As utopias do Século XXI
Sou um homem do século XX, o grande século das ideologias e das hecatombes que, ao final, consagrou a Democracia como sistema político definitivo. O que não quer dizer nem fim da História nem consagração do capitalismo como sistema econômico. Quer dizer, sim, que o socialismo terá de vir pela democracia e não pela revolução armada, quer dizer que Gramsci está de pé e Lênin ultrapassado.
Sou um homem do século XX, o grande século das ideologias e das hecatombes que, ao final, consagrou a Democracia como sistema político definitivo. O que não quer dizer nem fim da História nem consagração do capitalismo como sistema econômico. Quer dizer, sim, que o socialismo terá de vir pela democracia e não pela revolução armada, quer dizer que Gramsci está de pé e Lênin ultrapassado.
A velocidade e a parafernália tecnológica deste novo século são inalcançáveis para mim e cada vez mais me sinto um estranho dentro dele. Entretanto, tenho de pensar nele, necessariamente, porque é o século do Brasil, o século em que o Brasil ingressa na História. Mas não quero pensar em termos de projeções matemáticas dos processos que estão ocorrendo, porque isso os cientistas fazem muito bem; quero deixar correr o devaneio em direção às quimeras que improvavelmente se podem realizar.
A expressão Utopia, forjada por Thomas More, significa não só uma sociedade que não existe nem nunca existiu, mas que também nunca existirá, pela sua incompatibilidade com a natureza humana. Mas More não viu que a natureza humana muda, e mudou substancialmente ao longo dos milênios: exemplo claro é a própria discussão que ele desenvolve sobre a absurda prática cotidiana e banal da Inglaterra do Século XVI de enforcar diariamente ladrões de pequenos furtos. Outro, ainda mais claro, é que em Utopia, a ideal ilha do nunca, ainda havia escravos. Esta consideração fez mudar um pouco o sentido do termo, e hoje Utopia significa algo muito dificilmente realizável, muito improvável, que depende da evolução humana, porém algo
que pode, como um farol ao longe, balizar a ação política em sua direção, como um objetivo que se pode alcançar, quem sabe, num prazo muito longo.
E a Utopia mais brilhante, de luz mais forte e longínqua como a das estrelas, ainda hoje, neste início de milênio, é o Socialismo, o Socialismo com Democracia, implantado através do voto livre, como eu disse acima e como queria o grande líder e pensador João Mangabeira; o voto livre de uma humanidade renovada em relação à de hoje. Dele, entretanto, não vou falar mais do que isso, trata-se de um anelo por demais conhecido, muito referido nesses Correios. Vou falar sobre três outros pontos que, ainda que utópicos, são a meu ver mais palpáveis na extensão dos anos dois mil, estão ao alcance do homem de hoje filosoficamente bem formado. Quero me referir à Paz, à Democracia Participativa e à Redução da Jornada de Trabalho.
Todo mundo sabe o que é paz mundial, todo mundo a deseja e todo mundo nela desacredita. Immanuel Kant há uns duzentos anos previu entretanto que a paz seria alcançada pela exaustão dos povos guerreiros; exaustão física, emocional, psicológica e econômica. E o mundo de hoje não está longe dessa exaustão, Há apenas uma nação guerreira que ainda parece afastada desse limite, que são os Estados Unidos da América. Porque nunca sofreram a devastação dentro do seu território, porque desenvolveram tecnologias de guerra impensáveis, capazes de erigir escudos inexpugnáveis de defesa contra tentativas de agressão e enviar robôs explosivos incrivelmente precisos e eficientes, capazes de arrasar terras e povos de qualquer outra nação do mundo sem risco para os seus próprios guerreiros que de longe acionam essas máquinas diabólicas. É um país que cultiva a tradição imperialista de fazer e vencer guerras, e que há várias décadas mantém a postura de autoridade e polícia do mundo, fundada no seu “destino manifesto”.
Ocorre que este país, com todo o inexpugnável dispositivo de defesa, sofreu uma agressão grave no coração do seu território, e não tem sido bem sucedido nas últimas guerras que detonou; tem tido perdas de vida, embora pequenas, e perdas financeiras que o levaram a um endividamento que pela primeira vez se apresentou ao mundo com algum perigo. Ocorre, principalmente, que este país arrosta dificuldades políticas internas de grande monta, depois de eleger surpreendentemente um presidente que prometia e significava mudanças importantes, e não seria impensável que o seu povo, cansado, dissesse um não definitivo à guerra.
Enfim, a paz mundial, vigiada e controlada pela única organização efetivamente multilateral e potencialmente democrática, que é a ONU, é, neste princípio de século, um anseio que pode se concretizar antes da virada do próximo. É uma utopia, sim, mas com um significado de algo que não é totalmente irrealizável como era a sociedade da ilha descrita por Hitlodeu no livro de Thomas More.
A outra quimera da atualidade é a de um aperfeiçoamento da Democracia capaz de propiciar a realização de governos em que as decisões mais importantes sejam efetivamente tomadas pelo povo, sem a intermediação de instâncias falsamente representativas que se deixam guiar por grandes interesses econômicos. Essa Democracia mais participativa desponta no horizonte com a utilização mais ampla da rapidíssima comunicação eletrônica que começa a produzir de forma não organizada acontecimentos massivos que surpreendem o mundo. Não se pode prever onde e como vai desembocar essa torrente avassaladora, mas o fato é que ela acena fortemente para o chamamento popular a uma participação jamais experimentada nem pensada nas grandes decisões políticas. Esta é uma quimera que é quase uma promessa do século XXI. E é também uma condição necessária, e quase suficiente, para a consecução da paz mundial, já que definitivamente, os povos não amam a guerra.
Fica faltando a terceira utopia que mencionei, a redução significativa da jornada de trabalho, e o espaço deste artigo se esgotou. Mas eu já falei sobre ela em Correios anteriores e voltarei a abordá-la brevemente. Refiro aqui apenas, como curiosidade, já que falamos de utopias, que na ilha quimérica de More, no sec. XVI, quando a produtividade do trabalho era sumamente baixa, a jornada de trabalho era de seis horas diárias. As pessoas passavam muito bem e tinham tempo para aperfeiçoar-se profissional e culturalmente, para dedicarse à família, aos amigos e à religião, para usufruir o lazer e a natureza. Hoje, que o trabalho é feito por robôs, a jornada continua sendo de oito horas.
Bem, faltaram outras quimeras também, que eu não mencionei anteriormente, como a integração sulamericana, muito importante para nós, brasileiros, e como ainda a utopia da cidade sem automóveis, oh, como eu gostaria de falar sobre isso. E muitas outras que não me ocorrem mas que surgiriam copiosamente se abríssemos um grande e amplo debate sobre o tema.
*Saturnino Braga, ex-senador (PT/RJ), membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
Leia do mesmo autor:
– O Curso das Ideias: A história do pensamento político no Brasil e no Mundo, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo