Nota de conjuntura V
A crise econômica internacional apresenta novos desdobramentos na Europa a partir dos resultados das recentes eleições na França e na Grécia, bem como das dificuldades que agora afetam o sistema bancário espanhol e a dívida soberana do país.
A crise econômica internacional apresenta novos desdobramentos na Europa a partir dos resultados das recentes eleições na França e na Grécia, bem como das dificuldades que agora afetam o sistema bancário espanhol e a dívida soberana do país.
A vitória do candidato do Partido Socialista francês, François Hollande, e seus questionamentos das políticas europeias de austeridade durante a campanha eleitoral provocaram afirmações, mesmo das instituições mais neoliberais, como o FMI, de que seria necessário mantê-las em combinação com medidas de crescimento econômico. Mas propostas concretas, nesse sentido, não apareceram, até porque esse postulado representa uma combinação contraditória, uma vez que a austeridade reduz a capacidade de investimento do Estado e de consumo da população, jogando contra a recuperação econômica em qualquer circunstância. Por outro lado, a definição dos rumos reais da política francesa decorrerá também do resultado das eleições parlamentares concluídas em 17 de junho, quando o Partido Socialista sagrou-se vencedor e Hollande não terá de fazer alianças à esquerda para governar.
Nesse mesmo dia houve nova eleição parlamentar na Grécia, uma vez que o resultado do pleito ocorrido no início de maio não permitiu a formação de um novo governo. A disputa continuou se dando em torno da implementação ou não das condições de austeridade impostas pela Troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI), rejeitadas pela maioria da população, embora 70% desejem manter a participação do país na União Europeia (UE) e a manutenção do euro.
O partido de esquerda Syriza foi o segundo mais votado na eleição de maio ao captar corretamente esse sentimento popular e se opor ao acordo feito pela direita e pelos social-democratas com a Troika, para refinanciar a dívida grega, que resultou em profunda e prolongada recessão. No entanto, a direita representada pelo partido Nova Democracia chegou em primeiro lugar novamente e deverá formar o governo com os social-democratas e outros partidos menores. Mais uma vez o Syriza ficou em segundo, embora por pequena diferença. A pressão da mídia e das instituições europeias foi decisiva para esse resultado, ao provocar temor no eleitorado grego de que o país abandonaria o euro e sairia da União Europeia se a esquerda vencesse.
A “bola da vez” é a Espanha, cujo governo já anunciou a necessidade de ajuda dos organismos comunitários europeus e internacionais para injetar recursos em seu sistema bancário, além de estar pagando juros cada vez mais altos para rolar sua dívida. Um dos bancos, o Bankia, dirigido por próceres do Partido Popular, atualmente no governo, será salvo da bancarrota por meio de sua estatização, contrariando por completo o programa privatista do PP, e a situação espanhola vem provocando a discussão sobre a unificação do sistema bancário europeu como medida de proteção geral. Entretanto, é importante recordar que bancos espanhóis importantes, como o Santander, por exemplo, operam na América Latina e no Brasil, podendo se tornar vetores de certo impacto da crise no nosso continente a partir de suas dificuldades no país de origem.
O G-8 realizou sua reunião anual nos Estados Unidos e emitiu o mesmo vago pronunciamento favorável à combinação das medidas de austeridade com as de promoção do crescimento econômico, embora com oposição do governo alemão, que mantém o bordão do equilíbrio fiscal a qualquer custo. O significado dessa reunião e do pronunciamento é a tentativa dos países centrais de recuperar a hegemonia da governança mundial que em certo momento tiveram de dividir com outros países no âmbito do G-20. Este se reunirá ainda em junho, no México, no mesmo momento das eleições na Grécia, cuja crise, assim como ocorreu no ano passado em Cannes, perturbará o encontro, dificultando resoluções de maior impacto global.
Em seguida a essa reunião ocorreu a 25ª Cúpula da Otan, em Chicago, para discutir sua política frente à ocupação do Afeganistão, que já dura mais de uma década, bem como aprofundar os elementos práticos de sua nova doutrina de intervenção militar não apenas em defesa de seus membros, mas também de intervenção global em reação ao terrorismo e em “defesa” da democracia e dos direitos humanos. Essa doutrina visa permitir que os países ocidentais “democráticos” implementem suas políticas imperialistas sem correr o risco de ser impedidos pelos países “não democráticos” por meio das normas da ONU, como o poder de veto da Rússia e da China no Conselho de Segurança.
