Afinal, qual é o papel do setor privado na prestação de assistência à saúde no Brasil? Hoje, pode-se fazer uma distinção clara entre o que é interesse público na área da saúde e o que é interesse privado? Como o processo de financeirização da economia afeta o chamado "mercado da saúde”? E a regulação, o que pode fazer diante desse novo cenário? Colocadas dessa forma, a relação entre as perguntas acima pode não ser muito clara em um primeiro momento. Entretanto, os questionamentos fazem parte da complexa teia de fatores que estão em jogo para a efetivação (ou enfraquecimento) da noção ampliada de saúde presente no SUS constitucional, aquele sistema sonhado por militantes da Reforma Sanitária como um direito de todos.

Se dependesse apenas da Constituição brasileira, a resposta para a primeira pergunta poderia ser dada sem maiores dificuldades. O texto é bastante claro quando determina que se "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, o papel desse setor deve ser complementar ao SUS e segundo as diretrizes deste. No entanto, a realidade diz outra coisa. Em 2011, 47 milhões de pessoas buscaram a saúde privada, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No mesmo ano, o setor movimentou cerca de R$ 80 bilhões, enquanto o orçamento da União para a saúde ficou em R$ 72 bi.

A percepção do conjunto da sociedade sobre qual deve ser o peso dos planos e seguros de saúde na vida dos brasileiros vem sendo auferida exaustivamente por pesquisas encomendadas principalmente por entidades privadas. Os resultados tendem a expressar uma insatisfação com o SUS, embora não estejam isentos de contradição. De acordo com pesquisa Datafolha encomendada pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) e divulgada no ano passado, planos e seguros de saúde constituem o segundo objeto de desejo da população brasileira, só perdendo para a casa própria em uma lista que inclui itens como carro, seguro de vida, seguro residencial, eletrodomésticos e computador. Já segundo pesquisa Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), 95% dos brasileiros concordam, total ou parcialmente, que o governo tem a obrigação de oferecer serviços de saúde gratuitos a todos.

A combinação do aumento de postos de emprego com carteira assinada, facilidade no acesso ao crédito e ganhos reais no salário mínimo é apontada como responsável pela incorporação de um segmento mensurado em 30 milhões de pessoas em nichos de mercado antes exclusivos da classe média, caso dos planos e seguros de saúde. Pesquisa do instituto Data Popular encomendada pelo jornal Valor Econômico este ano estima que 4,4 milhões de pessoas da classe D já possuam esse tipo de plano. E há para onde crescer, já que esse número corresponde a apenas 9,3% do total residente em cidades.

No entanto, a voracidade do mercado não vem acompanhada por qualidade na assistência, como lembra o pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Mário Scheffer: "Esse mercado está crescendo mais de 10% ao ano sem planejamento. É um cenário de aumento da compra de planos populares, que são baratos, em média custam menos de cem reais a mensalidade. São planos com uma rede credenciada muito diminuída que não dá atenção de qualidade. Hoje tem overbooking, filas de espera, demoras e dificuldades em conseguir atendimento. Se anuncia um apagão da saúde suplementar por essa voracidade de se vender planos de saúde para uma suposta nova fatia da população que está descontente com o SUS e hoje tem poder aquisitivo”.

A frustração com os planos e seguros vem sendo mensurada pela ANS. Cerca de 20 milhões de brasileiros têm planos de saúde considerados ruins ou medianos, fatia que representa nada menos do que 45% dos usuários de planos de saúde no país. Pesquisa encomendada pelo Conselho de Medicina ao Datafolha no ano passado aponta que 58% dos usuários dos planos de saúde vivenciaram alguma situação negativa com o atendimento das operadoras no período de um ano. As reclamações mais recorrentes envolvem fila de espera e demora no atendimento em pronto-socorro, laboratórios e clínicas (26%). Também é alvo de críticas a pouca variedade de médicos, hospitais e laboratórios (21%). Dos entrevistados na pesquisa, 19% relataram dificuldade em marcar consulta e 18% se sentiram prejudicados com o descredenciamento do médico procurado. Quatorze por cento dos usuários relataram que precisaram recorrer ao SUS por terem atendimento negado pelas empresas. "É um engodo achar que a assistência suplementar é um paraíso. A falta de regulação, as brechas, as inúmeras restrições de atendimento, as negações de cobertura, empurram as pessoas de novo para o sistema público. Tudo aquilo que é caro, complexo, os idosos, os doentes, os desempregados, enfim, tudo o que não dá lucro retorna para o SUS”, enfatiza Scheffer.

