A UDN, os IPMs e a mídia brasileira
Logo após o golpe militar de 1964, os "revolucionários", inclusive os de ocasião, aproveitaram o momento de caça às bruxas para eliminar adversários. O primeiro ato institucional cuidava de tirar da arena política os que haviam cometido "crimes de opinião", condenados no rito sumário de uma canetada, de acordo com os humores das autoridades de plantão.
Logo após o golpe militar de 1964, os "revolucionários", inclusive os de ocasião, aproveitaram o momento de caça às bruxas para eliminar adversários. O primeiro ato institucional cuidava de tirar da arena política os que haviam cometido "crimes de opinião", condenados no rito sumário de uma canetada, de acordo com os humores das autoridades de plantão.
Os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) davam conta dos opositores que não podiam ser enquadrados na acusação de subversão: eram tribunais que, simultaneamente, investigavam e condenavam acusados de corrupção. Sem direito à defesa num caso e no outro, os políticos incômodos aos novos donos do poder saíam de cena, pelas listas de cassados publicadas pelo Diário Oficial, ao arbítrio dos militares, e pelos resultados de inquéritos aos quais não tinham acesso nem para saber por que estavam sendo cassados.
A bandeira da anticorrupção tomada pelos militares do braço civil da revolução, a velha UDN, que havia comovido as classes médias, foi consumada pelos IPMs. A presteza da exclusão de "políticos corruptos" [aqui entre aspas porque os processos não foram públicos e eles não tiveram direito à defesa] do cenário por esse mecanismo era um forte apelo às classes que apoiaram o golpe, ideologicamente impregnadas pelo discurso udenista anticorrupção que prevaleceu na oposição a João Goulart, antes dele a Juscelino Kubitschek, antes de ambos a Getúlio Vargas, na falta de uma proposta efetiva que permitisse a essa parcela da elite conquistar o poder pelo voto.
Era, no entanto, uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que satisfazia os anseios de moralização da política da classe média e das elites (o número de punições e a exposição pública dos supostos meliantes conta muito mais para o público conservador do que a justeza da condenação), era um instrumento de reacomodação das forças políticas civis que se dispunham a dar apoio ao poder militar. A delação – tanto política como moral – foi usada para redefinir a geografia do mando local, os grupos preferencialmente perfilados ao novo governo.
O fiscal de quarteirão não era um parceiro a ser desprezado pelo novo regime: foi uma peça importante na reacomodação de forças políticas e deu número, volume amplificado, às supostas apurações de denúncias de corrupção. Quanto maior o número de cassações por desvio de dinheiro público que saíssem no Diário Oficial, mais a imagem de moralização era imprimida ao poder militar, independentemente da culpa efetiva dos punidos. Os inocentes jamais tiveram chances de provar a sua inocência. Mesmo devolvidos à vida pública após 10 anos de cassação (essa era a punição), carregaram por toda a vida a pecha de "cassado por corrupção".
Existiam os casos de políticos notoriamente corruptos, é lógico, mas após 10 anos de cassação eles voltaram à arena eleitoral dispostos a convencer os seus eleitores de que eles haviam sido injustiçados. Tinham mais capacidade para isso do que os punidos injustamente, até porque eram chefes de grupos políticos locais e nesses lugares a política de compadrio se misturava e se aproveitava da corrupção para manter votos em regiões de baixa escolaridade e muita fome.
É tênue a linha que separa o julgamento sumário – pelo Estado ou por instituições que assumem para si o papel de guardiães plenipotenciários da justiça e da verdade – da injustiça. O "jornalismo de denúncia" que se tornou hegemônico na grande imprensa traz o componente de julgamento sumário dos IPMs pós-64 e o elemento propagandístico udenista do pré-64. Assume, ao mesmo tempo, as funções do julgamento e da condenação, partindo do princípio de que, se as instituições não funcionam, ele as substitui. Da mesma forma que o IPM, a punição é a exposição pública. E, assim como os Estados de regimes autoritários, o direito de defesa é suprimido, apesar da formalidade de "ouvir o outro lado"?.
Este é um lado complicado da análise da mídia tradicional porque traz junto o componente moral. Antes de assumir o papel de polícia e juiz ao mesmo tempo, consolidou-se como porta-voz da moral udenista. Hoje, as duas coisas vêm juntas: o discurso de que a política é irremediavelmente corrupta e a posição de que, sem poder na política institucional, já que está na oposição, a mídia pode revestir-se de um poder paralelo e assumir funções punitivas. A discussão é delicada porque, não raro, quem se indispõe contra esse tipo de poder paralelo da imprensa é acusado de conivente com a corrupção, mesmo que a maioria das pessoas que ouve o argumento reconheça que o julgamento da mídia tradicional é ilegítimo, falho e tem um lado, isto é, não é imparcial.
O marketing da moralidade vende muito jornal e revista na classe média, mesmo quando os erros do julgamento sumário pelas páginas da imprensa sejam muitos e evidentes. O udenismo também tem o lado da propaganda política, de desqualificação do processo democrático – não está em questão o fato de que existem políticos corruptos, mas a ideia de que a política é, em si, corrupta.
Diante desse histórico da imprensa brasileira, a notícia da tal Folhaleaks é particulamente preocupante. Em vez de Wikileaks – uma organização não governamental que lida com informações vazadas de governos e as submete ao escrutínio da apuração de veículos para divulgação – é Folhaleaks: um canal aberto a denúncias anônimas, que podem envolver os mais diversos e obscuros interesses por parte de quem denuncia. O risco é que essa forma de captação da informação reinstitua a política da denúncia do fiscal de quarteirão, mas desta vez executada não pelo Estado, mas como demonstração do poder de fazer e desfazer reputações que se autodelegou a mídia.
*Maria Inês Nassif é colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.