A militarização da USP
Na Idade Média, era uma enorme conquista quando uma cidade obtinha uma universidade. Comumente, com ela, vinha o direito a uma ampla autonomia quando à autocracia do príncipe. Tratava-se de liberdade considerada indispensável para o novo templo do saber. Devido a isso, o campus universitário medieval possuía sua polícia própria e julgava seus alunos, funcionários, professores.
Aprendi isso, no curso de História da UCL, na Bélgica, onde fui recebido de braços abertos, em 1974, fugido da ditadura brasileira e chilena. No Brasil de então, não tinha nada daquilo. A polícia e o exército entravam, revistavam, espancavam, prendiam, torturavam e, até mesmo, matavam professores, funcionários e sobretudo alunos que não se rendiam ao tacão da ditadura cívico-militar.
Uma aluna sul-rio-grandense, mestranda em História da USP, escreveu-me um longo e-mail, pedindo-me quase desesperada solidariedade para com ela e seus colegas daquela universidade.
A carta da estudante registra a angústia de jovens que se assustam com a regressão dos espaços de liberdade conquistados quando da versão de redemocratização brasileira, onde os criminosos civis e militares de 1964-1985 seguiram em seus postos ou com suas pensões e aposentadorias, homenageados com nomes de praças, avenidas, ruas, ao morrerem.
A aluna relata a degradação das condições de convivência, de trabalho e de estudo naquela instituição, a mais destacada do Brasil. Lembra que há muito se instauram processos administrativos contra alunos, funcionários e professores, eventuais motivos de demissão e de expulsão, por expressarem em manifestos, panfletos, ocupações, etc. suas idéias contra a política universitária dos governadores de São Paulo e dos dirigentes máximos daquela instituição.
Há cerca de dois meses, lembra a jovem, o senhor reitor lançou pelo retrete a autonomia universitária e escancarou o campus à Polícia Militar, sub a justificativa de reprimir a criminalidade.
Desde então, a Polícia Militar reina no campus – abordando, inquirindo, revistando funcionários, professores e sobretudo alunos. Certamente os principais objetos desses atos de intimidação são os alunos e alunas mais agitados ou de cabelo, roupas, adereços e comportamentos tidos como estranhos!
Conhecemos o resultado da política liberticida do senhor reitor – em 27 de outubro, alunos foram revistados por policiais militares, como sempre, na frente da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde se reúnem, tradicionalmente, os universitários suspeitos de pensarem em demasia!
A revista deu resultado. Três estudantes de Geografia foram encontrados com alguns baseados, motivos de pronta prisão e imediata resposta dos seus colegas, todos pertinentemente surrados, pois universitárias e universitários comumente magricelos, armados com canetas, livros e laptops, pouco podem contra os parrudos PM, com os seus tradicionais instrumento de trabalho – cassetetes, revólveres, escopetas, bombasdissuasivas …
A resposta previsível dos estudantes foi uma festa para a grande mídia conservadora, sobretudo televisiva. A ocupação do prédio da FFLCH e depois da Reitoria, por estudantes encapuzados – ninguém quer ser objeto de processo e eventual expulsão – foi mostrada como a ação de bárbaros desordeiros no templo do conhecimento!
Isolada, sob o silêncio dos grandes e pequenos partidos, a garotada está sendo obrigada a retroceder. Até segunda-feira, tem que entregar o prédio. Se não, vão conhecer pancadaria grande, prisões e os pertinentes processos. Não conseguem, nem mesmo, apresentar suas mais do que justas reivindicações: fins dos processos contra estudantes e servidores e a interdição do Campus à Polícia Militar. Por razões óbvias não registro o nome da autora da carta. Com minha total solidariedade ao movimento, faço uma derradeira reflexão. Se, na Idade Média, um senhor reitor atirasse pela janela do seu palácio a valiosa autonomia conquistada pela cidade, chamando a polícia para atuar livremente no campus, certamente seria destituído por seus pares e, possivelmente, mandado para a masmorra da Universidade, para refletir melhor sobre sua vontade de subserviência ao príncipe! Coisas da Idade Média.
*Mário Maestri é doutor em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS.