Riocentro: Trinta anos depois
Rememorou-se, nos últimos dias, o atentado do Riocentro, no primeiro de maio de 81. Estávamos então no período final da ditadura, e um grupo militar inconformado com as evidências do processo de abertura, resolveu cometer o que seria um dos atos mais tresloucados da História de nosso País. Num show realizado em recinto fechado, assistido por mais de vinte mil pessoas, animado por um grupo de artistas dos mais queridos do nosso povo, planejaram a colocação de bombas nas centrais de iluminação e nas portas de acesso ao grande espaço, mantendo previamente trancadas as saídas de emergência. Era para produzir o caos e o pânico gigantesco e o atropelamento desesperado daquela multidão, com resultados que, provavelmente, viriam a constituir o evento mais trágico da História do Brasil.
O episódio mostra bem a dimensão da insanidade, da desumanidade e da imoralidade daquele grupo de militares brasileiros que tinham perdido completamente todas as referências da ética e do respeito humano, e da própria dignidade das Forças Armadas brasileiras, para perpetrar toda sorte de violências do maior calibre, como o assassinato da secretária da OAB, Lida Monteiro, com a finalidade de “vencer a guerra” contra os seus “inimigos”, brasileiros que lutavam pela democracia. Como se sabe, o destino operou contra eles no Riocentro e uma das bombas, antes de ser colocada, explodiu no colo de um sargento, matando-o instantaneamente e ferindo gravemente o capitão que estava ao seu lado.
Fiz um discurso na tribuna do Senado, como líder da Oposição, no dia 5 de maio de 81, apontando a extraordinária gravidade dos fatos e chamando à responsabilidade o Presidente da República e o próprio Exército Brasileiro, duramente atingido na sua honra por aquele episódio; chamando-os à apuração da verdade, como exigência de toda a Nação, de seu povo e de suas instituições, especialmente as militares.
O que foi oficialmente apresentado, entretanto, é tão vergonhoso que me recuso a repetir quaisquer de suas palavras. Menciono, apenas menciono, para quem quiser buscar, as mentirosas e abjetas explicações do General Waldir Muniz, Secretário de Segurança do Governo do Rio à época, e as ignóbeis conclusões do vexatório inquérito policial-militar presidido pelo Coronel Job Lorena.
Trinta anos se passaram, o País recuperou a democracia e hoje a exerce de maneira admirável, o Congresso Nacional aprovou uma Lei de Anistia, como condição política para uma restauração sem traumas do Estado de Direito, mas aquelas mentiras oficiais não foram renegadas pelos militares brasileiros em nome da dignidade das Forças Armadas. A verdade desta ocorrência de 30 anos atrás, como também outras historicamente tão relevantes quanto ela, o Brasil ainda não conhece.
São segredos incompatíveis com a claridade da vida democrática e o clima de paz que hoje reina no Brasil, e com o conceito prestigioso que ele alcançou em todo o mundo. E a Nação quer conhecer na íntegra a verdade daqueles fatos; já não é mais possível escondê-la. Não posso acreditar que Oficiais das nossas Forças Armadas, cônscios da sua dignidade, queiram impedir a apuração e a divulgação, em nome de uma ética corporativa que seria profundamente imoral.
Corre no Congresso a proposta de criação da Comissão da Verdade, sem nenhum laivo de revanchismo, que perdeu todo o sentido, sepultado pelo tempo e pelo clima de paz em que vivemos. É absolutamente necessário, é imperioso mesmo para a manutenção e o fortalecimento da autoestima de nosso povo, é imprescindível que a proposta seja aprovada e a Comissão instalada. Eu, que vivi aqueles tempos, quero ainda compartilhar o orgulho nacional de vê-la funcionando, com soberania e sabedoria, e finalmente revelando os meandros mais escuros dos acontecimentos daquele momento político felizmente superado.
*Saturnino Braga é ex-senador pelo PT/RJ, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e é autor de O curso das idéias, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. Contatos: [email protected]