Faltava uma voz de sabedoria e serenidade que ecoasse na Europa tumultuada e perplexa. Ressurgiu então o grande líder socialista Mário Soares, com o denso juízo formado pela sua acuidade e sua sensibilidade, e mais sua vivência e sua respeitabilidade. Sua palavra chegou na hora certa e iluminou a obscuridade: “É absurdo que sejam os mercados a mandar e os Estados só obedecer”; “É preciso uma mudança de paradigma, uma ruptura”. Faltava este dito clarividente para sacudir todo um continente submetido à ordem da especulação. Um continente que há 50 anos realizava a experiência mais promissora de toda a história da democracia, a social-democracia, traída pelos partidos socialistas, que se renderam, ou se venderam ao mercado neoliberal.

O povo da França (e o da Dinamarca) já havia manifestado sua discordância com essas regras ditadas pela ciência capitalista, quando recusou em plebiscito o projeto de Constituição Européia que consagrava o neoliberalismo. Mesmo sem ser constitucionalizado, o sistema entretanto ganhou vigência plena e arrasadora. E a Europa atolou-se na especulação financeira e em dívidas irresgatáveis criadas pelo clube dos banqueiros. Tony Judt, com sua extraordinária percepção de historiador, contou essa história no seu derradeiro livro: “O mal ronda a terra”.

Cedo ao impulso de citá-lo quase ao acaso: “ A desigualdade é corrosiva; faz com que as sociedades apodreçam por dentro”(pag30). “A disposição de admirar, e quase idolatrar, os ricos e poderosos, e desprezar as pessoas de condições precárias e pobres…é…a maior causa universal da corrupção dos nossos sentimentos morais”(citação de Adam Smith, em 1759, em The theory of moral sentiments), na pag. 34; “Em muitos aspectos o consenso social-democrata representa o maior progresso já testemunhado pela história.

Nunca antes tantas pessoas tiveram tantas oportunidades”, citação de Ralf Dahrendorf, na pag. 80. Bem, poderia citar o livro inteiro.

A Europa conhece então o caminho de volta; talvez tenha de enfrentar uns dez anos de asperezas e aflições mas seus povos não perderam de todo a lembrança do aroma socialista que soprou no continente durante um quarto de século depois da guerra devastadora contra o nazifascismo. Willy Brandt, Olof Palme, François Miterrand, Enrico Berlinguer e Norberto Bobbio já desapareceram mas Mário Soares sobrevive e fala, e sua fala ecoa com a grandeza da sua biografia.

Nesta via de retorno à socialdemocracia, a Europa pode muito bem encontrar duas das grandes realizações prometidas pelo novo século: a democracia  participativa, com o chamamento permanente do povo para as decisões políticas essenciais e a redução da jornada de trabalho com a eliminação da calamidade do desemprego, um enorme passo em direção à humanização e ao socialismo.

Socialismo do outro lado do Atlântico é expressão de baixo calão, mas surpreendentemente lá surge pela primeira vez um movimento jovem, forte e persistente, que abomina a injustiça e assinala a inconformidade com o sistema: quer ocupar o coração do capitalismo, Wall Street. Ocupar para quê? Mudar o sistema em que direção? Onde encontrar a Justiça? Não sei se eles sabem mas é fato que crescem e não esmorecem; e usam um lema instigante: “A Revolução se faz em casa”.

É preciso ter sentidos embotados para não ver que o paradigma está mudando, no sentido indicado por Mário Soares, em direção à humanização e ao socialismo, em direção à paz administrada pela ONU. No mundo islâmico, em que viceja a Primavera Árabe, a cultura é diferente e o caminho, obviamente também o é. Nas duas eleições realizadas depois da deposição das ditaduras, Tunísia e Egito escolhem partidos religiosos moderados, mostrando a vontade política da espiritualidade ajustada à democracia.

Entenda-se: querem o que o Ocidente tem de humanizante, o modelo político, a democracia; e rejeitam o que tem de domonizante, o consumismo capitalista, o hedonismo materialista.

E a América do Sul tem uma posição privilegiada no momento: Viveu também a experiência devastadora do mercadismo mas despertou antes, e tem uma experiência sólida e bem sucedida de intervencionismo, conhece a direção do percurso “hacia el socialismo”. Tem ainda debilidades que a fazem dependente em muitos aspectos das grandes economias, e vai sofrer com a crise. Mas, com uma certa unidade de encaminhamento político, tem já massa crítica para desencadear o  processo mundial de renovação dos paradigmas. Espero poder observar e vivenciar este novo florescimento político.