Na mesma semana em que a polícia divulgou suspeitas que o médico Roger Abdelmassih esteja foragido no Líbano, o ministro Luiz Fux, do STF, negou liberdade a um condenado pelo furto de seis barras de chocolate.

Mesmo reconhecendo o valor ínfimo, Fux rejeitou o trancamento da ação, porque o réu seria "useiro e vezeiro" na prática do crime.

Roger Abdelmassih teve mais sorte. Foi condenado pela Justiça paulista a 278 anos de reclusão, por violências sexuais que teria praticado durante anos contra dezenas de mulheres que buscavam seu consultório para reprodução assistida. Nas férias forenses, ganhou a liberdade em liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes.

Nem tudo está perdido, porém.

O furtador de chocolates não fugiu, e em relação a ele, o direito penal poderá ser aplicado em toda a sua plenitude: um ano e três meses de reclusão. Afinal, por sua reincidência, a insignificância deixou de ser insignificante.

Nos últimos anos, o STF tem sido reputado como o tribunal mais garantista do país no âmbito criminal – o que fez a decisão relatada por Fux chocar ainda mais a comunidade jurídica.

Recentemente, o tribunal tomou uma posição reclamada por doutrinadores, proibindo a decretação da prisão, quando ainda existam recursos pendentes. É com base neste entendimento, por exemplo, que o jornalista Pimenta Neves aguarda solto o desenrolar de seus vários apelos.

A decisão tem justificativa na concepção do processo penal no estado democrático de direito. Todavia, o próprio STF tem sido flexível com este padrão, quando o réu se encontra preso durante o processo. É mais rigoroso, enfim, com quem foi preso desde o início.

Como a "primeira classe do direito penal" raramente é presa em flagrante, na prática acaba sendo a principal beneficiária da jurisprudência liberal.

Um acórdão do STJ fulminou inquérito policial contra empresários e políticos, com o bem fundamentado argumento de que ‘denúncia anônima’ é ilegítima para justificar a devassa telefônica.

Prisões de centenas de pequenos traficantes país afora, todavia, também costumam ser justificadas por informações obtidas em denúncias anônimas. Por meio delas, policiais revistam suspeitos na rua e pedem buscas e apreensões. Custa crer que a jurisprudência se estenderá a todos eles.

Se as cadeias estão superlotadas de réus pobres, os recursos que entopem nossos tribunais têm uma origem bem diversa.

O Conselho Nacional de Justiça divulgou a lista dos maiores litigantes do Judiciário, onde se encontram basicamente duas grandes espécies: o poder público e os bancos.

Como assinalou o juiz Gerivaldo Neiva, em análise que fez em seu blog (100 maiores litigantes do Brasil: alguma coisa está fora da ordem), os esforços da justiça estariam em grande parte concentrados entre "caloteiros e gananciosos".

Verdade seja dita, o acesso aos tribunais superiores não é apenas protelatório.

Só o Superior Tribunal de Justiça, o "Tribunal da Cidadania", editou nada menos do que quatro súmulas que favorecem diretamente aos bancos, como apontou Neiva. Entre elas a que proíbe o juiz, nos contratos bancários, de considerar uma cláusula abusiva contra o consumidor, se não houver expressamente a alegação no processo.

A decisão, que serve de referência para a jurisprudência nacional, inverte o privilégio criado pelo código do consumidor. Mas a Justiça parece considerar, muitas vezes, que bancos não têm as mesmas obrigações.

O STF, a seu turno, não se mostra tão garantista em outros campos.

Avança na precarização dos direitos trabalhistas, principalmente ao ampliar a aceitação da terceirização. Em relação aos funcionários públicos, destroçou com a força de uma súmula vinculante, a exigência de mero advogado nos processos disciplinares, e com outra a possibilidade de usar o salário mínimo como indexador de adicionais, proibindo ainda o juiz de substitui-lo por qualquer outra referência.

Não há sentido mais igualitário do que o princípio básico da justiça: dar a cada um o que é seu. Regras tradicionais de interpretação das leis privilegiam sempre a equidade. Se tudo isso ainda fosse pouco, a redução das desigualdades é nada menos do que um dos objetivos principais da República.

Por mais que a Justiça julgue cada vez mais e se esforce para julgar cada vez mais rápido, não se pode deixar de lado a questão fundamental da igualdade e com ela a proteção aos direitos fundamentais.

É certo que a sociedade brasileira é profundamente desigual e que a maioria das leis aprofunda esse fosso ao invés de reduzi-lo.

Mas a obrigação de ser o anteparo da injustiça significa também impedir o arbítrio do poderoso, a danosa omissão do mais forte e a procrastinação premeditada do grande devedor.

Temos de entender que o direito existe em função dos homens e não o contrário.

Não há formalismo que possa nos impedir de tutelar a dignidade humana, diante da repressão desproporcional ou da desproteção dos valores mais singelos.

Para que os fortes se sobreponham pela força, a lei da selva sempre foi suficiente.

Deve haver uma razão para que a humanidade a tenha abandonado.

*Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.