Ambas as reuniões são reações à ascensão de novos atores internacionais, como os Brics, e ao fortalecimento do multilateralismo, mas tornam o mundo mais inseguro, e não o contrário, como os americanos e europeus argumentam, haja vista o que ocorreu em países como Afeganistão, Iraque, Líbia e agora Síria. Neste último, Estados Unidos, Arábia Saudita e Catar vêm apoiando e financiando ostensivamente a oposição armada, composta majoritariamente pela fundamentalista Irmandade Muçulmana Síria e por grupos ligados a Al Qaeda. É a lógica do “o inimigo de meu inimigo é meu amigo” e visa quebrar o chamado “eixo xiita”, composto pelo Hezbollah no Líbano, Síria e Irã e pelo Hamas na Palestina, além de aos americanos interessar também a eliminação do principal aliado da Rússia na região para tirá-la definitivamente do cenário político do Oriente Médio.
Por enquanto, a posição russa e chinesa no Conselho de Segurança da ONU e o amplo apoio internacional, inclusive do Brasil, ao plano de paz articulado pelo ex-secretário geral da ONU Kofi Annan têm conseguido impedir a aprovação de medidas de intervenção militar diretas como as que foram aplicadas na Líbia. A oposição ao governo sírio, porém, já anunciou que não respeitará os termos do Plano Annan e promoveu uma série de atentados com mais vítimas civis do que danos a objetivos militares, com o propósito de agravar a situação da população e, assim, criar o ambiente para uma “intervenção ocidental humanitária”.
A notícia positiva nesse quadro internacional é a recente eleição do sindicalista inglês Guy Ryder para diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em substituição ao embaixador Juan Somavia, de origem chilena, que cumpriu três mandatos. Diante das pressões dos países centrais em crise por maior flexibilização das normas de trabalho, erradicação do que resta do Estado de bem-estar social e transformação da OIT em mera agência para cuidar de assuntos menores relacionados ao trabalho, é de suma importância a escolha de um dirigente com origem no movimento sindical, para evitar que a única organização internacional que lida com direitos e interesses dos trabalhadores, inclusive com poder normativo, também sucumba diante do neoliberalismo cada vez mais radical que vigora nos países industrializados.
O governo brasileiro tem demonstrado consciência da crise e dos impactos que esta poderá provocar sobre o país, bem como dos limites dos prazos para adoção de medidas de proteção à nossa economia. Determinados dados, como a recente queda de negócios nas bolsas de valores e de diversos indicadores econômicos, apontam para retração da economia nesse momento e é visível que o setor privado “botou o pé no freio” dos investimentos, além de as empresas multinacionais estarem repatriando valores importantes para socorrer suas unidades nos países mais afetados pela crise.
A queda da taxa de juros referencial, a implementação de medidas de fortalecimento do mercado interno e a redução das taxas de crédito aplicadas pelo sistema bancário estão contribuindo para o funcionamento de novas medidas anticíclicas implantadas pelo governo, conforme demonstra a recente reação positiva do mercado automobilístico no Brasil.
Entretanto, a política econômica não poderá se resumir a medidas conjunturais nem a um setor específico da economia. É necessário ousar para que um novo modelo de desenvolvimento se consolide e se torne de fato adequado à formação de um mercado interno de consumo de massas. Ao contrário da “herança maldita” que os governos do PT e base aliada receberam dos antecessores, de um país projetado para ser média potência subordinada às cadeias produtivas globais com políticas definidas no exterior, e não a partir das necessidades e direitos de nosso povo.
A crise não provoca apenas a necessidade da adoção de medidas de curto prazo para enfrentá-la. Representa também a oportunidade de levarmos adiante medidas de transformações estruturais no Brasil. Entre elas o controle do sistema financeiro, incluindo os fundos de pensão, que necessita ganhar maior espaço na agenda, pois o setor financeiro privado tem travado uma queda de braço com a política do governo de redução dos juros e ampliação do crédito. Embora tenham acompanhado em alguma medida a redução das taxas de crédito dos bancos oficiais, os privados tornaram-se mais seletivos na escolha de seus clientes, reduziram a oferta de crédito e ampliaram o valor das taxas de serviço, com o objetivo de manter seu alto percentual de lucro sem contribuir para o desenvolvimento do país. A grande imprensa ligada ao setor rentista continua repercutindo o falso bordão do aumento da inadimplência para justificar essa postura.
Os grandes desafios para o crescimento sustentável da economia continuam sendo o financiamento dos investimentos, a inovação tecnológica, a política de emprego de maior qualidade e trabalho decente, bem como o rompimento da oligopolização das cadeias produtivas globais que atuam no Brasil.
Houve uma vitória importante do movimento sindical ao conseguir incluir uma cláusula no Fundo de Investimentos do FGTS para garantir o controle do recolhimento dos encargos sociais ao longo da cadeia produtiva das obras que o fundo financia, e não apenas na empresa principal, tomadora dos empréstimos. Os sindicatos também fazem gestões para que o BNDES amplie sua cláusula social de contrapartidas sociais de negação de empréstimos a empresas envolvidas com a prática de trabalho escravo e/ou infantil para também condicionar empréstimos à geração de empregos e proteção do trabalho decente, conceito que inclui o respeito pelas normas fundamentais da OIT, segurança no trabalho, proteção social e diálogo social.
Da mesma forma, é necessário que o BNDES reforce a política do governo federal de apoio às pequenas e médias empresas, conforme aponta o recém-criado Fundo Garantidor de Crédito. A rigor, o banco destina um recurso volumoso a esse setor empresarial. Nos empréstimos individuais, porém, atende basicamente às necessidades de capital de giro por meio de pequenos desembolsos, e não às demandas de financiamentos estruturais e de inovação.
Um aspecto importante de um modelo econômico que nos permita dar o salto necessário é a integração sul-americana, cujo fluxo comercial vai bem, assim como os avanços no setor logístico e de infraestrutura. Falta, porém, o fortalecimento institucional do Mercosul e da Unasul, e os sinais que ora recebemos da crise na integração europeia não contribuem para o avanço de um processo político mais forte na nossa região, além da tendência natural em épocas de crise de os governos se voltarem prioritariamente para os problemas nacionais, que é o que está acontecendo nesse momento.
Estamos às vésperas da realização da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, e esta tampouco ocorre sem dificuldades diante do desinteresse dos países centrais em aprovar resoluções que contrariem as posições de suas empresas multinacionais e de seus governos neoliberais. No entanto, é uma oportunidade para o movimento social expressar suas preocupações sobre o tema do desenvolvimento na conjuntura atual, bem como para que governos como o do Brasil, dos Brics e demais países em desenvolvimento possam apresentar uma visão alternativa ao modelo vigente há mais de um século.
No campo das iniciativas sociais do governo brasileiro temos a ressaltar que o cadastramento de famílias a serem incluídas no programa Brasil Sem Miséria superou as expectativas e seus resultados poderão se tornar um novo marco nas políticas sociais do nosso governo. Da mesma forma, ressaltamos a posição correta da presidenta Dilma em vetar vários aspectos do Código Florestal, no sentido de não anistiar desmatadores e manter a coerência do que havia sido aprovado até então.
Na Câmara dos Deputados registrou-se a importante aprovação da PEC do trabalho escravo, que possibilitará a desapropriação de terras para fim de reforma agrária em propriedades onde forem encontradas pessoas submetidas a trabalho forçado por endividamento ou outras formas de coerção.
A Comissão da Verdade, para investigar os crimes contra a humanidade cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, foi instalada, mas o início de seu funcionamento foi perturbado pela visão equivocada de alguns de seus integrantes de que haveria “dois lados” a serem investigados, provocando debates acirrados na própria comissão. A questão, no entanto, foi superada, sobretudo após uma reunião entre cinquenta representantes da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos durante a ditadura militar, quando ficou patente que a questão central é esclarecer o que ocorreu durante a repressão do período ditatorial e qual foi a responsabilidade dos agentes públicos. O acompanhamento dos trabalhos da Comissão da Verdade pela sociedade e a manutenção dessa linha de trabalho são fundamentais para que tais fatos não se repitam e também para fortalecer o respeito dos agentes do Estado aos direitos humanos, atualmente, no que toca às pessoas sob sua custódia por diferentes motivos de ordem legal.
A disputa política mais premente com a oposição nesse momento, além das eleições municipais que se aproximam, se dá em torno das investigações da CPI de Carlos Cachoeira, na qual a oposição secundada pela grande imprensa tenta blindar seus representantes envolvidos, como o governador de Goiás, empresas do setor de comunicação como a Editora Abril e integrantes do Poder Judiciário. O mais recente episódio no sentido de tumultuar as investigações foi a reportagem da revista Veja sobre supostas ofertas para evitar investigações sobre o ministro do STF Gilmar Mendes, em claro intento de desqualificar a CPI, além de reforçar a tentativa da “imprensa golpista” de acelerar os trâmites do julgamento do processo em curso no STF, vulgarmente conhecido como “mensalão”, e promover o linchamento dos acusados.
O importante é que a sociedade não se intimide com isso e exija que a CPI investigue a fundo os tentáculos da organização criminosa de Cachoeira e que o julgamento no STF siga seu curso normal, além da presunção de inocência dos acusados até prova em contrário.
*Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo é composto por economistas, cientistas políticos, dirigentes partidários e lideranças dos movimentos sociais convidados pela diretoria da FPA, periodicamente, para discutir acontecimentos nacionais e internacionais e suas consequências na situação política, econômica e social do país. Este texto é uma síntese de reunião realizada em 21 de maio de 2012.