Banco público, saúde privada

O anúncio foi feito no dia 19 de abril de 2010. Durante o lançamento de editais de patrocínio a projetos culturais, a então presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Maria Fernanda Gomes Coelho, informou aos presentes que a instituição estava desenvolvendo um estudo de viabilidade para entrar no ramo de seguros de saúde. "É um segmento do qual participam as demais instituições financeiras e é estratégico para nossa instituição oferecer esses produtos e serviços, sobretudo para as camadas mais baixas da população”, justificou na ocasião, de acordo com matéria da Agência Brasil. Assim, cerca de um ano depois, também sem muito alarde, a intenção do banco público se materializou no âmbito da empresa privada Grupo Caixa Seguros, da qual a CEF detém, hoje, 48,21% das ações.

A entrada do banco, mesmo que indiretamente, no mercado de planos e seguros de saúde privados teve repercussão escassa até agora. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi uma das poucas entidades a se manifestar publicamente sobre o caso. Em fevereiro, publicou em seu site a nota ‘Caixa Econômica Federal contra o direito à saúde’ em que questionava: "Se a saúde é, de fato, prioridade do Governo, esta prioridade deve se expressar, também, nas medidas do conjunto das instituições estatais”, lamentando, por fim: "Enquanto a correlação das forças políticas for favorável ao capital financeiro não há por que estranhar notícias como essa”.

"A decisão da Caixa é uma aposta na contramão da construção de um sistema público. Isso não condiz com a história de um banco público orientado para o desenvolvimento não só econômico, mas social do país. Como instituição voltada para a efetivação de programas sociais e direitos dos trabalhadores, há um significado muito forte quando a Caixa aposta na falência do SUS para fazer negócios”, avalia Scheffer. De acordo com ele, a iniciativa da Caixa diz muito sobre o futuro papel da saúde suplementar no sistema brasileiro e, consequentemente, sobre o futuro do próprio SUS. "Nós queremos esse subsistema como complementar ao sistema público ou a política é transformá-lo na cobertura principal de grupos cada vez maiores da população? Assegurar a perenidade do SUS vai depender muito de como os recursos do crescimento econômico vão circular no sistema de saúde. Qual será o destino da nossa riqueza coletiva? Parece que há uma determinação política para que ela se desloque para as despesas privadas e para o setor privado”, acrescenta.

Mesmo tendo sido anunciado pela direção da instituição e, posteriormente, divulgado como uma ação da Caixa Econômica Federal, o negócio operado pela Caixa Seguros Saúde recai unicamente sob a responsabilidade da personalidade jurídica privada quando o interesse é defender o banco público desse tipo de críticas. Procurada pela revista Poli no começo de abril, a assessoria de imprensa da CEF aconselhou a reportagem a tratar diretamente com a Caixa Seguros Saúde. Por sua vez, também por meio da assessoria, a empresa avaliou que não cabia a ela responder às críticas e, sim, à CEF. Procurado de novo, finalmente o banco decidiu não se pronunciar sobre o assunto nem dar detalhes sobre sua participação no negócio.

Procurada para comentar a posição do banco, a presidente do Cebes, Ana Costa, questiona: "A Caixa deveria responder. Eticamente porque é um banco público, que deveria preservar o interesse público e as bases da Constituição brasileira e politicamente porque é uma instituição vinculada a um governo que deve defender o interesse público”. Ana analisa que a entrada da Caixa se soma a outros elementos que corroboram "a aposta no fracasso do SUS”. "A Receita Federal também aposta no fracasso quando promove a renúncia fiscal do pagamento da saúde privada. Isso é um contrassenso, uma política na contramão da Constituição, que não fala em privilegiar o setor privado. Mas o que está acontecendo é o contrário. O setor privado hoje regula o setor público até determinando onde ele deve se estabelecer e onde deve ser subtraído”.

A falta de um delineamento claro entre o interesse público e o privado esteve presente no processo que deu origem à Caixa Seguros. O negócio que fez da Caixa Econômica acionista minoritária da empresa remonta o período das grandes privatizações no Brasil. Em 2000, a Caixa Seguros S.A. ainda era conhecida como Sasse, sigla para Companhia Nacional de Seguros Gerais, e era controlada pelo banco público, com os mesmos 48%, e pela Funcef, o fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal, que detinha 50,75% das ações. O controle do Funcef é dividido entre trabalhadores e diretoria do banco. Em caso de impasse, o voto de Minerva é da Caixa.

A compradora das ações da Funcef foi a empresa francesa CNP Assurances, que continua sendo acionista majoritária da Caixa Seguros. A transação aconteceu em fevereiro de 2001, alcançando o preço de R$ 1,065 bilhão. Na época, a Federação Nacional dos Advogados do Pessoal da Caixa Econômica Federal e o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região questionaram a transação na Justiça Federal, alegando que a Sasse pertencia à Funcef e, por isso, era indiretamente controlada pela União. A venda da Sasse, portanto, deveria cumprir os procedimentos de uma privatização. Mas prevaleceu o entendimento de que o fundo de pensão não era estatal. Por fim, não precisou haver um leilão e o banco público passou a ter como sócia a empresa francesa.

De acordo com dados disponíveis no site da ANS, em fevereiro, a seguradora tinha 3.383 beneficiários. No mesmo mês, uma matéria do Valor Econômico ouviu fontes oficiais e divulgou que o objetivo da empresa era chegar a 2015 com meio milhão de beneficiários. Como operadora médico-hospitalar, a Caixa Seguros Saúde comercializa seguros de saúde na segmentação de assistência médica somente para pessoas jurídicas, incluindo pequenas, médias e grandes empresas. Na segmentação odontológica, os produtos são vendidos também para pessoas físicas. A venda dos seguros está intimamente ligada à estrutura operacional da Caixa Econômica. Os gerentes das agências do banco público são incentivados a ofertar os seguros para os clientes.

"A Petrobrás é uma empresa pública, com participação de capital público, mas, ainda sim, ela é por definição uma empresa. O governo é o maior detentor de ações da Petrobrás? Sim, mas isso faz parte do nosso modelo de capitalismo, em que o governo é parceiro de empresas privadas em vários negócios. E essas organizações, como os bancos públicos e a Petrobrás, se comportam como as outras empresas se comportam no mercado”, situa Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da Escola de Governo em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).

Financeirização

Nesse sentido, a pesquisadora localiza a entrada da CEF no ramo dos seguros como parte de um processo recente no país chamado financeirização da saúde. "É da natureza dos bancos trabalharem em três negócios: empréstimos, aplicações e, cada vez mais, venda de seguros. Vivemos em uma sociedade de risco em que os seguros são um produto com um mercado enorme. E quais riscos com mais valor de venda? Vida, residência, carro e saúde. Isso nos diz que a saúde agora é um produto associado a essa indústria de riscos, que faz parte do portfólio dos bancos, por isso, não vejo a entrada da Caixa como uma inflexão e, sim, como mais uma expressão desse fenômeno geral de financeirização da economia e da saúde”, diz.

A Caixa Seguros Saúde tem o controle dividido pela Caixa Seguros, com 75% do capital, e pela Tempo Assist, com 25%. A Tempo Assist se apresenta em seu site como uma empresa de capital aberto listada no Novo Mercado da BM&FBovespa. Segundo Maria Angélica, essa associação é característica da financeirização. "Para oferecer o seguro de saúde, a Caixa associou-se a uma administradora de saúde capitalizada por meio de ações na Bolsa, uma sociedade anônima. E, nesse ponto, ela está cumprindo um link que é típico da financeirização”.

A financeirização da saúde tem vários efeitos no modo como as pessoas acessam, pagam e são satisfeitas em suas necessidades pelos serviços que contratam. Um dos mais imediatos tem relação com a abertura de capital das empresas, que passam a ser sociedades anônimas com ações na Bolsa de Valores. "A empresa com ações na Bolsa tem um compromisso claro com o seu acionista, que quer receber retorno do investimento. Tanto faz se o negócio é a venda de borracha ou saúde”, explica a pesquisadora. Segundo ela, essa característica cria uma distorção no mercado de saúde, já distorcido por natureza por não ser baseado no desejo do consumidor. "Na prática, grande parte da demanda por serviços de saúde não é uma livre escolha das pessoas, mas fruto da urgência. Tradicionalmente nesse processo havia uma primeira intermediação entre a pessoa e sua necessidade de atenção em saúde, que era o profissional de saúde. Em seguida, entrou outra intermediação: os planos de saúde. Com as empresas abrindo capital, temos também os acionistas. Aquela relação direta entre médico e paciente, em princípio muito mais próxima da defesa dos interesses do paciente, fica cada vez mais distante. Nessa cadeia de intermediários, onde está o compromisso?”, provoca.

Outro efeito da financeirização é a concentração do mercado. Fausto Pereira dos Santos, ex-diretor-presidente da ANS, explica que não há aumento no número de operadoras. "As operadoras estão ficando muito grandes, elas têm comprado umas às outras. Está havendo um processo de concentração. A Amil saiu de 600 mil para mais de três milhões de beneficiários, a Bradesco também tem hoje mais de três milhões, a Unimed, mais de um milhão. Hoje, menos de 40 operadoras tem mais de 60% do mercado”, afirma.

