Nas últimas semanas, após o envio ao Congresso do Projeto de Lei Geral para a Copa do Mundo 2014 pelo Governo Federal, surgiu um amplo debate sobre a possível perda de soberania da nação na administração deste evento. Em boa parte das intervenções neste debate observa-se um nível bastante rebaixado, em geral centradas no conceito de que admitir qualquer exigência da FIFA é submeter-se a ser uma colônia estrangeira. Aqui tem-se, na verdade, uma nova etapa do debate que se achava já superado sobre ser benéfica ou não para o Brasil a promoção da Copa.

Há de ser recusada esta simplificação do debate, até porque a nação já decidiu que sediará a Copa do Mundo e busca fazê-lo de forma que deixe um legado positivo para o pais, mas de fato temos que examinar as exigências que a FIFA faz para a realização dos jogos e verificar sua compatibilização com nosso ordenamento jurídico.

Em primeiro lugar, afastemos o velho Complexo de Vira-latas que recorrentemente assola nossa intelectualidade. As exigências que a FIFA fez ao Brasil, mesmo que possamos vir a considerá-las exageradas, não são maiores ou menores, mais ou menos descabidas do aquelas que foram feitas ao Japão, à Alemanha ou à África do Sul. A Copa do Mundo é um evento caro e complexo, e a entidade que o rege tem um sistema bastante padronizado de administrá-lo.

Tanto é assim que são comuns as alterações legislativas no país anfitrião, ainda que provisórias, para adequar-se aos padrões da FIFA. A Alemanha modificou o horário de expediente dos funcionários (inclusive com decretação de pontos facultativos…), impôs restrições à comercialização de produtos que não eram de patrocinadores do evento e liberalizou sua legislação de vendas de cerveja nos estádios. A África do Sul abriu suas rígidas leis de imigração e de trabalho de estrangeiros e permitiu a propaganda de bebidas alcoólicas que era vedada.

Um debate racional no tema, portanto, não pode partir do tudo-ou-nada, tipo “ou não cedemos à FIFA ou somos uma república de bananas”. Cada exigência em particular haverá de ser examinada e comparada com nossa legislação, em função dos objetivos daquela e desta, para verificar se poderemos vir, ainda que provisoriamente, a aceitá-las.

Exemplifiquemos. Creio ser inaceitável a proposta de aumentar a pena para a pirataria de produtos FIFA. A fixação de penas num ordenamento jurídico pressupõe uma determinada compreensão moral e política acerca da periculosidade do comportamento envolvido, etc. Não vejo como ser possível considerar que piratear um produto FIFA seja mais perigoso ou danoso para sociedade brasileira do que , digamos, piratear um produto Apple, para fazer uma rápida homenagem ao gênio recentemente falecido, Steve Jobs.

Mas , ao contrário, não vejo qualquer problema em flexibilizar as regras de venda de cerveja nos estádios durante o período da Copa. A proibição de venda de bebidas nos estádios não advém de uma compreensão moral sobre os malefícios do álcool, mas sim da preocupação com a segurança durante os jogos. Ora, durante a Copa os cuidados com segurança serão imensamente maiores do que durante os jogos do Brasileirão e, principalmente, quase não estão envolvidas paixões diretas nos confrontos. A venda de cerveja nos estádios naqueles 30 dias terá infinitesimal consequência sobre a insegurança nos campos de futebol. Não é à toa, aliás, que as alterações legislativas sobre este tema são comuns nos países anfitriões.

A Copa do Mundo é um mega-evento, que para deixar as consequências positivas na intensidade que desejamos para o pais precisa ser um sucesso também no aspecto organizacional e financeiro. Devemos analisar cada exigência que seus organizadores fizerem para ver quais são aceitáveis para o fim de contribuir para este sucesso e quais infringem valores inegociáveis de nosso ordenamento jurídico. O resto é apostar no fracasso da Copa do Mundo, numa versão atualizada do conhecido quanto-pior-melhor, tão ao gosto de parte de nossas elites.
 

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