A esquerda e a necessária repolitização do discurso contra a corrupção
O tema da corrupção tem se constituído na bandeira central da direita brasileira na atualidade, em uma grande “Santa Aliança” que agrega liberais, neoliberais, reacionários fascistas, anticomunistas et caterva. O que não é propriamente nenhuma novidade, pois em vários momentos de nossa história a direita sempre recorreu ao moralismo como principal emblema de seu combate a esquerda e as forças populares. Foi assim com o governo Vargas denominado pela mesma como “mar de lama”, como também no Golpe de 64 quando as vivandeiras civis e empresariais em nome dos “bons costumes” e dos sacrossantos “valores cristãos e ocidentais” destituíram o governo legítimo de João Goulart.
Estratégia moralista da direita que teve lá seus êxitos práticos, ao galvanizar apoios de certos segmentos da classe média para seus empreendimentos e objetivos de conquista do poder. Êxito este que em grande medida se deve – nos últimos anos – a ampla associação entre a ação da direita e setores expressivos e majoritários da imprensa, unidos na defesa dos fundamentos neoliberais do mercado. Mesmo discurso, aliás, adotado pela direita pelos nazistas contra a “República de Weimar” na Alemanha nos anos 20, por Franco contra os republicanos na Espanha nos anos 30 ou por Pinochet e seus gorilas amestrados contra o governo legítimo e popular de Salvador Allende nos anos 70 e assim por diante.
Na verdade a retórica do moralismo abstrato esgrimido pela direita tem um intuito claro e insofismável, o de buscar afastar a dinâmica da política de seu campo específico, o enfrentamento dos diversos interesses que conformam o horizonte concreto das sociedades de classe capitalistas, conduzindo-a ao terreno da ideologia “universalista” da ética, dos princípios metafísicos da liberdade e da igualdade formais gerados no interior da ordem burguesa. Pois é com base em uma leitura formalista da igualdade e da liberdade e de sua “natural” projeção na propriedade privada enquanto espaço de objetivação da personalidade individual que se estrutura o discurso hegemônico da ética, da moral e do direito da modernidade burguesa. Nesse sentido o modelo ético promovido pelo liberalismo ou pelas correntes autoritaristas da política, não obstante suas diferenças internas apontam para um ponto comum, a dissolução da política na pré-compreensão individualista das relações humanas, inclusive do dever-ser ético. A conduta ética é compreendida como algo que decorre das “boas intenções”, da natureza intrínseca de cada pessoa, e não das relações sociais dominantes ou das estruturas de poder institucionalizadas. Ser corrupto ou afastar-se da ética para os defensores da cosmovisão burguesa de mundo significa postular qualquer conduta distinta da tábua de valores privatista que a cinzela. Não à toa que diante das lutas sociais, dos processos mobilizatórios “dos de baixo” ou de qualquer demanda coletiva, o sistema reage atribuindo-lhes um caráter subversivo, lesivo a ordem e aos valores da ética e da “civilização”.
Na concepção liberal a corrupção decorre da presença artificial da política na vida social em substituição a “naturalidade” do mercado e da presumida espontaneidade de suas demandas e interesses. O Estado deve se restringir a atuar quando chamado buscando satisfazer os direitos individuais em caso de sua expressa violação, mas nunca, segundo os liberais, na consecução da política e na reestruturação das relações de poder e da sociedade. Daí nasceria a corrupção, da imposição externa, heterônoma do Estado e de seus “tentáculos” sobre o espaço natural da troca de interesses e de produtos organizado em torno do mercado, como, aliás, predicam os neoliberais da Casa das Garças no Brasil em Seminário recente tendo a frente seus ideólogo maior, Fernando Henrique Cardoso.
Contudo, tal retórica contra a corrupção tem evidentes fragilidades, sérios problemas de credibilidade, pois é da essência da ordem capitalista a violação sistemática da vida, da uniformização massificadora do indivíduo e da mercantilização de tudo em nome do grande Moloch, o dinheiro. Daí a insustentabilidade do discurso da ética reivindicado pelos liberais e autoritários da direita, dada sua intrínseca desumanidade, especialmente, na América Latina e no Brasil, onde a direta patrocinou por décadas políticas de subalternização colonial e de desigualação social, política e cultural das maiorias trabalhadoras. Um breve exame de nossa história do período monárquico, passando pela República Velha até os dias de hoje nos revelam a ação concentradora de renda, de poder, além das inúmeras iniquidades, fisiologismos e corrupção geradas pelo nosso modelo de capitalismo periférico e dependente. Das chagas do escravismo às dores lancinantes de um assalariamento precarizado o que assistimos em nossa história é a quase omnipresença de relações de subcidadania em relação ao povo brasileiro em dissonância a qualidade de sobrecidadania imputado aos ricos desse país.
A fúria inquisitória da oposição liberal-conservadora liderada pela grande mídia (principal partido de oposição), pelo PSDB, DEM e PPS tem óbvios pés-de-barro, afinal de contas foram estes segmentos os responsáveis pela imposição de uma nova Era Neoliberal de castração de direitos fundamentais, da criminalização dos movimentos sociais e pelo estabelecimento de relações incestuosas, francamente promíscuas entre setor privado – nacional e internacional – e o aparato do Estado. Aceitar passivamente o discurso desses segmentos sem opor um amplo movimento de contestação de seus pressupostos é um imperdoável erro da esquerda brasileira, mais precisamente do Partido dos Trabalhadores como a mais importante organização de esquerda da América Latina.
Erro do PT que decorre da sua assimilação gradativa à ordem, à lógica eleitoralista da “pequena política”, à aritmética da governabilidade que transforma nosso projeto estratégico socialista em um conjunto de movimentos táticos esparsos de obtenção de maiorias eventuais para votar ou aprovar medidas isoladas de nosso governo. Claro que a governabilidade é importante, inegável, mas não pode circunscrever nossa ação mais longa, de perspectiva histórica, de transformação profunda, radical das relações sociais, políticas e culturais a que nos propomos quando da fundação do Partido dos Trabalhadores na década de 80. Além do nosso encapsulamento posterior ao episódio denominado de “Mensalão” e seu tratamento insatisfatório pelas instâncias dirigentes do PT do sério problema da absorção de muitos de nossos quadros ao pragmatismo do sistema.
Precisamos urgentemente sair da defensiva, assumir protagonismo no debate sobre a corrupção, suas causas e motivações, revelando que sua gênese deflui da captura do Estado pelas tendências privatistas inscritas no capitalismo, assim como, do processo concentracionário de renda e poder historicamente produzido pela direita e suas políticas anti-sociais. Com que autoridade a direita tucana e seus sócios podem protestar contra corrupção, se foram exatamente eles que entregaram o Estado e suas instituições a sanha mafiosa das corporações empresariais? Como falar de corrupção quem desprezou a vida de milhões, ignorando as políticas de combate à fome, às desigualdades sociais e regionais? Como ser favorável a moralidade quando esses partidos transformaram a política, a educação e a cultura em um mercado persa, onde tudo vale? Como serem consequentes com a corrupção se colocaram o Brasil genuflexo perante os EUA e os demais centros imperialistas?
O discurso consequente da anticorrupção só pode ser feito por quem esteve do lado da transparência do poder, da descentralização política, do fornecimento de meios de fiscalização do Estado e de suas políticas, do fortalecimento das instituições como a Receita e a Polícia Federal através do qual se encetou um sólido combate a elisão fiscal e ao crime organizado- dentro e fora do Estado – e, principalmente, por quem buscou reconstruir os fundamentos cívicos da sociabilidade, apostando na participação da Sociedade Civil, dos movimentos sociais, das ONGs, da intelectualidade, etc. Daí a importância da apropriação pelo Partido dos Trabalhadores e da esquerda brasileira de nossa história mediata e imediata para deflagrar um debate sério e indispensável sobre a corrupção no Brasil. Em que mostremos pedagogicamente os responsáveis pela mesma, o que fizemos, os limites do sistema capitalista e de sua inerente falta de ética, e de como a radicalização da democracia tende ao socialismo, única alternativa universalista frente aos desafios de uma ética política generosa e emancipatória porquê radicalmente humanista e desalienadora. Uma abordagem da corrupção que a exemplo do proposto por Gramsci a vincule a disputa contra-hegemônica de valores com o capitalismo brasileiro e seus representantes liberais-conservadores no marco da construção de novos fundamentos ético-políticos.
Newton de Menezes Albuquerque Doutor em Direito, leciona na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Universidade de Fortaleza (Unifor). É procurador administrativo do município de Fortaleza e é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo