Dez anos do golpe na Venezuela: a revolução não será ignorada
Mídia brasileira se cala sobre a data. Um silêncio que é revelador de seu caráter
A maior notícia que a imprensa brasileira deu sobre os dez anos do golpe de abril de 2002 contra Hugo Chávez foi ignorar solenemente a data.
É um silêncio eloquente e revelador sobre o significado do governo venezuelano para a América Latina e do próprio caráter – ou falta de – da mídia brasileira.
Mídia brasileira se cala sobre a data. Um silêncio que é revelador de seu caráter
A maior notícia que a imprensa brasileira deu sobre os dez anos do golpe de abril de 2002 contra Hugo Chávez foi ignorar solenemente a data.
É um silêncio eloquente e revelador sobre o significado do governo venezuelano para a América Latina e do próprio caráter – ou falta de – da mídia brasileira.
Vamos lembrar: a Rede Globo, o jornal O Estado de S. Paulo e a inacreditável revista Veja, entre outros, ficaram exultantes com o golpe.
A publicação da família Civita colocou no alto da capa da edição fechada na noite da sexta, 12 de abril de 2002, a manchete “A queda do presidente fanfarrão”. Na matéria interna “O falastrão caiu”, um certo Raul Juste Lores sentenciou: “Chávez é o terceiro presidente sul-americano a ser corrido do palácio pelo povo nas ruas em apenas quatro meses. Os outros foram os argentinos Fernando de La Rúa e Adolfo Rodríguez Saá”. E mais adiante escreveu, com todos os verbos no pretérito perfeito: “Chávez se considerava um Robin Hood bolivariano. Era mais um bufão que entretinha o povão com programas de televisão em que se comportava mais como animador de auditório do que como presidente. Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%”.
Não houve nenhum pedido de desculpas aos leitores na semana seguinte. Assim, noticiar hoje o golpe, para a mídia, equivale a reconhecer uma derrota editorial e política de grandes proporções. Uma imensa barriga, como se diz no jargão jornalístico.
Fim de uma era
O golpe, para além de suas características violentas e reacionárias, marcou o fim de uma era na América Latina. Acabou o período em que mídia, Igreja Católica, grande empresariado, Forças Armadas e embaixada norte-americana decidiam como ficaria o tabuleiro político em cada país. O golpe de 2009 em Honduras fica marcado como um caco do passado que teima em não desaparecer.
Em uma entrevista concedida em Caracas no primeiro aniversário da aventura da direita, Hugo Chávez assim definiu o 11 de abril de 2002: “É um dia que condensa milhares de dias”.
É uma boa síntese. O episódio simboliza um imenso esforço de vários países por romper com o modelo econômico que esgarçou instituições, concentrou renda, liquidou instituições de Estado e pauperizou milhões de pessoas.
A tentativa de se implantar um modelo neoliberal e privatista num país em que o centro da economia gira em torno de um bem do Estado – o petróleo – e onde não existe uma burguesia interna consolidada mostrou-se um desastre inesperado. Não é à toa que, na Venezuela, as reações foram mais violentas do que em qualquer outra parte.
A destruição de um incipiente Estado de bem estar social e de pactos de convivência construídos ao longo de duas décadas de alta nos preços do petróleo terminou, no final dos anos 1980, com a hecatombe militar e social conhecida como “Caracazo”. Mais de 1,5 mil mortos e um trauma nacional de grandes proporções levaram a pretensa democracia social e as instituições que a legitimavam ao precipício.
A reação ao desastre se deu – surpreendentemente – pela via democrática. Nas eleições de 1998, que consagraram a eleição de Chávez, a população se vingou de seus algozes. A maioria possivelmente não sabia bem o que estava elegendo, mas sentia ser algo diverso dos mandatários escolhidos até então.
A eleição de Chávez não foi apenas uma vitória eleitoral, como se veria nos anos seguintes. Ela expressou uma mudança nas camadas tectônicas da estrutura de classes de seu país. Largos contingentes empobrecidos da população entraram na cena política com difusos, mas fortes anseios de mudança. É um processo ainda em curso.
Empurrando para a esquerda
A mídia venezuelana, com seu combate frontal ao novo presidente, logrou empurrar seu governo cada vez mais para a esquerda. E a revelação de que ela articulara várias investidas para tirá-lo do Palácio de Miraflores levou-a a um grande descrédito interno.
A vida não foi fácil para o governo de Hugo Chávez nesses dez anos. Sucessivos enfrentamentos fizeram com que grande parte da energia a ser concentrada na administração do Estado fosse desviada para a luta política com a oposição. Esse fator aliado a uma crônica falta de quadros competentes e a um aparelho de Estado viciado por anos de corrupção e favorecimento fez da gestão cotidiana do poder público um primor de ineficiência. Serviços básicos como limpeza das ruas, iluminação pública e segurança somente nos últimos anos conheceram alguma melhora.
Ao mesmo tempo, a elevação dos gastos sociais criou uma série de serviços de educação, saúde, cultura e cidadania que funcionam de forma paralela à estrutura estatal. Não resolvem todos os problemas, mas mostram à população o impulso oficial de tentar melhorar o atendimento, especialmente às camadas mais pobres. Juntamente com seguidas elevações salariais, tais fatores geraram sólidos apoios ao governo. Hoje Chávez tem uma popularidade semelhante à que apresentou quando de sua eleição há 13 anos: cerca de 60%. Isso faz dele o grande favorito para a disputa presidencial de outubro.
Batalha maior que o golpe
Uma década depois, Chávez enfrenta uma batalha, do ponto de vista pessoal, maior que o golpe. Poucos sabem a extensão real do câncer que foi anunciado há alguns meses. Trata-se de um drama pessoal e de uma incógnita política.
A doença evidenciou algo que visível há tempos. Chávez não tem substituto. Isso se dá não apenas por força de suas capacidades como líder e formulador político, mas especialmente porque ninguém, entre governo e aliados, chega perto de sua legitimidade diante da população.
Os motivos são variados e complexos. Num largo espectro, a crise dos anos 1980-90 dizimou lideranças até mesmo na oposição. Nos anos Chávez, com as forças conservadoras conhecendo inédito isolamento popular, não se formaram novos quadros.
Do lado governamental, a exuberante liderança do presidente inibe o aparecimento de dirigentes com estatura para uma disputa nacional de fôlego.
Tudo isso cria uma tensão irrefreável para os próximos meses. E um terreno fértil para boatos na imprensa, que está mais interessada em seguir desqualificando Chávez. Num cenário desses, o melhor a fazer é torcer para que ninguém se lembre das vergonhosas manchetes que estampou naqueles dias críticos.
Mas é difícil ignorar um passado tão estridente.
Gilberto Maringoni é Jornalista, historiador e autor de A Venezuela que se inventa – Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004) e A revolução venezuelana (Editora Unesp, 2009).