a campanha ao sucesso da vitória em agosto de 1979.
*Luiz Hildebrando Pereira da Silva, cientista e professor da Faculdade de Medicina da USP, cassado, ex-preso político, no exílio foi participante do Comitê Brasileiro de Anistia de Paris.