De acordo com a pesquisadora da ENSP, o fato já chamou a atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça que atua na fiscalização, prevenção e apuração de abusos de poder econômico. "A financeirização na saúde é grave, não é um fenômeno periférico. O fato de o Cade começar a ver concentração é sintomático. A tendência é outras empresas seguirem muito rapidamente esse caminho, criando um mercado cada vez mais oligopólico, que é o que aconteceu nos EUA na década de 1990”.

Regulação

Para o ex-presidente da ANS, a grande questão da regulação no Brasil continua sendo definir qual é o papel do setor privado no sistema de saúde. "A Constituição fala de um Sistema Único, de diretrizes e responsabilidades. No entanto, a Lei Orgânica [lei 8.080, de 1990] é restrita em alcance porque fala de um sistema público de saúde, próprio ou contratado, e não aborda ou avança na questão da regulação do setor privado, na definição de responsabilidades e papéis”. Para ele, o resultado é que essa conformação cria, na prática, dois segmentos incomunicáveis entre si. "O segmento público é acompanhado, regulado, organizado pela Lei Orgânica, enquanto que o privado ficou sem nenhum tipo de regulação por parte do Estado”.

Em 1998, com a promulgação da lei 9.656, conhecida como Lei Geral dos Planos, a situação não foi resolvida. "A lei dos planos é endógena. Foca em como o plano deve funcionar, qual é a capacidade econômica que uma operadora deve ter para vender plano de saúde, o que o plano precisa cobrir. De novo a legislação não falou do papel do privado na conformação de um sistema, de como deve se dar a relação entre o público e o privado, das responsabilidades. A exceção é o artigo 32, que prevê que as operadoras devem ressarcir o SUS quando seus beneficiários forem atendidos pelo sistema público, mas isso é muito pouco quando imaginamos o volume e a dimensão que o privado tem hoje no sistema de saúde brasileiro. Continuamos tendo um vazio jurídico na relação público-privado no Brasil”, expõe Fausto.

Para ele, a responsabilidade das empresas que operam livremente no setor deveria ser no sentido da integralidade do processo da assistência do beneficiário. "Elas não atuam na assistência farmacêutica e na questão da promoção da saúde, por exemplo. Em algumas cidades, mais da metade da população é beneficiária de planos e várias ações como vigilância da mortalidade materna e regulação da urgência parecem não fazer parte do mundo das operadoras, que ainda em grande parte atuam apenas como intermediadoras econômicas, não são responsáveis pela saúde do conjunto dos beneficiários a elas vinculados. Não dá para ser operador do setor saúde como um intermediador econômico que recolhe um conjunto de recursos de uma parte da sociedade e contrata um conjunto de prestadores de serviços como se essa relação fosse de consumo. A saúde é muito mais ampla do que isso”, enfatiza.

Fausto acrescenta que além de rever a questão da disputa pela rede prestadora e do funcionamento paralelo, um novo marco regulatório para o setor também deveria se posicionar em relação à renúncia fiscal. "Precisamos cortar alguns vasos comunicantes, como a isenção do Imposto de Renda. São questões que fazem com que hoje o setor público financie uma parte do mercado privado. Isso aumenta a iniquidade na medida em que o conjunto da população brasileira arca com a renúncia, que favorece um conjunto menor de pessoas”.

Para Maria Angélica, não existe hoje espaço político para a discussão de um marco regulatório amplo. "A discussão de regulação hoje ainda está muito técnica e incipiente. A pauta atual da ANS hoje está muito centrada na qualidade da prestação de serviços, na resolução das disputas entre prestadores e operadoras, que são discussões posteriores à regulação. O tema do marco regulatório, pensado de forma ampla, ainda não está na agenda nem da ANS nem do governo federal”. A opinião é compartilhada por Mário Scheffer: "Nos últimos anos, são vários exemplos e indícios de que cada vez mais o governo está abdicando do compromisso com o SUS universal e público como meta constitucional. Estamos assistindo a uma reforma do sistema de saúde sem nenhuma discussão do impacto disso. Podemos estar caminhando para a hegemonia do setor privado e a discussão se faz necessária até para avaliar a viabilidade de reverter ao público tudo o que está sendo entregue para o privado, porque podemos chegar a um ponto em que isso seja irreversível”.

*Maíra Mathias é da Escola Politécnica de Saúde "Joaquim Venâncio" da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz)