Neste artigo, quando me referir à "grande mídia", estou me reportando à direção que é hegemônica nas editorias dos principais canais de TV, nos jornais de grande circulação do país e à maioria dos colunistas econômicos e políticos destes órgãos de imprensa, que defendem -por convicção pessoal ou por contrato profissional- os valores econômicos, políticos e morais, do projeto neoliberal.

Neste artigo, quando me referir à "grande mídia", estou me reportando à direção que é hegemônica nas editorias dos principais canais de TV, nos jornais de grande circulação do país e à maioria dos colunistas econômicos e políticos destes órgãos de imprensa, que defendem -por convicção pessoal ou por contrato profissional- os valores econômicos, políticos e morais, do projeto neoliberal.

Entendo este projeto como uma forma específica de desenvolvimento capitalista, pós-keinesiano, que baseia os seus controles em poderes localizados fora da estrutura estatal, com independência dos Bancos Centrais, que passam a ser super-organismos pautados pelas agências privadas de risco, pelos bancos e, predominantemente, pelo capital especulativo. O modelo baseia-se na desregulação aparente da economia financeira global, mas numa regulação concreta, pela esfera privada de caráter financeiro, que assim precisa reduzir as funções públicas do Estado. É um projeto que ainda demonstra ser hegemônico, mundialmente, através da força econômica e política dos governos de países que estão no núcleo orgânico do capitalismo global.

Não me refiro aqui, em termos morais ou profissionais, a qualquer jornalista em particular da grande imprensa. Conheço, dentro desta mídia, profissionais sérios e honrados, que trabalham com cuidado para não serem envolvidos nesta ação manipulatória das suas editorias, por convicção política ou por ética profissional. Conheço também, obviamente, os que são totalmente partidarizados, odeiam a esquerda em geral e qualquer "plebeização" da democracia, em particular. São os que estão imbuídos, ainda, de um profundo recalque, porque o PT "não terminou no mensalão", como gostariam, e porque Lula, afinal, foi um grande Presidente. Estes é que vão a campo, com força e arrogância, para cumprir as tarefas das suas editorias da grande mídia.

Dito isso passo ao tema do artigo. A agenda da corrupção no Brasil, pautada de forma intensa pela grande mídia, após a eleição de Lula -uma agenda que sempre foi secundarizada enquanto ocorriam as privatizações selvagens e a integração subordinada do Brasil na globalização- é uma agenda importante. Embora ela tenha sido instrumentalizada, neste período histórico, ela não só deve ser acolhida, mas estimulada pela esquerda, para disputar com a direita e a própria grande mídia o sentido a ser dado à luta pela reforma do Estado.

O fato de ter ocorrido envolvimento de quadros, militantes ou dirigentes da esquerda, em fatos que possam ser comprovados na Justiça como caracterizadores de corrupção, não deve ser motivo de constrangimento. Ninguém é puro. Não existem partidos puros, instituições de Estado puras ou -até mesmo- como sabemos, religiões puras. A própria depuração moral, que pode decorrer do combate à corrupção, interessa à esquerda, em particular, e aos democratas republicanos, em geral. O problema é como conduzir esta luta sem cair na armadilha udenista de direita, que ela encerra, preparada pela grande mídia, sempre de mão dadas com o esquerdismo udenista dos pequenos partidos que se avocam como "puros" de esquerda e que, frequentemente, são solicitamente promovidos pela grande imprensa à condição de paladinos da moralidade.

Para a direita neoliberal, que se conecta com a "grande mídia" nestes momentos, trata-se de tirar da agenda do país o fracasso do neoliberalismo em escala mundial, que já estava evidenciado, nacionalmente, a partir do fim dos governos FHC, e assim mostrar que as coisas "não funcionam", porque o Estado é corrupto e a corrupção é que impede as coisas de "darem certo".

Não é gratuita a publicação permanente de cifras bilionárias astronômicas, totalmente inventadas, a respeito dos prejuízos que a corrupção causa a todos os países e a demonstração permanente que os "serviços públicos" e os seus agentes políticos são responsáveis por esta degradação. Omitem, sempre, que a corrupção sobre o Estado é organizada diretamente por agentes privados, por empresas privadas, que se vinculam a funcionários e políticos corruptos , estes financiados pelas empresas corruptoras, com o propósito de mais tarde servi-las. Não se trata de mero financiamento de campanha, transparente e legal, mas financiamento intencional e preparatório que, como sabemos, pode atingir todos os partidos.

Os escândalos das empresas privadas globais e os seus custos financeiros e sociais, estes sim gigantescos e permanentemente pagos por toda a sociedade, jamais são tratados de maneira crítica. Enron, os bancos do "sub-prime", os bancos globais que quebram países (com seus executivos e acionistas permanecendo cada vez mais ricos), a mancomunação de grandes grupos econômico-financeiros, que compartilham saques de territórios inteiros, inclusive através de ocupações militares diretas- são sempre equívocos secundários e nada disso interessa seriamente, nem é o predominantemente prejudicial: a culpa dos nossos problemas é da corrupção nas instituições públicas. Mais particularmente do Estado, onde sempre nasce, cresce e se desenvolve a corrupção, como se ela não fosse um elemento genético de acumulação do capital, em todos os seus períodos históricos de crescimento e expansão.

Os partidos de esquerda, que queiram efetivamente mudar a sociedade para melhor, não podem deixar de sustentar, em que pese o reconhecimento de que a corrupção é inextinguível (mas pode ser muito reduzida), que é necessário -política e moralmente- travar uma luta sem tréguas contra a corrupção. É preciso antecipar-se às agendas da mídia sobre o tema, investigando em profundidade quaisquer suspeitas de corrupção que atinjam os bens públicos -venham de onde vierem- expondo abertamente à sociedade todas as mazelas que encontrarmos e, ainda, organizando nos executivos que detemos, mecanismos de transparência e controle capazes de mostrar a diferença.

Se não se aceitam as razões morais e políticas que recomendam este comportamento que, pelo menos, se aceitem as razões pragmáticas: os erros da esquerda sempre serão expostos -sejam eles irregularidades ou crimes- de maneira total e superlativa pela mídia; os erros ou crimes da direita neoliberal, sempre serão relativizados ou escondidos, numa selva de informações manipuladas. Por quais motivos? Por razões políticas, ideológicas e programáticas: o projeto de nação dissolvida na globalização financeira, que a grande mídia defende, é o projeto da direita neoliberal. Não, obviamente, o nosso, de democracia plebéia, de combate frontal às desigualdades sociais, de inserção soberana na nova ordem mundial, que é incompatível com o modelo de crescimento pós-keinesiano, em vigor. No esforço de golpismo político, que eles encetaram para inviabilizar o projeto representado pelos dois governos do Presidente Lula, está a comprovação clara desta política.

O tratamento genial, que a mídia vem dando ao caso do senador Demóstenes Torres, cujas investigações começaram, ainda, quando eu respondia pelo Ministério da Justiça, é elucidativo. Não adianto,aqui, a minha opinião sobre se houve, ou não, conduta criminosa do referido senador, mas pode-se constatar que, num repente, a grande mídia percebeu que tinha ido longe demais contra quem representava toda a identidade moral do "anti-lulismo" na oposição demo-tucana. Aí ela deu um giro brilhante: Demóstenes passou a ser secundário e o governo do PT, em Brasília, passou a ser o principal; ou, pelo menos, um equivalente. Abriu-se, assim, uma clareira midiática para confortar a crise de "autenticidade" moral da honesta e altruísta oposição brasileira, para que os comentaristas políticos da grande mídia respirassem novamente aliviados. Novamente poderiam alvejar o PT e a esquerda, após os esforços heróicos que fizeram na caluniosa campanha contra o ex-ministro dos Esportes do PC do B, Orlando Silva. Afinal, o que passou a ser restaurado, a partir dali, foi a memória do PT no passado "mensalão", não a atualidade demo-tucana de um provável esquema de corrupção de caráter nacional.

Com este movimento, a grande mídia prosseguiu vitoriosa na sua regra de desmoralização da esfera da política como um todo, deixando a corrupção como exceção, no campo demo-tucano, mas mantendo a pauta da corrupção como a pauta principal da disputa política nacional. Ora, a pauta da corrupção é, sim, uma pauta estrutural da construção democrática do país e vai ser vencida, para chegar a patamares de redução razoáveis -a médio e longo prazo- se a pauta principal do debate político, hoje, forem as reformas que criarem as condições para que ela possa ser atacada de forma estrutural.

Falo da reforma política para fortalecer os partidos, da votação em lista para reduzir drasticamente o clientelismo, do financiamento público das campanhas para desvincular, legalmente, os partidos das empresas (cujo vínculo de financiamento, por si só, será criminoso depois desta reforma). Falo da necessidade da verticalização das alianças, que tornará os partidos organismos nacionais e não um somatório de interesses regionais menores. Falo, ainda, da necessidade de reduzir o número de partidos artificiais e vendedores de tempo de TV, da expansão dos Laboratórios Para Controle da Lavagem de Dinheiro e da necessidade de votar, rapidamente, o PL que criminaliza as empresas corruptoras (que já tramita há alguns anos no Congresso). Falo de simoplificar regras que obriguem o Supremo a processar e julgar processos criminais, que ali tramitam há muitos anos, contra figuras da república: como está, os inocentes permanecem em suspeição e os que são criminosos permanecem impunes.

Para não aceitar esta empulhação política que ilude a cidadania, a saber, que a pauta política principal do país deve ser as denúncias e as defesas, relacionadas com acusações de corrupção, a esquerda pensante deveria propor uma pauta estrutural de reformas para, de fato, combatê-la. Os partidos de esquerda poderiam começar se unificando para retomar os "Onze Pontos da Coalizão", formulados em 2007 , atualizá-los e chamar, publicamente, tanto os partidos aliados do governo como setores honrados da oposição, com o objetivo de extrair dali, uma agenda acordada de votações no Congresso. Votações em torno destes temas fundamentais para a construção democrática do país, a começar pela própria reforma política e substituir, assim, a tutela que a mídia faz, privadamente, da agenda política, pela tutela republicana dos partidos sobre a agenda mídia.

Caso isso não ocorra, à médio prazo o eleitorado de esquerda e progressista do país -que elegeu o novo modelo de desenvolvimento econômico, democrático e inclusivo, dos governos Lula- vai começar a se perguntar se a esquerda é mesmo necessária ou, o que é pior: se ela faz realmente alguma diferença para a construção de um Brasil soberano e verdadeiramente republicano.

Tarso Genro é governador do Estado do Rio Grande do Sul.