A modernidade contemporânea tem como um de seus motes estruturantes o discurso da racionalidade e junto com ele, o da supremacia da democracia e dos direitos humanos. Principialidade da democracia e dos direitos humanos que veio a tona com a dramática experiência do “Mal Absoluto” (Hannah Arendt) e com a disrupção política advinda das lutas em favor da emancipação colonial encetada pelos países africanos do pós-guerra, afora é claro, as lutas desencadeadas na América Latina contra os regimes de exceção instaurados nos anos 60.  

Neste sentido é positiva a força adquirida por esses valores civilizatórios, na medida em que materializam as reivindicações provenientes do movimento operário, bem como, dos movimentos sociais e das lutas civis por mais igualdade e liberdade confluídos para o estuário normativo e paradigmático do Estado Democrático de Direito. Ou seja, a omnipresença semântica do discurso dos direitos humanos é resultado da evolução positiva das demandas e conquistas obtida pelas maiorias da sociedade civil contra os poderes particularistas da economia e da vontade unipessoal dos governantes. Direitos humanos que devem ser compreendidos em toda sua extensão de garantias e aspirações, desde os direitos de matiz individual, eminentemente ligados à ascensão da burguesia liberal, até os direitos sociais, culturais e difusos entronizados pela pressão dos sujeitos coletivos oriundos do século XX.

A construção da ONU, o fortalecimento dos diversos organismos internacionais, a tessitura de instâncias jurisdicionais internacionais e a legitimação político-jurídica de novos atores apontam para um repensar das tradicionais categorias da realidade.  Cada vez mais observamos o íntimo enredar das estruturas nacionais e internacionais conformando uma compreensão monista dos conflitos e da interpretação do direito. Nova hermenêutica do direito que ao atribuir maior relevância as normas internacionais, o faz com particular intensidade em relação aquelas com conteúdo relacionado aos direitos humanos. O que resulta no reconhecimento do caráter imperativo, de jus cogens das declarações, convenções, pactos, protocolos e demais instrumentos normativos dos direitos humanos, acima, inclusive,  da Constituição e da legislação ordinária de boa parte dos países democráticos. O que não acontece ainda no Brasil, dada nossa tradição de monismo nacionalista, um tanto arredio a recepção devida das normas internacionais de direitos humanos (apesar dos inegáveis avanços).

Contudo, tal cristalização dos direitos humanos como vetor interpretativo do direito e da política não foi capaz de balizar as ações efetivas dos principais atores que compõem a sociedade internacional, mormente dos EUA e de outros estados imperialistas.  Os acontecimentos recentes, desde o recrudescimento da ocupação do Iraque e do Afeganistão até a abertura de inauditos fronts de conflito na Líbia assinalam o aprofundamento da lógica bélica de domínio territorial clássica do imperialismo. Lógica esta que dimana da forma Capital-Imperialista que o capitalismo em sua fase superior, financeira- segundo Lênin – assumiu.  

A brutal assimetria entre os diversos Estados, a persistência do unilateralismo americano e a emergência das identidades culturais particulares em fricção contra a padronização e uniformização das mentalidades pós-modernas contribuem decisivamente para a fragilização da ordem internacional. Aliás, a estruturação desigual das relações entre povos e culturas no mundo sempre foi um problema, basta que se examine como se deu a instituição da sociedade internacional nos seus pódromos, “ideologicamente” e “etnicamente” apartada dos chamados “países incivilizados” e circunscrita exclusivamente aos países europeus e aos EUA. Na prática o que assistimos e a ausência de acatamento dos países centrais aos valores da democracia e dos direitos humanos, não só nos seus vínculos com os povos em desenvolvimento, mas também no apelo recorrente aos instrumentos do Estado de Exceção como meio de contingenciamento da liberdade e de afirmação da segurança e da estabilidade internacionais.  

Como bem flagram Zizek e Agambem vivemos hoje em pleno Estado de Exceção planetário, onde a prepotência da força, da “doutrina do ataque preventivo”, da naturalização da tortura, convivem com a restrição a liberdade de imprensa e dos protestos cívicos, agora encarados como anti-funcionais ao sistema. A ordem capitalista em seu furor destrutivo não consegue mais existir sem recorrer a medidas arbitrárias, extraordinárias, não-normativas, e por isso mesmo afrontosas a dinâmica do Estado de Direito e de suas pautas “universalistas”. A invasividade do poder econômico do marcado traduzido em força ideológica plasma-se no neoliberalismo e em sua concepção anti-política da sociedade, conspurcando desta forma a autonomia relativa da instância jurídica na positivação dos direitos na modernidade.  

Portanto, o que vimos atualmente é uma apropriação semântica dos direitos humanos pelo imperialismo visando usá-lo para seus propósitos anti-humanistas e antidemocráticos,  como arma de legitimação de sua estratégica bélica de expansionismo físico  e de reprodução ampliada e abstrata do Capital. Semântica dos direitos humanos que tanto pode ser utilizado para patrocinar guerras (Iraque, Afeganistão e Líbia), como para eliminar os inimigos dos EUA sem direito a julgamento público, ao contraditório e a ampla defesa, mesmo que tais garantias sejam conhecidas como elementos indissociáveis do núcleo duro do Estado de Direito. “Direitos Humanos que são usados como álibi para ação dos EUA e do imperialismo francês e britânico para ‘acossar” seus eventuais adversários que se contraponham aos seus desejos e caprichos. Precisamos urgentemente nos reapossar semântica e politicamente da bandeira dos direitos humanos e da democracia, limpando-as do sangue que se lhe foi espargido pelos adeptos da ordem neoliberal-imperialista.  É tarefa de todos os socialistas demonstrar pedagogicamente aos povos que a “invenção” da democracia e do espectro universal dos direitos humanos não foi dos liberais, nem de seus aparentados ideológicos, mas do povo oprimido, sequioso de direitos e de espaços de reconhecimento coletivo mobilizado pela energia vital do movimento operário. Pois somente a partir “dos de baixo” se criam as bases histórico-concretas para construção de uma verdadeira universalidade democrática, de acatamento aos direitos humanos e de alargamento processual e sem fim da cidadania!

*Newton de Menezes Albuquerque, doutor em Direito, leciona na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Universidade de Fortaleza (Unifor), é procurador administrativo do município de Fortaleza e integra o Conselho Curador da FPA.