prisioneiro político:

Salvador, ala política da Penitenciária Lemos de Brito, 19/8/79

Ao Senador Teotônio Villela,
Aos Srs. parlamentares,
Aos movimentos de anistia
À Imprensa
Ao povo em geral

VIVA A LIBERDADE:

Levo ao conhecimento da nação que o preso político Theodomiro Romeiro dos Santos, que cumpria pena nesta Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, empreendeu a busca de sua liberdade.

Theodomiro era um menino de 12 anos quando os generais derrubaram o governo constitucional do Brasil e monopolizaram todo o poder em 1964. Adolescente, aos 16 anos, participou do movimento estudantil e popular de sentido democrático que ascendeu em 1968 e trabalhou em comunidades de base da Igreja Católica. Tornou-se ardoroso integrante da grande e heróica resistência democrática e popular que se desenvolveu desde então, por todo o país. Aos 17 anos, para escapar à sanha do terrorismo oficial que assolou a Pátria, passou à vida clandestina. Em uma noite de outubro de 1970 com então 18 anos, é atacado por um grupo armado, em uma rua de Salvador. Ninguém, a ele se identificou. Ninguém lhe apresentou mandado de detenção. Nem mesmo voz de prisão lhe é dada. Era um seqüestro, absolutamente ilegal e absurdo, como se tornara rotina nos negros tempos de Médici. Amordaçado e algemado foi jogado em um veículo que disparou atrás de seu companheiro Getúlio Cabral. Defendendo-se como podia atirou em um de seus seqüestradores, que depois veio a falecer, ocasião em que se revelou tratar-se de um sargento da aeronáutica. Getúlio consegue escapar. Dois anos depois, assassinado no Rio, teve sua morte anunciada pelo 1o Exército. Pode-se imaginar como o jovem seqüestrado foi recebido pelos torturadores do regime lotados na Bahia. Um Tribunal especial foi montado após, para proceder ao julgamento do caso. Os jurados eram todos oficiais superiores do regime, lotados na Aeronáutica, a corporação à qual pertencia o sargento morto, todos pessoalmente indicados para tal tarefa pelo Min. da Aeronáutica. Seria difícil serem acometidos de alguma crise de isenção. O retrato da figura franzina de Theodomiro, imberbe no seu rosto de quase-criança, algemado com as mãos às costas, altivo, pleno de idealismo ante o conselho de guerra, que lha mandava pôr termo à vida por suposta ameaça à Segurança Nacional é flagrante e expressivo de um regime desvairado, registro pungente de um tempo de terror. Pronunciado o veredicto – matar – os protestos jorraram e um coro se levantou dentro e fora do País, exigindo a vida de Theodomiro. Os generais recuaram. O Superior Tribunal Militar transformou a pena de morte em prisão perpétua e rebaixou-a depois para trinta anos. Com a emergência da nova Lei de Segurança Nacional a sua condenação é fixa em 10 anos e meio. Sendo menor de 21 anos quando foi preso, teria direito à Liberdade Condicional após 1/3 de pena cumprida, ou seja, após cinco anos e meio. Já tinha cumprido quase 9. Requereu liberdade condicional. O Juiz pressionado, negou-lhe a condicional. Seus defensores recorreram ao Superior Tribunal Militar. As esperanças, que eram pequenas, reduziram-se quando na votação de outros recursos do promotor da Bahia contra Theodomiro nove (…?) generais-juizes se declararam pesarosos por não poderem votar a favor do recurso extemporâneo, contristados por não descobrirem na Lei uma saída que permitisse uma maior penalização do acusado. Nem por decoro a passionalidade era escondida. Nesse meio tempo, chega ao Congresso o projeto de anistia do governo. Ao clamor popular que se ergueu no país pela anistia ampla, geral e irrestrita, a todas as vítimas dos atos e leis de exceção o governo responde com um projeto que prevê anistia ampla, geral e irrestrita para os seus torturadores. E, anistia parcial para as vítimas de exceção. Os seviciadores de milhares de brasileiros, os terroristas fanáticos e bárbaros que jogaram bombas de guerra contra estudantes indefesos da PUC de São Paulo, contra sedes de jornais independentes e organismos como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, os que raptaram e torturaram Bispos, padres e Freiras, os que assassinaram centenas de militantes antifascistas na "cadeira do dragão", "pau de arara", "geladeira", na pancada e no açoite, estes estariam anistiados. Theodomiro não, assim como todos os que pegaram em armas contra um regime que implantou pela força das armas e pela força das armas se mantém? Como pode falar em Segurança Nacional quem, ao urdir o traiçoeiro golpe de 1964 o fez em cumplicidade com potência estrangeira – os Estados Unidos – e de acordo com plano de desembarque de tropas dessa potência agressiva em terras brasileiras, caso houvesse resistência? Que nacionalidade de fato defendem esses que transformam o nosso país no paraíso das multinacionais, entregaram ao estrangeiro o controle dos bancos de produção fundamentais, as riquezas minerais, a Petrobrás, a Amazônia? Que moral têm para se outorgar a função de tutor da pátria quem depois de gerir os destinos do país como quis e bem entendeu por quase 15 anos e levou-o a situação de descalabro econômico-financeiro, político e institucional, em que hoje se encontra? Que credencial adquiriu quem lançou todo o pesado ônus de um desenvolvimento dependente e deformado por cima das classes trabalhadoras aprofundando como nunca o fosso entre ricos e pobres? Que honorabilidade ostenta quem criou para si as mordomias e convive com os grandes, cíclicos, escândalos econômicos? Que legitimidade enfim pode ter quem subtraiu do povo o direito ao voto livre, quem castrou partidos políticos, a autonomia do legislativo e do judiciário. Não; em definitivo esse regime militar não tem origem nem folha de serviço que lhe creditem respeito público. Governa: é um fato, decorre da força; não é um direito, não decorre de consentimento popular. Não pode arvorar-se a disciplinar quem merece e quem não merece, anistia. Quem pode exercer esse juízo é o povo. E o povo vem clamando, ao seu modo, incansavelmente, há anos, como querendo "lançar um grito desumano para ver se é escutado", pela anistia ampla, geral e irrestrita. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, em meio às centenas ou aos milhares de atos que sobretudo agora se realizam, nem um só é por anistia parcial, nem uma só voz conceituada se levanta para defender o projeto dos generais. Entretanto, o direito da força ainda é lei. E a força pressiona pela anistia parcial e discriminatória. Theodomiro não quis mais ficar como um joguete ao sabor de juizes que não assinam uma liberdade condicional de pré-requisitos todos preenchidos; nem da intolerância de generais-juizes que lastimam não encontrar saída legal para prejudicar um preso. Nem da vontade dos "duros", de quem se diz não estarem ainda preparados para "assimilar" a anistia ampla. Há menos de uma semana nasceu-lhe o segundo filho, tal qual o primeiro, gerado na prisão. Deu-lhe o nome de um companheiro morto pela ditadura. E rompeu com o cativeiro.

Que seja feliz Theo. E que apareça breve, ou retorne breve à nossa Pátria LIVRE. Não há preço para a LIBERDADE.

Levo ao conhecimento também de todos, que ingressarei hoje na justa greve de fome que presos políticos do Brasil estão fazendo pela anistia ampla geral e irrestrita e contra a anistia parcial do governo. Tomarei meu lugar na trincheira dessa luta logo após encaminhar esta carta aos seus destinatários, para que dela tome conhecimento o povo brasileiro.

E VIVA A LIBERDADE.

HAROLDO LIMA

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