Desde ontem os dois maiores países da região estão no mesmo patamar político: o modelo sulamericano de reforma com inclusão que já havia conquistado um terceiro turno no Brasil ganhou seu terceiro mandato na Argentina nas mãos de Cristina Fernández de Kirchner. A presidenta conseguiu não só a reeleição como também a consolidação de sua liderança política à frente de uma aliança social e política heterogênea que a brindou com o maior triunfo da história argentina. Cristina só ficou atrás, em votos, do resultado obtido por Juan Perón em 1952 e 1973. Até ontem, o segundo era Raúl Alfonsin, que obteve 52% dos votos em 1983.

Elisa Carrió, maior crítica individual do kirchnerismo, ficou em último lugar, atrás da Frente de Esquerda encabeçada por Jorge Altamira. “Encabeçamos a resistência a Cristina Kirchner e seu projeto mentiroso e mau para a nação”, disse Carrió, observando que a liderança da oposição passou pelos votos a Hermes Binner. Ricardo Alfonsín perdeu o segundo lugar que havia conquistado nas primárias de 14 de agosto e foi derrotado inclusive na sua terra, Chascomús.

À noite, Cristina se deu o prazer de dançar Arde a cidade na Praça de Maio, a poucos metros de onde, há quase um ano, foi velador Néstor Kirchner. Antes, fez uma saudação não recomendada para melancólicos: “Quero agradecer a essa multidão de jovens argentinos que voltou a recuperar a Praça de Maio. Esse é um momento histórico superador daqueles momentos. Porque essa praça foi palco de momentos de alegria, mas também de desencontros e enfrentamentos. Eu quero celebrar o fato de essa juventude vir para a praça e levantar as bandeiras com alegria e não com ódio”. E, em tom de chefe política, fez uma recomendação:

“Peço que se organizem nas frentes sociais, nas frentes estudantis, para defender a pátria e os interesses dos mais fracos, para que ninguém possa retirar deles o que já conseguimos”.

A intensidade da onda eleitoral pode ser medida através de um triunfo em particular: em Mendoza, a província dos radicais Julio Cobos e Roberto Iglesias, Cristina ganhou por mais de 50% e garantiu a vitória do candidato peronista no distrito. Também indicou que, do ponto de vista político, está cicatrizada a crise política da resolução 125 (objeto do conflito com o setor ruralista em 2008). E presidenta ganhou também outros dois grandes distritos: Santa Fé e Córdoba. Nestes dois distritos, a Frente Ampla Progressista (FAP) foi a segunda força. Em Santa Fé, Binner ficou muito próximo de Cristina, mas não conseguiu ganhar no território que hoje governa.

Diferentemente de 2007, a presidenta ganhou em todos os grandes centros urbanos da Argentina, menos Rosário: Cidade Autônoma de Buenos Aires, Mendoza, Bahía Blanca, Mar del Plata e Córdoba. É uma das razões pelas quais obteve uns 10% a mais de votos. Entre as capitais, o kirchnerismo recuperou Rio Gallegos. E, obviamente, arrasou na região metropolitana da capital. Em Matanza, Cristina obteve uma vitória de 67 a 10, em Florencio Varela, de 73 a 7. A nota distinta na Grande Buenos Aires foi dada por Jorge Macri. O primo do chefe do governo portenho arrebatou Vicente López de Enrique “O Japonês” García, um radical aliado do governo. Com a derrota de García e a anterior do radicalismo rionegrino, o radical aliado do governo nacional que ficou em posição mais sólida foi o governador de Santiago do Estero, Gerardo Zamora.

E diferentemente de 2009, ganhou a província de Buenos Aires. O ganhador naquele ano, frente a Néstor Kirchner, Francisco de Narvázes, ontem conseguiu um longínquo segundo lugar atrás de Daniel Scioli. O governador conseguiu a reeleição por uma margem superior a obtida por Eduardo Duhalde quando este foi reeleito em 1995. Em seu discurso do Hotel Intercontinental, às dez horas da noite, Cristina agradeceu duas vezes à “querida província de Buenos Aires”. Scioli foi legitimado outra vez, ganhando força na corrida para 2015. Agradeceu in memoriam a Néstor Kirchner e, em seu discurso, não só mencionou Cristina, como também “o companheiro Gabriel Mariotto (vice), que sem dúvida alguma vai me ajudar a fazer muitos gols na província”. Uma nova figura cresce também na construção política futura do oficialismo: a do ministro da Economia Amado Boudou, desde ontem vice-presidente eleito.

