Como a campanha das “Diretas Já” chegou às escolas
1. Depoimento de Marta Wendel Abramo*
Minha memória do movimento pelas diretas não é nada linear ou precisa. Ainda assim, guardo gravados muito fortemente na lembrança os episódios que acompanhei de perto.
Eu tinha 14 anos e estava no Colegial, em uma escola tida como liberal e tolerante (senão incentivadora) para com as reivindicações e manifestações espontâneas dos alunos. Certamente o assunto das diretas já era tema de conversa na minha casa – afinal eu passara toda minha infância esperando a Ditadura cair (e fazendo as mais absurdas imagens literais do tão esperado episódio). Também foi com meus pais e irmãos que participei do primeiro ato: o comício do Pacaembu, do qual não guardei na memória muitos detalhes; contudo, lembro com bastante nitidez do clima festivo e esperançoso das pessoas.
Mas diferentemente das minhas outras "participações políticas" da infância, quando acompanhava meus pais em comícios, passeatas, congressos e reuniões e me divertia com assuntos paralelos – ou exigia em troca um dia de passeio – pela primeira vez na campanha das diretas meu envolvimento ganhou autonomia. O assunto chegou na escola e tomou conta das conversas do recreio, dos intervalos das aulas, do lanche da cantina. Em pouco tempo, a questão foi envolvendo os alunos e naturalmente brotou um sentimento entre nós de que deveríamos participar daquilo. Foram tardes e tardes no pátio da escola ou na casa de um dos colegas pintando faixas e cartazes, combinando as idas às passeatas e – a parte mais difícil – decorando a letra do Hino Nacional que alguém havia distribuído em cópias mimeografadas. E nós, que havíamos aprendido a não idolatrar os símbolos nacionais …
Na última passeata, a grande maioria dos alunos havia aderido ao movimento e então nos reunimos na escola e de lá saímos, com nossas faixas e cartazes, como um grupo independente. Lembro de haver cruzado com meus pais e irmãos e de ter só então tido essa revelação: que estava ali por minhas próprias pernas e convicções!.
Hoje fico muito feliz com isso, pois cantar o Hino Nacional junto com aquela multidão que se aglomerava no Vale do Anhangabaú foi, sem dúvida, um dos momentos mais bonitos e emocionantes que vivi.
*Marta Wendel Abramo – advogada
2. Depoimento de Lúcia Souza e Silva**
Minha memória pode ser muito falha quanto aos detalhes da campanha das Diretas. Mas eu sei que era uma época em que andávamos especialmente engajadas nesses acontecimentos, até por influência do ambiente equipano* em que vivíamos.
A diferença, dessa vez, era que, ao contrário do que acontecia nas demais manifestações, o movimento pelas diretas era uma unanimidade, em torno da qual aglutinava-se a esmagadora maioria de pessoas como nós. Nesse momento, toda e qualquer incompatibilidade política desaparecia e abria espaço à defesa dessa grande causa em comum.
Na escola, me lembro da suspensão temporária das atividades curriculares para que os alunos pudessem se preparar para os principais acontecimentos do movimento – como o comício que reuniu 1 milhão de pessoas na Praça da Sé. Fiquei especialmente impressionada com o fato, e senti na pele a importância e a escala adquiridas pelo movimento – suspensão de aulas era coisa séria!
A participação nos eventos só reforçava essa sensação. A cada passeata, carreata ou comício, percebíamos o envolvimento crescente de pessoas, e vibrávamos de emoção ao misturar-nos ás multidões cada vez maiores. Minha glória pessoal foi o dia em que consegui ir a um desses eventos na companhia de meus pais. Embora politicamente esclarecidos, eles haviam herdado do período da ditadura um temor considerável de manifestações públicas. Sua participação em tais episódios representava, para mim, o alastramento irreversível da campanha.
No dia da votação pelas diretas, um telefone instalado em pleno palanque passava ao vivo as informações do Congresso para a praça pública. Em alto e bom som, escutávamos o voto de cada um dos parlamentares, xingando ou enaltecendo a sua participação na votação. Nem é preciso dizer qual foi a reação do público ao ouvir o voto do Sr. Paulo Maluf. E, na seqüência de cada um dos votos, abríamos os pulmões ao responder cada vez mais alto à incessante pergunta de Osmar Santos: "Para quando vocês querem eleições diretas, meu povo?" "Jááááááá´!"
*equipano = aluno do Colégio Equipe
**Lúcia Souza e Silva – arquiteta
Publicado no portal da Fundação em 2003