Manipulações estatísticas
O comentário de Luciano Martins Costa para o programa radiofônico do Observatório da Imprensa de terça-feira (28/8, “O noticiário enviesado sobre a violência”) questiona a maneira como os dois jornais paulistas usam estatísticas sobre homicídios divulgadas pelas autoridades policiais do estado.
Disse Luciano que embora os dados estejam mais bem trabalhados, agora, do que em outras ocasiões, “não há como escapar da constatação de que os dois jornais tratam com extrema boa-vontade o esforço de propaganda das autoridades.”
O jornalista põe o dedo numa ferida aberta. Em condições normais, os números e as declarações oficiais deveriam ser recebidos com dois pés atrás, e apenas como ponto de partida para a compreensão e a reflexão sobre políticas públicas. Condições normais, num Estado democrático de direito, seriam aquelas em que as autoridades estaduais das carreiras estáveis agissem de modo burocraticamente correto, e não político-partidário. Em certos casos, menos raros do que o bom leitor poderia imaginar, o comportamento é mafioso.
Infelizmente, em nenhuma das unidades da Federação brasileira as autoridades que comandam põem sua missão pública em primeiro lugar. Enquanto alguns policiais civis e militares procuram fazer das estatísticas uma arma de compreensão, outras autoridades, que têm a palavra final, subordinam a divulgação aos interesses eleitorais dos governos. Têm a palavra final. Ou melhor, nem isso, porque a palavra final não é deles, não têm autonomia para tanto. A palavra final vem do palácio, poder de onde emanam todos os subpoderes.
Então, para começar, a imprensa deveria sempre procurar apresentar ao público qual é a artimanha estatística do momento. E deixar que os governos se explicassem. Ou não conseguissem se explicar.
A heterogeneidade ocultada
No caso dos homicídios na cidade de São Paulo, é assombroso constatar que os números são apresentados em bloco, como se houvesse padrões homogêneos na cidade. Para não falar da separação entre homicídios dolosos e latrocínios. Latrocínios são uma forma específica de homicídio. No sentido inverso, não são discriminados os homicídios, dolosos ou culposos, atribuídos a policiais em serviço.
A Folha de S. Paulo ouviu uma especialista, a coordenadora de análise de dados do Instituto Sou da Paz, Lígia Rechenberg: “A Secretaria de Segurança Pública comemora a redução avaliando o número de casos. O correto é ver o número de vítimas. Se somarmos as vítimas de homicídio com as de latrocínio, notamos que o número é quase o mesmo. Não há o que comemorar.”
Terça-feira foi o dia em que o repórter do Estado de S. Paulo Bruno Paes Manso defendeu uma tese de doutorado na USP. O título do trabalho é “Homicídios em São Paulo: carreira criminal e controle social”. Bruno passou anos entrevistando matadores que vivem e atuam em periferias paulistanas. A tese, orientada pelo professor Leandro Piquet Carneiro e aprovada com elogios pela banca examinadora, “descreve o processo de crescimento e de queda dos homicídios em São Paulo entre os anos de 1960 e 2010”, diz o autor no resumo.
Trabalha, portanto, com as mesmas estatísticas que as autoridades produzem. Mas os números são apenas o ponto de partida do esforço analítico.
Luciano Martins Costa critica, em seu tópico para o rádio, um aspecto que os jornais insistem em ignorar: “Trata-se da distribuição dos índices nas diversas regiões da capital. Basta uma olhada no mapa das ocorrências para se observar que a violência aumenta nos bairros mais pobres da periferia quando a polícia se torna mais eficiente nos bairros centrais.”
Um dos integrantes da banca examinadora da tese de Bruno Paes Manso, o professor Sergio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP, chamou a atenção para estudo recente apresentado por Marcelo Néri, da FGV-RJ, agora presidente do Ipea, sobre a distribuição territorial heterogênea da violência.
Disse, para exemplificar, que há áreas das cidades cujo núcleo é violento e o entorno não o é. E vice-versa: outras em que o entorno é violento e o núcleo, não. Essa constatação, por si só, obriga os pesquisadores a trabalhar muito cautelosamente com agregados numéricos, que escondem muita heterogeneidade social, territorial, educacional, etária, etc.
Fôlego curto
Há, ainda, advertências de especialistas que os meios de comunicação sistematicamente ignoram. O Observatório da Imprensa foi criado em 1996. Em 1997, o professor Antonio Fernando Beraldo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou aqui seu primeiro texto: “O número-notícia”. Ao longo dos anos, em suas contribuições para o Observatório (veja aqui), Beraldo alertou também para a utilidade limitada das comparações desacompanhadas de séries históricas.
Além disso, as mais respeitáveis instituições cometem erros. Por exemplo, até o Censo 1991 a população do Brasil foi superestimada em todas as projeções intercensitárias, porque os demógrafos trabalhavam com uma taxa de fecundidade muito maior do que a verdadeira. A urbanização – ajudada, sustentaram alguns, pelas novelas de TV, onde se viam sempre casais com poucos filhos – havia levado as mulheres brasileiras a gerar, em média, uma prole de 2,3 filhos. Em 1960, a fecundidade era de 6,3 filhos por mulher, caiu um pouco em 1970 (5,8), bastante em 1980 (4,4), e deu um mergulho em 1991 (2,9). (Chegou a 2,38 em 2000 e a 1,86 em 2010.)
Isso significa que, por exemplo, todas as pesquisas de opinião − que obrigatoriamente tomam como ponto de partida os dados sobre população do IBGE − estavam numericamente erradas, entre o início da década de 1980 e o do decênio seguinte, embora possam ter apontado tendências corretamente.
Quando a imprensa faz das estatísticas, e só delas, ou pouco mais do que isso, a manchete, alguma coisa está errada. Infelizmente, é o que se vê praticamente todo dia. Mudar esse costume é uma tarefa complicada e extenuante. Custa tempo (dinheiro). E, sejamos honestos, dá trabalho. O preço disso é uma tremenda ignorância coletiva sobre os fenômenos e suas possíveis causas. E um noticiário manipulado por interesses político-partidários.