No mesmo discurso de domingo à noite, Cristina disse: “Eu não quero mais nada”. Explicou que já foi eleita como primeira mulher à presidência e reeleita para o mesmo cargo. Foi um modo de afirmar que não buscará uma nova reeleição em 2015. O que não significa que abrirá mão do posto de liderança política: “Por compreensão histórica e por vontade popular contem comigo para aprofundar esse projeto de país”.

O tom presidencial do discurso foi de convocatória para “os 40 milhões de argentinos”.

A referência aos grandes meios de comunicação foi elíptica e dirigida, na verdade, aos dirigentes políticos. Quando Cristina resgatou a figura de Kirchner disse que o fazia como companheira de militância e não como viúva e que estava recordando “um quadro político”. Foi então que destacou a importância da “vontade, e não do voluntarismo, unida à convicção” e disse que era preciso terminar com o hábito de “pedir permissão a alguém para ver o que se pode dizer em troca de ganhar cinco minutos mais ou algumas linhas”. “O importante”, acrescentou a presidenta, “é saber ler os olhos de milhões de argentinos, porque aí é que estão as coisas que faltam e também o quanto foi feito desde 2003”.

Diante de enormes imagens do próprio Kirchner, de Eva e de Perón, a presidenta agradeceu aos argentinos, a todos os partidos e, logo em seguida, aos sulamericanos. Falou “desta região, nossa casa”.

Contou que a presidenta brasileira, “a companheira Dilma Rousseff”, lhe dirigiu “palavras muito doces”. Foi “um telefonema amigo, regional, solidário, fraternal”. Também mencionou os nomes de Pepe (Mujica), Hugo (Chávez) e Juan Manuel (Santos). Explicou que o presidente da Colômbia “sempre a faz lembrar de Néstor”, uma referência à mediação de Kirchner e da Unasul na relação entre Colômbia e Venezuela em agosto do ano passado. O chileno Sebastian Piñera foi vaiado pelo auditório, ainda que não tanto como Julio Cobos e Mauricio Macri. Nos três casos, Cristina pediu que a vaia fosse interrompida. “Miudezas não”, disse. “Na vitória, temos que ser grandes. Generosos. E mais gratos que nunca”.

A figura de Kirchner apareceu mais uma vez. “Hoje é um dia especial e os sentimentos se misturam”, disse Cristina antes de abraçar seu filho Máximo. E contou: “Quero falar sinceramente. Em 2009, se ele não tivesse se colocado na linha de frente, nossa derrota na província de Buenos Aires teria um efeito terrível. Esse homem colocou tudo e um pouco mais. Jogava-se cada instante por inteiro como se fosse a última vez”.

A heterogeneidade da coalizão de governo, confirmada e ampliada ontem em torno da liderança de Cristina, abarca uma ampla gama que em sua extremidade direita inclui governadores eleitos ou reeleitos como o ex-funcionário de inteligência de Duhalde, Carlos Sorio, o ex-sócio do escritório que defende o Engenho Ledesma, Eduardo Fellner, e o governador de uma província com assassinatos policiais ainda não resolvidos, como Gildo Insfrán.

A novidade é que o próprio peronismo e essa coalizão política tem na presidenta uma liderança nítida. Se antes da primárias, Cristina pode definir candidaturas distritais, o desafio que pareceu encarar no mencionado discurso da Praça de Maio foi a articulação de um movimento que quer avançar também para além das fileiras do peronista. Por exemplo, em Morón, com 55% dos votos apurados, Novo Encontro, de Martín Sabattella (que obteve 6% em nível provincial), ganhou e segue como primeira força.

“Não discutamos mais os fatos, mas sim como fazer para que a situação melhore”, foi ontem uma das consignas da presidenta.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer